Confira trechos do artigo de autoria de Virgílio Almeida, diretor da ABC, em conjunto com Francisco Gaetani, publicado no Valor Econômico em 13/05. O texto aborda a urgência de fortalecer a proteção de dados no país através de um fortalecimento da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Trata-se de um caso emblemático e desconcertante. O jornal Washington Post e outros veículos da mídia americana deram destaque ao uso da coleta maciça de dados para tentar impor a proibição do aborto, ao identificar pessoas que buscaram as clínicas especializadas, mesmo que isso não seja contra a lei. Celulares podem coletar informações precisas sobre localização de pessoas e associá-las a mapas e outros serviços digitais. Os termos de uso de certos aplicativos dão às empresas o direito de vender essas informações para outras empresas que podem disponibilizá-las aos anunciantes ou a quem quiser pagar para obtê-las. Dias atrás, a mídia americana mostrou que por US$ 160, pode-se comprar dados de uma semana inteira com a identificação de onde vieram e para onde foram as pessoas que visitaram mais de 600 clínicas de aborto em diferentes partes dos EUA.
Esse é mais um caso concreto que confirma o cenário distópico desenhado pela professora Shoshana Zuboff da Universidade de Harvard, que o define como “capitalismo de vigilância’’. Nessa economia de vigilância digital, empresas rastreiam os consumidores para descobrir o que e como vender para eles. Os dados das pessoas podem mudar de mãos várias vezes ou fazer parte de um mercado maior, administrado por corretores de dados, capazes de acumular enormes coleções de informações sobre cidadãos, empresas e até governos.
Em artigo no New York Times, a professora Zuboff enfatiza a necessidade de se criar estruturas legais que interrompam e proíbam a extração em larga escala de dados que refletem a experiência humana. São necessárias regulações capazes de interromper a coleta indiscriminada de dados pessoais, desmontando assim cadeias de suprimentos ilegítimas do capitalismo de vigilância, que traz ameaças para sociedade e democracia. A sociedade brasileira precisa da proteção da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), aprovada em 2018. É preciso a atuação de agências governamentais que façam valer a proteção de dados pessoais garantidas pela Lei.
O Brasil é um país com dificuldades de aprender com a sua própria história em muitas áreas da administração pública. Nos governos Fernando Henrique Cardoso as agências reguladoras criadas começaram a funcionar com pessoal temporário, para os quais foram feitos concursos específicos. Havia um atenuante a esta decisão oportunista no trato da questão de pessoal para as agências. Existiam dúvidas sobre se o regime adequado para as a primeiras safras de agências (a maioria associadas aos processos de privatização) deveria ser estatutário ou celetista.
Somente no governo Lula foram feitos concursos para pessoal permanente das agências, após um enfrentamento de pressões políticas destinadas a aprovação de trens de alegria efetivando os funcionários que lá se encontravam.
Mais de duas décadas depois, o governo atual repete de forma piorada as iniciativas do final dos anos noventa. A ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) conta hoje com apenas funcionários cedidos de outras organizações públicas e pelo menos até 2023 não contará com quadros próprios para se desincumbir de seus mandatos, em áreas particularmente sensíveis para o momento do país, num ano eleitoral, quando se discute a regulação das mídias sociais e os fenômenos de desinformação.
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A lentidão do processo de institucionalização da ANPD reflete o desconhecimento por parte do governo da criticidade de seu papel e da urgência de se prover a agência dos meios indispensáveis ao seu funcionamento minimamente adequado. Ao condenar a ANPD a uma precariedade indeterminada o governo acaba colaborando para a hipertrofia do Judiciário no trato do assunto, para além da visão do governo, em parte devido à confusa sistemática de distribuição de processos no âmbito do próprio STF. O fato de que certas iniciativas são julgadas por um juiz ou por uma câmara de cinco ou pelo pleno de onze ou pelo presidente do Supremo individualmente, acaba deixando a opinião pública confusa.
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A “verdade’’ não tem mais curadoria nestes tempos digitais, mas a ANPD tem um papel insubstituível na regulação dos termos de convívio social em tempos de pós-verdade, realidades alteradas, mundos alternativos e multiversos.
Deslocada institucionalmente no vasto aparato do Executivo, a vinculação institucional da ANPD também não ajuda. A proximidade com a Presidência, ao contrário do que se pensa, não significa alto prestígio com o chefe do Executivo – muito disso depende do estilo e das prioridades presenciais. Em geral, a vinculação de um órgão à Presidência da República é um sinal de alto risco de que aquela política não receberá a atenção desejada.
O trabalho da ANPD tem dimensões tecnológicas, políticas, econômicas e jurídicas que são complexas junto a todos seus correspondentes internacionais – como nos EUA, na União Europeia e outros. Quanto mais tarde forem equacionadas suas necessidades de pessoal e recursos, maior será o desafio de lidar com a realidade do desregramento do universo digital, que só tende a expandir.