Confira o artigo escrito pelo vice-presidente da ABC para a Região Norte Adalberto Val e pelo Acadêmico Luiz Drude durante a redação do documento aos presidenciáveis.
Muitos subsistemas da Terra respondem de forma não linear, frequentemente abrupta, às alterações ambientais e são mais sensíveis quanto mais próximos de níveis limiares de certas variáveis-chave. A humanidade opera atualmente fora ou muito próximo de muitos destes limites. [1] Em muitos processos globais já ultrapassa nossa capacidade de avaliação, monitoramento, adaptação e mitigação. A situação brasileira, dada sua fragilidade institucional e desigualdade social, é particularmente emergencial e poderá comprometer a soberania e a qualidade de vida de sua população de forma permanente. Identificar e quantificar os limites que não podem ser ultrapassados na escala nacional pode contribuir para evitar níveis intoleráveis. Infelizmente, vários destes limites já foram ou estão sendo ultrapassados no Brasil e a divulgação de alertas à sociedade e aos governos deve ser mandatória para a ciência brasileira.
A biodiversidade, a estrutura e funcionamento dos ecossistemas, incluindo serviços ecossistêmicos, estão sendo perdidos a um ritmo não visto desde a última extinção em massa, há cerca de 66 milhões de anos. Muitos autores consideram esta perda a sexta grande extinção. Contribuem para este cenário aspectos estruturais e conjunturais, estes últimos agravados pela situação específica do Brasil.
Do ponto de vista estrutural, o conceito de “desenvolvimento sustentável”, popularizado pelo Relatório Brundtland “Nosso Futuro Comum” em 1987, [2] implica em um desenvolvimento econômico sem esgotamento dos recursos naturais e seus serviços ecossistêmicos. Entretanto, este conceito se mostra incompatível com a conservação dos biomas e suas biodiversidades. Via de regra, ignora ou tenta adaptar situações naturais a sistemas econômicos voltados ao acúmulo de capital ou tenta aplicar conceitos estritamente capitalistas aos processos de uso e manejo dos recursos naturais quando aplicados por populações tradicionais. Embora este conceito tenha levado a diversas ações internacionais significativas (Figura 1), [3] a evolução de diversos indicadores tem revelado esses avanços como incapazes de nos distanciar daqueles níveis limiares, principalmente pelos motivos citados.
Considerando apenas a “Era Brundtland”, por exemplo, no que tange a mudança climática, em relação aos valores observados no início do século XX, o amento da temperatura da superfície terrestre que era de 0,2o em 1970 subiu para 1,0 grau em 2019; a emissão anual de CO2 decorrente da atividade antrópica, mais que dobrou, passando de 14,65 GT para 36.6 GT no mesmo período, enquanto a pegada antrópica global medida em hectares passou de 6 bilhões para 20,6 bilhões. Ecossistemas naturais provedores de serviços continuam a ser destruídas para obter mais e mais áreas de ocupação humana, materiais e/ou energia para promover a necessidade infinita de “desenvolvimento” através de modelos econômicos predadores da natureza. Mesmo programas exitosos de replantio florestal como o imenso programa de reflorestamento na China, baseados no conceito de desenvolvimento sustentável, vêm demonstrando que plantações florestais em monocultura, consideradas mundialmente como uma estratégia aceitável e mesmo desejável, proporcionam muito menos benefícios ambientais que florestas nativas com uma mistura de vegetação diversificada. [4]
Tom Lovejoy e Carlos Nobre estimaram que o limite para a perda florestal da Amazônia, que levaria a uma ruptura abrupta de suas condições ecológicas, incluindo biodiversidade e serviços ecossistêmicos, seria em torno de 25% da área total. Atualmente estamos perigosamente próximo a este limite. Extremos climáticos nas regiões sul-sudeste e centro-oeste já podem ser associados aos níveis atuais de desmatamento, com impactos diretos e severos no agronegócio, responsável por parcela majoritária do PIB brasileiro. Esse sucesso é parcialmente determinado pela transferência de umidade resultante da transpiração de árvores da floresta tropical. Estima-se que os fluxos atmosféricos resultantes, os chamados rios voadores, carregam diariamente o mesmo volume de água que o rio Amazonas deposita no oceano. Some-se a isto a remobilização para a atmosfera de elevadas quantidades de gases de efeito estufa, contribuindo para o aquecimento global. [5]
O modelo brasileiro de agronegócio, cuja “sustentabilidade” depende de inversões gigantescas, totalmente não-sustentáveis, de energia e materiais (fertilizantes, corretores do solo etc), além da expansão sobre áreas de biomas naturais, particularmente o Cerrado e a Floresta Amazônica e uso indiscriminado de agrotóxicos, muitos banidos no resto do mundo, é responsável por nos aproximarmos de vários limites fundamentais. Este modelo tem como subproduto uma interferência inaceitável nos ciclos de nitrogênio e fósforo, levando a eutrofização de ambientes aquáticos, redução da biodiversidade e drástica redução na resiliência destes ecossistemas. A eutrofização impacta não só processos naturais como também diversos serviços e usos ecossistêmicos. Remobiliza imensas quantidades de solo para sistemas hídricos acelerando a sedimentação de bacias e, mais recentemente, associado a períodos de seca cada vez mais extremos, para a atmosfera, levando a prejuízos inclusive em áreas urbanas. A replicação deste modelo para outros setores do agronegócio, como a aquicultura, já vem reduzindo o capital natural de grandes extensões do litoral brasileiro. [6] Em outras palavras, uma sustentabilidade artificial que desestrutura os ecossistemas do entorno.
Na média apenas 50% da população brasileira é atendida por saneamento básico, isso representa uma contribuição gigantesca de águas servidas sem tratamento aos corpos de água naturais. Porexemplo, mesmo em rios de áreas protegidas da Mata Atlântica, quase 35% estão com a qualidade de suas águas em um nível inaceitável para manutenção da vida. Ao longo do litoral brasileiro, a estes efluentes sem tratamento se adiciona a liberação de efluentes industriais e do agronegócio resultando em elevados níveis de contaminação, anoxia e acidificação, decrescendo o capital natural destas áreas de altíssimo valor estratégico. Em m cenário de mudanças globais, o impacto dessa contaminação é largamente aumentado. [7] De forma similar, a mineração, não obstante os esforços de setores individuais, se destaca como atividade que ameaça sobremaneira o já fragilizado equilíbrio ambiental. A não consideração da variável -mudança climática- reduz significativamente a eficiência de processos de tratamento e descarte de efluentes, exemplificado por graves acidentes recentes envolvendo barragens de rejeitos. A exploração mineral na Amazônia, incluindo em terras indígenas, esta na iminência de ser regulamentada, um passo absolutamente deplorável com graves reflexos na qualidade de águas, na contaminação da biota e de populações humanas por mercúrio e outros metais. Além disso, contribui de forma significativa com o desmatamento resultante da expansão do agronegócio. A ressaltada sustentabilidade nesses exemplos não é positiva!
Urge medidas imediatas e severas, com forte apoio na ciência, capazes de pelo menos desacelerar de forma significante o processo de degradação ambiental que, dadas as extensões de prazos que ocorrem, assumem caráter duradouro e confundem-se com processos sustentáveis. Entre essas medidas destacam-se:
- A rejeição dos sistemas capital-orientados de “desenvolvimento sustentável” em áreas naturais, incluindo uma profunda transformação de nossa matriz energética, e uma mudança em nossa nutrição para níveis mais baixos da cadeia alimentar.
- Moratória total ao desmatamento e recuperação de áreas degradadas com florestas multiespecíficas, privilegiando espécies originais.
- Mudanças no modelo de agronegócio altamente dependente de fertilizantes, agrotóxicos e avanços contínuos sobre áreas pristinas.
- Revisão de todas as licenças de mineração e cessação da proposta de regulamentação do garimpo e de mineração em florestas nacionais e áreas indígenas.
- Implantação de um amplo sistema de monitoramento e qualificação de águas interiores e costeiras.
- Atender e monitorar todos os compromissos internacionais firmados (Figura1) nos quais o Brasil além da subscrição, contribuiu de forma majoritária em seus desenvolvimentos.
Referências
- Rockström, J. et al. 2009. Nature 461, 472-475. https://doi.org/10.1038/461472a
- WCED, U. Our Common Future—The Brundtland Report. Report of the World Commission on Environment and Development: Berlin (Germany). 1987. https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/5987our-common-future.pdf
- Jackson R.B. et al. 2019. Res. Lett. 14, 121001.https://doi.org/10.1088/1748-9326/ab57b3
- Hua et al. 2022. Science 2022. https://doi.org/10.1126/science.abl4649
- Geritana et al. 2021. Nature 600, 2018-220. https://www.nature.com/articles/d41586-021-03625-w
- Ferreira A.R. et al. 2022. Sustainability 14, 1263. https://doi.org/10.3390/su14031263
Lacerda et al. 2020. Front. Earth Sci. 8, 93. https://doi.org/10.3389/feart.2020.00093