No dia 26 de outubro foi realizada a 47ª edição dos Webinários da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e o tema da vez foi “Transformando pesquisa em terapias eficazes”.
O evento mostrou que existe um longo caminho entre a pesquisa básica e o desenvolvimento de tratamentos e remédios, ao longo do qual contribuem muitos cientistas e grupos de pesquisa para levar uma inovação ao cuidado do público geral.
Os convidados foram os médicos Protásio Lemos da Luz, professor do Instituto do Coração (InCor) e da USP; Diogo Onofre de Souza, pesquisador em bioquímica pela UFRGS; e a neurocientista Fernanda De Felice, pesquisadora da UFRJ e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino de Biologia.
O moderador do debate foi o diretor da ABC Francisco Rafael Laurindo, que dedicou o evento ao médico, pesquisador e ex-presidente da ABC Eduardo Moacyr Krieger.
Medicina translacional
O Acadêmico Protásio Luz é presidente da Associação Brasileira de Cardiologia Translacional e trouxe alguns exemplos da área. As descobertas sobre a aterosclerose, doença em que as artérias ficam obstruídas por acúmulo de colesterol, começaram em estudos com animais na década de 1910. Só em 1961 estudos com humanos comprovaram a relação entre colesterol alto e a doença, e até se desenvolver um remédio viável foram mais 15 anos. No total, foram 63 anos entre as primeiras descobertas e o tratamento.
Esse é apenas um exemplo de como a criação de procedimentos clínicos eficazes leva tempo e demanda o trabalho de várias gerações de cientistas. Mas a medicina translacional não se refere apenas ao caminho da pesquisa de base até a aplicação clínica, mas também se dá na transferência de conhecimento científico para a população. “Hoje em dia”, explicou, “sabemos que a base da medicina preventiva é um estilo de vida saudável, mas muitas pessoas não têm essa escolha. O que buscamos cada vez mais é uma medicina personalizada, que entenda os riscos e benefícios para cada paciente e, assim, use criteriosamente os tratamentos disponíveis”.
O palestrante também explicou que a medicina translacional ainda está engatinhando no Brasil e estabeleceu o que acredita serem os pilares para sua aplicação. “Os pesquisadores devem produzir ciência em estreita relação com as instituições, que devem ter uma cultura de integração entre as diversas áreas”, afirmou. “Mas nada disso é possível sem dinheiro”.
Alzheimer: combinação complexa de genes ambiente e estilo de vida
A neurocientista Fernanda de Felice, que foi membro afiliado da ABC entre 2008 e 2013, começou sua apresentação destacando a importância da mobilização “Quanto vale a ciência?”, que ocorria simultaneamente aoevento naquele dia e lutava contra os recentes cortes de orçamento para a ciência brasileira.
Passando ao tema da apresentação, Felice ressaltou que existem fatores biológicos, sociais e de estilo de vida que determinam como será nosso envelhecimento. Particularmente, explicou que acúmulos de estresses ao longo da vida são determinante no desenvolvimento de doenças neurológicas. “Esse acúmulo ao longo da vida, que chamamos de ‘carga alostática’, tem impacto no cérebro, e, muitas vezes, são gerados por fatores sociais”.
A palestrante trouxe o exemplo de crianças que sofrem maus tratos, o que tem influência na cognição. Quanto ao estilo de vida, destacou a importância do exercício físico e a relação entre doenças como diabetes tipo 2 e o desenvolvimento de Alzheimer. “Analisando, pós-morte, cérebros de pessoas com Alzheimer, identificamos um aumento em marcadores de resistência à insulina”, explicou.
Entretanto, Felice fez questão de ressaltar que isso não significa que pessoas com Alzheimer devam receber aplicações de insulina. “É diferente do que a simples aplicação no braço, é preciso fazer com que essa insulina chegue no cérebro. Existem pesquisas nesse sentido, mas sem resultados conclusivos até o momento”, ressaltou.
Outro hormônio que também vem sendo estudado como possível protetor contra a Alzheimer é a irisina. Essa molécula é gerada pelo exercício físico e existem evidências de que diminui fatores de risco. A palestrante explicou que essas descobertas são promissoras, corroboram a ideia de que a prática de exercícios protege o cérebro, mas ainda não se pode cravar que esse hormônio será usado em tratamentos efetivos. “Testes em camundongos mostram uma associação entre a irisina e retenção da memória, mas formas de translacionar essa molécula para tratamentos ainda estão em estado inicial de pesquisa”, explicou.
Descoberta científica é patrimônio da humanidade
O médico e Acadêmico Diogo Onofre de Souza focou sua apresentação na questão das patentes. Para ele, o trabalho de translacionar uma descoberta de base para uma aplicação envolve tantos cientistas que é difícil estipular propriedade intelectual para qualquer um dos envolvidos. “Por exemplo, os trabalhos da Marie Curie foram a base para pesquisas que desenvolveram a radioterapia e a bomba atômica; entretanto é difícil atribuir a ela a responsabilidade única por qualquer um desses avanços”, explicou.
O palestrante acredita que os cientistas têm o dever de se envolver nas discussões e nas aplicações das pesquisas de base que ele desenvolve. “Qualificar um cientista é caro e requer investimento público. Acredito que a comunidade científica se envolve pouco no debate sobre C&T, isso deveria ser uma questão de responsabilidade com o investimento que a sociedade fez”, avaliou.
Por fim, fez um apelo por uma ciência mais aberta e integrada, e para que os cientistas se preocupem menos com a questão da propriedade e mais com a qualidade. “O que é propriedade do cientista é a qualidade da pesquisa feita. A descoberta, na sua essência, é propriedade da humanidade”, concluiu.
Assista ao webinário na íntegra pelo canal da ABC no YouTube.