Confira o artigo escrito pelo membro titular da ABC Luiz Carlos Dias, publicado no Jornal da Unicamp no dia 8/10. Em novo texto, o cientista fala sobre o novo imunizante para a malária e como a pesquisa brasileira contribuiu para isso. Dias é professor titular do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista 1A do CNPq.
Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, a malária, doença transmitida pela picada das fêmeas do mosquito Anopheles, que afeta pessoas negligenciadas em países de baixa renda, matou cerca de 409 mil pessoas. Desses, cerca de 94% dos casos ocorreram no continente africano, principalmente na África Subsaariana, sendo 67% crianças abaixo de 5 anos. Isso significa que uma criança abaixo de 5 anos morre de malária no planeta a cada 2 minutos. Isso é inadmissível.
A malária é combatida com o uso de medicamentos, através de terapias combinadas em que um dos medicamentos é o artesunato, derivado do produto natural artemisinina. O parasita da malária adquire resistência rapidamente e isso dificulta muito o desenvolvimento de medicamentos e vacinas. No consórcio Molecules Initiative for Neglected Diseases (MINDI), em colaboração com a organização sem fins lucrativos, Medicines for Malaria Venture (MMV), nós temos como objetivo, desenvolver medicamentos baratos e acessíveis que possam ser administrados por via oral, sejam altamente eficazes e que tenham baixa toxicidade. Como um desafio extra, estamos trabalhando para desenvolver um tratamento de dose única para a malária.
No âmbito desta parceria, nós colaboramos com o objetivo da OMS, da ONU e de várias organizações sem fins lucrativos, que têm a meta audaciosa de erradicar a malária do planeta até 2040, reduzindo em 90% os casos até 2030. Para atingir esse objetivo, é preciso investir em testes de diagnóstico, desenvolver novas vacinas mais robustas, novos medicamentos mais eficazes, fortalecer os sistemas de vigilância e tratamento e esclarecer as populações afetadas.
Além de medicamentos, é fundamental manter o uso de redes de proteção (tipo mosquiteiros) com inseticida em volta das camas, pois nesta idade, as crianças se movimentam pouco, o que facilita as picadas pelos mosquitos. Para se alimentar, o mosquito pica as pessoas e, caso esteja infectado com o parasita, transmite a doença. Pessoas infectadas podem ser picadas por mosquitos não infectados, que ao se alimentar, ingerem o parasita e assim o ciclo se propaga. Em épocas de chuvas os casos aumentam.
A mosquirix
Habemus uma primeira vacina contra a malária. No dia 06 de outubro, a OMS anunciou a aprovação da vacina mosquirix (RTS,S/AS01), primeiro imunizante para combater a malária. É uma conquista memorável e histórica para a humanidade, protagonizada pela Ciência.
A mosquirix levou cerca de 34 anos para ser desenvolvida. Desenvolvida pela farmacêutica britânica GlaxoSmithKline (GSK), a nova vacina combate o Plasmodium falciparum, um dos cinco parasitas que causam a malária e de longe, o mais letal. Não será muito útil para combater a malária no Brasil, pois aqui, cerca de 90% dos casos são causados por outro parasita, o Plasmodium vivax, para o qual a mosquirix não apresenta eficácia.
Segundo dados do Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária (PNCM), o Brasil apresentou em 2018, 194,572 casos de malária, sendo cerca de 90% causados pelo Plasmodium vivax, menos letal. Houve uma pequena redução no número de casos em 2018 (157,454 casos), sendo que esses casos ocorrem em regiões de desmatamento e garimpo, nos estados do Norte e região Amazônica.
A mosquirix começou a ser desenvolvida em 1987, os ensaios clínicos de fase 3 foram concluídos em 2014 e em 2019 a vacina começou a ser aplicada no mundo real em um projeto-piloto no Quênia, Malawi e Gana. A vacina mostrou segurança e eficácia de aproximadamente 35% ao longo de 4 anos para um esquema de 4 doses em crianças de 5–17 meses. Os resultados do estudo de fase 3, duplo-cego, randomizando e controlado por placebo, envolvendo pouco mais de 15 mil crianças, foram publicados na revista médica The Lancet no dia 23/04/2015.
O estudo mostrou que a vacina é segura e apresenta eficácia em torno de 35% na prevenção de casos de malária e infecções mais severas (a eficácia varia entre 26-50% em bebês e crianças pequenas). A vacina precisa de 4 doses, que devem ser aplicadas, respectivamente, no quinto, sexto, sétimo e décimo oitavo mês de vida das crianças. Se considerarmos que são cerca de 270 mil mortes de crianças por ano causadas pela malária, reduzir em cerca de 35% significa salvar algo em torno de 95 mil vidas. Mas só ter a vacina não basta para atingir esse objetivo…
Contribuição brasileira
Esta é a primeira vacina aprovada para tratar doenças parasitárias em humanos e teve contribuição de dois pesquisadores brasileiros, ambos imunologistas, a professora Ruth Nussensweigh e o professor Victor Nussensweigh. A professora Ruth nasceu na Áustria, mas veio ainda criança para o Brasil. Os dois cientistas deixaram o Brasil durante o regime militar e estavam morando nos Estados Unidos na década de 1960, quando realizaram contribuições fundamentais para o desenvolvimento da mosquirix. A vacina usa plataforma baseada na combinação de uma proteína da superfície do parasita Plasmodium falciparum com outra proteína da superfície do vírus que causa a hepatite B.
Em 1967, quando estava na New York University (NYU), nos Estados Unidos, em um artigo publicado na revista Nature, a Profa. Ruth mostrou que era possível imunizar roedores contra a malária por meio da irradiação dos esporozoítos, um dos estágios de vida do Plasmodium berghei, após mostrar como infectar os mosquitos com esses parasitas. A Profa. Ruth tratou alguns exemplares do parasita que infecta roedores, com raios X, para enfraquecê-los. Na sequência, ela injetou os parasitas enfraquecidos em camundongos, que se tornaram imunes a esses parasitas. Este foi o primeiro passo, mas não foi suficiente. Nos anos seguintes, os dois cientistas fizeram outra descoberta fundamental: identificaram a circunsporozoíta principal (CS), proteína que recobre o parasita que ativa o sistema imunológico de mamíferos.
Após clonagem e sequenciamento do gene da proteína CS em parasitas da malária símios (Plasmodium knowlesi), eles conseguiram produzir a proteína em laboratório e publicaram o trabalho em 1980 na revista Science. Este trabalho permitiu a produção da proteína CS como proteína recombinante (rCS), o que abriu o caminho para vários estudos epidemiológicos de populações vulneráveis expostas ao esporozoíto da malária.
Foi essa contribuição fantástica no uso de esporozoítos atenuados por irradiação, que levou ao desenvolvimento desta vacina, abrindo uma linha de pesquisas que influenciou muitos pesquisadores a continuar enfrentando o enorme desafio de desenvolver uma vacina para a malária. Hoje, pouco mais de 60% das vacinas em testes para seres humanos é baseada nos antígenos de superfície dos esporozoítos inspirados no trabalho desenvolvido pelos dois cientistas. Foram esses trabalhos iniciais que possibilitaram o desenvolvimento da mosquirix, produzida a partir de uma proteína do plasmódio e outra do vírus da hepatite B.
A professora Ruth faleceu em 2018 e um obituário na revista Nature celebrou suas contribuições que abriram o caminho para uma vacina contra a malária.
Por que demorou tanto?
Primeiro, é uma doença que afeta populações vulneráveis em países de baixa renda, não há tanto investimento nem interesse por parte de grandes farmacêuticas. A malária é causada por parasitas, que são mais complexos que vírus e bactérias. O ciclo de vida dos parasitas que causam a malária envolve cerca de mil genes com vários estágios de desenvolvimento. O parasita entra no organismo humano, passeia na corrente sanguínea da vítima, se instala no fígado, onde se reproduz. Em seguida volta a circular no sangue, infecta as hemácias (glóbulos vermelhos), volta a se multiplicar e depois destrói as células. Nesse processo, o parasita destrói muitas células do fígado e dos glóbulos vermelhos, causando a doença.
O desenvolvimento de vacinas é um grande desafio, pois em cada ciclo de vida, o parasita adquire diferentes formas, ele também pode ficar em estágio dormente por vários meses ou até anos no fígado do hospedeiro humano. Pessoas imunossuprimidas, idosos e crianças pequenas são os mais afetados. São parasitas que têm grande capacidade de sofrer mutações e adquirem resistência a medicamentos com muita facilidade. Por isso, a grande maioria das candidatas vacinais nem sequer avançam para os testes clínicos em humanos. A mosquirix age induzindo uma resposta de proteção imunológica contra o primeiro estágio do parasita, antes que ele tenha a possibilidade de chegar ao fígado, impedindo o mesmo de começar seu estágio de reprodução.
É preciso garantir acesso sem relaxar nas outras medidas preventivas
Uma coisa é ter a vacina, outra coisa é garantir acesso e fazer a vacina chegar nas crianças, respeitando o esquema de 4 doses. No mundo real, isto é bem mais difícil, existem barreiras financeiras e geográficas, pois muitas pessoas moram longe de centros urbanos, distantes dos centros de saúde, não têm nem como pagar transportes coletivos. Existem barreiras culturais, falta esclarecimento e normalmente pessoas afetadas por malária, são afetadas por outras doenças como tuberculose e HIV.
Um estudo publicado na revista PLOS Medicine em 30/12/2020 estimou que a vacina poderia prevenir 5,4 milhões de casos e aproximadamente 23 mil mortes de crianças por ano. Um outro estudo envolvendo 6831 crianças na faixa de 5-17 meses de idade, publicado no The New England Journal of Medicine no dia 09/09/2021, mostrou que a proteção das crianças é maior quando, além das doses da vacina, as crianças tomam outros medicamentos contra a malária, como a combinação sulfadoxina–pirimetamina ou a amodiaquina.
A R21, uma possível nova vacina contra a malária
A Ciência avança e uma outra candidata vacinal contra a malária está sendo desenvolvida pela Universidade de Oxford. A candidata R21 foi testada em 450 crianças com idade de 5-17 meses em Burkina Faso, na África e os resultados preliminares de um estudo duplo-cego, randomizado e controlado por placebo, publicados na revista The Lancet no dia 20/04/2021, mostraram eficácia de 77% no grupo que tomou a dose alta e 71% no grupo que tomou uma dose mais baixa.
O artigo final foi publicado na revista The Lancet no dia 05/05/2021. Três doses da vacina foram administradas em intervalos de 4 semanas antes da temporada de malária, com uma quarta dose um ano depois. Neste esquema, a vacina mostrou bom perfil de segurança.
Um gigantesco muito obrigado e todo o nosso reconhecimento aos brilhantes cientistas brasileiros, Profa. Ruth Nussenzweigh e Prof. Victor Nussenzweig, por essa contribuição fantástica para a humanidade!!!