O moderador Pablo Esteban e as palestrantes Soledad Gori e Aleida Rueda.
No dia 17 de setembro, sexta-feira, ocorreu a terceira sessão do workshop “Desafios e realidades da comunicação pública da ciência na América Latina e no Caribe”, organizado pela Academia Joven de Argentina, em parceria com a Academia Brasileira de Ciências, o TWAS Lacrep (braço da The World Academy of Sciences para a América Latina e o Caribe) e a TWAS Young Affiliates. O tema da semana foi “Antes e depois da COVID-19: experiências, aprendizados e ressignificações da ciência na pandemia”.
Neste penúltimo encontro, o debate foi encabeçado por Diana Rosa Schlachter Piñón, mestre em estudos sociais da tecnologia pela Universidade de Havana; Soledad Gori, professora da Universidade de Buenos Aires, na Argentina; Aleida Rueda, mestre em jornalismo de agência de notícias pela Universidade Rey Juan Carlos, Espanha. A moderação foi de Pablo Esteban, professor e pesquisador na Universidade Nacional de Quilmes, Argentina.
Mudanças da comunicação científica durante a pandemia e um legado para o futuro
Diana Rosa Schlachter Piñon traçou um breve paralelo entre a comunicação da ciência antes da pandemia e as expectativas para o futuro. A pesquisadora e jornalista formada pela Universidade de Havana lembra que, antes da pandemia, programas científicos na televisão eram transmitidos casualmente, quase sempre abordando temáticas de saúde e meio ambiente. O principal tópico era sempre um produto final: medicamento, cura ou uma grande descoberta. O processo científico em si era algo sempre deixado de lado: “esse tipo de prática afeta a percepção social da ciência e tecnologia como um processo de criação dinâmico e complexo. A ciência social crítica e humanista raramente aparece”, explica Piñon. A escassez de espaços para formação de jornalistas especializados e a ausência de um diálogo fluido com cientistas foram as principais justificativas apontadas por Piñon para essa prática equivocada do jornalismo científico.
Com a COVID-19, jornalistas de todo o mundo precisaram aprender a comunicar ciência – ainda que essa não fosse sua área de especialização -, o que mudou completamente como, quando e porque levar conteúdo científico. “Houve a urgência de falar sobre conhecimento científico. Ganhamos um espaço preferencial na imprensa, que não teria sido possível sem o estreitamento de laços entre cientistas e jornalistas.” Por se tratar de uma doença nova, tudo precisava ser explicado com muito cuidado: desde o momento em que o vírus ataca a célula, até o diagnóstico e a resposta imune do organismo.
Quando o desenvolvimento das vacinas chegou aos holofotes, os comunicadores enfrentaram novos desafios: explicar as diferentes fases do estudo clínico e ainda englobar debates éticos e cenários geopolíticos na abordagem. De acordo com a professora, esse processo ajudou a compreender a complexidade da ciência como projeto social. “A linguagem audiovisual foi uma ferramenta fundamental nessas explicações”, comentou a pesquisadora. “Esse debate trouxe à tona uma transdisciplinaridade, que deu voz à profissionais de geografia social, ciências sociais, psicologia, entre outros que não estavam diretamente associados à doença.”
Para Piñon, a pandemia elevou o jornalismo científico a outro patamar, o que provocou novas reflexões sobre as formas de comunicação da ciência: “É imprescindível que esse eixo transcenda o momento de crise. Precisamos trabalhar para que nossa especialidade continue tendo espaço nas plataformas depois da pandemia. Precisamos continuar ocupando lugares na televisão, nas mídias sociais e na internet.”
Quando o assunto é Cuba, seu país de origem, ela defende que a maior emergência do país é formar e empregar jornalistas da área de ciência.
Uma dose de ciência em tempos de pós-verdade
“Será que o mundo está vivendo a sua era da pós-verdade?”, questionou-se Soledad Gori ao início de sua apresentação. De acordo com o Dicionário de Oxford, a pós-verdade é caracterizada pelas circunstâncias em que os feitos objetivos influenciam muito menos a formação da opinião pública do que as referências a emoções e crenças pessoais. A distorção deliberada da realidade – que, na atual realidade, é marcada pelas fake news – manipula tais crenças e emoções para influenciar as atitudes sociais.
Na pós-verdade atual, as redes sociais emergem como o quarto poder. Uma notícia falsa viaja seis vezes mais rápido que uma notícia verídica e tem muito mais alcance que a informação correta. Em tempos de pandemia, a desinformação na área da saúde agravou crises políticas e sanitárias ao redor do mundo.
Uma pesquisa apresentada por Gori mostra que em 2018, 79% da população argentina apresentava um consenso científico de seguridade das vacinas. A Argentina é um dos países com maior confiança em vacinas no mundo, o que é muito associado a um alto nível de educação científica, ao contato com trabalhadores da saúde nos círculos sociais e a um comportamento ativo de busca de informação. O país também é pioneiro na vacinação obrigatória e gratuita como bem coletivo.
A vacinação contra o vírus da HPV é obrigatória em meninas desde 2011, de acordo com o calendário nacional de vacinação da Argentina. Desde 2017, o imunizante também passou a ser obrigatório para meninos – uma questão de equidade de gênero, levando em conta que pessoas do sexo masculino são portadores e responsáveis pela carga viral na população. A adesão a tais medidas ajudou a reduzir significantemente a incidência de câncer de colo de útero em mulheres. Conhecido como “câncer da pobreza”, uma vez que é o único que pode ser prevenido, esse tipo de câncer é associado a mulheres socialmente vulneráveis, que não possuem acesso à informação científica. No Brasil, a vacina contra o HPV não é obrigatória e só é oferecida gratuitamente pelo Sistema Unificado de Saúde (SUS) para meninas de 9 a 14 anos, meninos de 11 a 14, mulheres imunossuprimidas de 9 a 45 anos e homens imunossuprimidos de 9 a 26 anos.
De acordo com Gori, os principais obstáculos da vacinação estão associados à percepção e falta de conhecimento. Medo, distância (do posto de saúde)/horário (da campanha de vacinação), preocupação com “o que os outros vão dizer” são alguns dos principais empecilhos enfrentados pelos argentinos. “Para combater isso, precisamos de mais militância, levar informação boca a boca”, sugere a especialista.
Gori apresentou o projeto Ciencia Anti-Fake News, que reúne pesquisadores do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET) da Argentina. O grupo, do qual a pesquisadora faz parte, trabalha analisando informações que circulam pela sociedade, por onde circulam, de que forma, como foram recebidas. A iniciativa tem a intenção de desmentir conteúdos falsos sobre ciência que circulam pela internet.
Cinco lições e desafios para o jornalismo de ciência durante a pandemia
Para Aleida Rueda, da Universidade Rey Juan Carlos, a pandemia foi um divisor de águas para o jornalismo científico. Antes da pandemia, a maioria das notícias de ciência se assemelhavam a pautas “frias”: era preciso pesquisar uma ideia ou história, buscar evidências com especialistas e em artigos, criar uma narrativa, para só então produzir um produto jornalístico que poderia ser difundido para a audiência. Com a chegada da pandemia, tudo era sobre COVID-19. A pesquisa e os jornais caminhavam em paralelo, as evidências surgiam a conta gotas e, para complicar, muitos artigos e preprints estavam sendo publicados, mas poucos eram confiáveis. No meio dessa situação, o jornalista adquiriu ainda outra grande responsabilidade: explicar a gravidade da situação sem alarmar a sociedade. Pensando na situação dramática vivida no último ano, a mestre em jornalismo listou cinco lições fundamentais para jornalistas de ciência adotarem no cotidiano:
1- Ser mais cauteloso ao comunicar artigos científicos ou preprints, para não acabar replicando informações equivocadas que, eventualmente, podem confundir o público. Rueda deu como exemplo o uso da ivermectina, cujo uso em estudos preliminares acabou desencadeando uma onda de automedicação.
2- O fortalecimento das habilidades de verificação de fatos, incentivando o esforço colaborativo em prol da correta divulgação de evidências científicas. Como exemplo, ela menciona a iniciativa #COVIDconCIENCIA, organizada pela Rede Mexicana de Jornalistas de Ciência. “É fundamental pesquisar de onde surgiu a notícia, qual o paper que originou essa matéria, se foi feito por um pesquisador da área ou se há algum tipo de interesse por trás”, aconselha a pesquisadora. A rede mexicana de fact-checking apurou a veracidade de fake news como o “COVID Hunter”, um dispositivo capaz de detectar se uma pessoa está infectada apenas com base no toque, e a afirmação de que beber vinho eliminaria o Sars-Cov-2 do organismo do portador da doença.
3- Jornalistas devem se esforçar para explicar as implicações e os processos científicos das decisões cidadãs. Isso deve ser feito utilizando formatos e linguagens mais acessíveis, como vídeos educativos, histórias e ilustrações. Segundo ela, dizer apenas que a vacinação é benéfica não é suficiente: “Tem que apresentar as evidências científicas que justifiquem porque é necessário se vacinar, apresentar com clareza os fatos, para que o público de fato confie na informação.”
4- A incerteza deve ser comunicada como algo positivo e inerente à ciência. Certas perguntas feitas pela população – sobre a letalidade de novas variantes, até quando a pandemia irá durar, qual a validade da proteção das vacinas – ainda não têm uma resposta definida pelos cientistas, o que é perfeitamente normal. “Os profissionais não precisam se sentir culpados por isso. Os cientistas não sabem de tudo, e nós precisamos abraçar isso”, encoraja Rueda.
5- Rigor e honestidade devem ser priorizados sobre o furo de reportagem. Ao explicar corretamente o que está escrito e fugir do sensacionalismo, os jornalistas evitam a generalização do medo – especialmente no caso da COVID-19, uma doença nova em todo o mundo. “Precisamos levantar a bandeira de que tudo que será comunicado, precisa ser verificado. Até mesmo as pequenas notas. Tudo importa.”
Debate
Já no debate, o moderador Pablo Esteban comentou que a pandemia foi fundamental para o surgimento de novas articulações dentro das interações entre jornalismo e ciência. Com a drástica mudança no campo, jornalistas aprenderam a fazer novas perguntas para a ciência.
Apesar de anos atuando na área, Gori acredita não haver caminhos certos para o fortalecimento do vínculo entre jornalistas e cientistas. “O certo é que o vínculo tem que se estreitar. Há várias formas para isso acontecer, mas diversos fatores precisam ser levados em conta. Não tem receita de bolo”, explica.
Rueda alertou que, apesar das alianças serem benéficas para ambos, é preciso que haja um distanciamento entre os profissionais de ambas as áreas. “O papel dos jornalistas não se restringe a apoiar e aplaudir os cientistas. Inclui também demonstrar o processo de aquisição de conhecimento que, como em todas as áreas, tem coisas boas e coisas ruins, como por exemplo, o abuso de autoridade”, justifica a jornalista. Ela destaca a importância de não tomar nem a ciência nem os cientistas como puros e imutáveis.
Rueda comentou que as cinco lições listadas em sua apresentação não servem apenas para noticiar a pandemia, mas também outras crises que o planeta está enfrentando – como as mudanças climáticas e as doenças tropicais. “Estamos falando de situações que fazem com que as pessoas precisem de informações contextualizadas e atualizadas, para saber como lidar. São situações que englobam políticas públicas e diversos agentes. Os cidadãos precisam ter consciência dessas conexões.”
Leia todas as matérias da ABC sobre o workshop “Desafios e realidades da comunicação pública da ciência na América Latina e no Caribe”:
03/setembro – Workshop reúne pesquisadores latinos em debate sobre os desafios da comunicação científica
10/setembro – Workshop: o Direito à Ciência na América Latina e Caribe