Participantes e ouvintes participam de bate-papo ao fim do webinário “COVID-19, Jornalismo Científico, Negacionismo e Democracia”.

O Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo Cruz promoveu, em 18 de agosto, o webinário “COVID-19, Jornalismo Científico, Negacionismo e Democracia”. Sob coordenação do membro titular da ABC Renato Cordeiro e da pesquisadora Maria de Lourdes A. Oliveira, o evento reuniu repórteres e colunistas das áreas de ciência, saúde e meio ambiente de grandes jornais do país, como O Globo, Estado de São Paulo e El País Brasil, além de contar com a presença de pesquisadores e professores de universidades federais. O evento foi também uma homenagem ao jornalista de ciência Mauricio Tuffani, morto em maio de 2021. 

Cordeiro abriu o evento destacando que a humanidade vive momentos dramáticos com a COVID-19. Os dados são alarmantes: levou-se um ano para que o país atingisse 1 milhão de infectados, mas apenas seis meses para que atingisse mais 1 milhão. 

As grandes campanhas negacionistas, em oposição ao uso de máscaras e ao distanciamento social, prejudicaram o combate à pandemia e acentuaram o cenário de devastação emocional coletiva que o país vivencia. Enquanto o terraplanismo e o descrédito à ciência se tornaram preponderantes, outras questões de fato significativas acabaram ficando em segundo plano, como o desrepeito aos direitos inalienáveis dos povos indígenas e o avanço do aquecimento global. “Estamos vivendo uma situação semelhante a 1904, quando ocorreu a Revolta da Vacina, contra a vacinação obrigatória de varíola. A notícia falsa da época era que quem tomasse a vacina ficaria com feições de bovinos”, comparou Cordeiro.

O avanço das tecnologias de informação, o uso de softwares espiões e o uso descontrolado das redes sociais foram alguns dos inimigos do jornalismo científico durante a cobertura da pandemia. Jornalistas tiveram que lidar com um ritmo nunca antes visto de publicações e que ajudar o público a diferenciar artigos sem embasamento científico, além de incentivar o uso de vacinas e a manutenção das medidas de segurança. “Todo o trabalho do jornalismo científico, muitas vezes sofrendo perseguições e ameaças, serviu para consolidar ainda mais as instituições brasileiras e validar os valores democráticos. Uma pena que Tuffani não esteja conosco para dar seu depoimento”, lamentou Cordeiro.

Luisa Massarani, pesquisadora da Fiocruz

Massarani coordenou uma pesquisa que analisou como jornalistas realizaram a cobertura da pandemia, destacando como foram elaboradas as matérias baseadas em preprints na Folha de S. Paulo, no jornal britânico The Guardian e no The New York Times. A pesquisa apontou as seguintes conclusões:

  • não mencionam as fontes, mas geralmente fornecem o link do preprint;
  • um grande número de jornalistas não interagem com o cientista responsável pelo estudo, mas sim com cientistas não-relacionados ao estudo;
  • principais temas: eficácia de medicamentos para tratamento da doença, taxa de transmissão;
  • muitos jornalistas não cobrem preprints pelos seguintes motivos: falta de confiabilidade, falta de familiaridade e/ou falta de tempo. Os jornalistas que trabalham com essas fontes frequentemente mencionavam que o artigo não havia passado pela avaliação de pares e procuraram por outras fontes que pudessem atestar a veracidade do conteúdo, além de informarem detalhes sobre o andamento da pesquisa. 33% dos jornalistas entrevistados não tomavam nenhum cuidado particular ao cobrir preprints.

Além dos fatos apresentado, Massarani relatou que muitos jornalistas comentaram que os cientistas estavam mais disponíveis nesse momento. “Essa é uma mensagem importante para o pós-pandemia. Os cientistas precisam continuar disponíveis para fortalecer o jornalismo científico”, aconselhou.

Carla Gimenez, El País Brasil

Gimenez traçou uma linha do tempo, lembrando que, no princípio da pandemia, as principais matérias veiculadas no site do El País Brasil vinham do exterior, principalmente Itália e Espanha. As cenas impressionantes de mortes e ocupação de hospitais nesses países foram uma oportunidade de o veículo expor o que aconteceria no Brasil caso a situação não fosse controlada. 

A jornalista mencionou a forma como o vírus cruzou com a política de uma maneira profunda no país, com as frequentes manifestações públicas e o estímulo ao não uso de máscaras por parte de governantes. Enquanto o jogo político ajudava a favorecer a disseminação do vírus, o jornalismo científico ascendeu como fonte de credibilidade, assumindo o papel de orientar e informar a população. “Nunca aprendemos tão rapidamente em tempo real. O jornalismo precisou navegar contra a corrente que o governo quis provocar”, disse. Entre as muitas dificuldades enfrentadas pelos profissionais da comunicação, ela destacou a dificuldade de separar os tipos de artigos e o aumento da carga de trabalho dos jornalistas. Estes acreditavam que, ao trabalhar mais, salvariam mais vidas. Para tornar a informação mais acessível ao público, passaram a recorrer mais a infográficos e animações.

“O que mais me impressionou ao longo da nossa cobertura foi ter cientistas ameaçados de morte por prevenir mortes em massa”, confidenciou Gimenez, ao destacar a importância de cientistas como Margareth Dalcomo e Átila Iamarino, que se tornaram “íntimos” dos brasileiros.

Apesar de todos os contras, ela destacou o bom índice de vacinação atingindo no mês de agosto e mostrou que ainda há esperança. “Apesar de todo o barulho dos anti-vacina, não foi possível calar o jornalismo científico. No entanto, se a vacinação tivesse começado antes, nossa realidade poderia ser muito menos desumana.”

Fabiana Cambricoli, Estado de S. Paulo

Para Fabiana Cambricoli, o maior desafio imposto pelo negacionismo foi a sua origem: fontes que a população esperava que fossem confiáveis, como as oficiais do Governo Federal e Ministérios. 

A jornalista especialista em saúde e ciência, que já cobriu epidemias de dengue e zika, destacou que a pandemia de COVID-19 teve dilemas e desafios exclusivos, como:

  • o grande volume de informações se contrapondo à escassez de jornalistas especializados no assunto; 
  • a necessidade do jornalista de transitar por subtemas durante o avanço da pandemia, como a análise de dados epidemiológicos, divulgação de estudos científicos e conceitos de epidemiologia; 
  • a perda de tempo e energia tentando conscientizar a população das diretrizes corretas a serem seguidas e indo contra o que o governo estava divulgando;
  • o dilema entre agilidade e qualidade na publicação dos estudos e reportagens.

O cenário exigiu cuidado redobrado dos profissionais da comunicação, especialmente quando a reportagem tratava de estudos em andamento. “É inviável fazer apenas uma nota rápida com base no abstract. É preciso levar em conta a metodologia, o tamanho da amostra e as limitações da pesquisa. Os contras já precisam ser expostos logo no título, pois muitas pessoas utilizavam apenas os títulos para disseminar conteúdo falso”, explicou a jornalista.

Ela destacou que uma pequena informação equivocada era capaz de tomar grandes proporções e causar danos para a saúde coletiva – especialmente em uma época em que alguns médicos (especialmente os patrocinados pelas empresas que produzem determinados fármacos), Ministério da Saúde e fontes oficiais se tornaram os principais disseminadores de desinformação. Um desses exemplos é o uso da hidroxicloroquina – a divulgação de um artigo que abordava os possíveis benefícios do medicamento para o tratamento precoce da COVID-19 tornou-se viral, levando à ampla adesão do “kit COVID” como forma de prevenção. Para Cambricoli, lidar com essa parte do público foi um grande desafio da cobertura pandêmica: “É realmente muito difícil tentar iniciar um diálogo com quem acredita em conspiração, em quem acredita que o vírus está sendo utilizado por uma briga política.”

A jornalista mencionou algumas lições aprendidas ao longo dos últimos meses para coberturas futuras: a primeira delas é possuir o domínio do tema, algo essencial; a segunda é realizar a comunicação sempre de forma didática, ressaltando as incertezas e explicando os riscos. Por último, para que haja equipe qualificada, é preciso que iniciativas para formação de jornalistas de saúde e ciência sejam tomadas.

Herton Escobar, Jornal da USP e Science

Escobar iniciou sua fala elogiando o consórcio dos veículos de imprensa, uma ferramenta fundamental para gestão da infodemia diante da decisão do governo de restringir o acesso aos dados oficiais. 

Em sua apresentação, o jornalista da USP comparou a pandemia a um grande festival, onde a atração principal foi um sistema bem financiado de fake news. “Nessa versão caótica do Rock in Rio, cientistas e instituições de pesquisas são violinistas solitários, lutando pela atenção do grande público. A grande questão agora é como fazer com que os cientistas, com menos divulgação e financiamento, cheguem ao palco principal”, ressaltou o especialista, que trabalhou por 20 anos no jornal O Estado de S.Paulo, na cobertura de ciência e meio-ambiente. 

Segundo Escobar, é preciso que os vínculos entre cientistas e jornalistas sejam estreitados para promover um benefício mútuo. “A valorização da ciência precisa permanecer durante os tempos de calmaria, o que pode ser feito dando destaque às novas pesquisas, inserindo a comunidade científica nos grandes debates e estabelecendo uma ponte entre cientistas e sociedade”, enfatizou. E para que essa ponte seja eficiente, Herton Escobar deu grande importância à comunicação multimídia, capaz de atrair a atenção do público.

Marcelo Leite, colunista da Folha de São Paulo

O jornalista Marcelo Leite relembrou a matéria mais importante da carreira de Tuffani: em 1989, o homenageado produziu uma matéria sobre os dados adulterados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) durante o governo de José Sarney. Na época, foi divulgado que o desmatamento da Amazônia desde o descobrimento do Brasil era de uma áre de 250 mil km². Após apuração de Tuffani, foi divulgado que o dado real seria de 370 mil km², número quase 50% maior do que o divulgado anteriormente. 

Segundo Leite, hoje em dia, é impossível que o governo manipule dados, uma vez que há dados liberados na esfera pública que permitem um controle social das informações que antes eram controladas exclusivamente pelo governo. “O consórcio de imprensa está aí para mostrar que, independente do governo, é possível fazer algum tipo de monitoramento da informação, na tentativa de expor a verdade e, eventualmente, até enfrentar multidões negacionistas.” 

Toda evolução tem seu lado bom, mas também tem seu lado ruim. Do ponto de vista do colunista, as redes sociais são “o grande megafone do negacionismo”. O negacionista supõe, na visão de Leite, que opinião tenha peso similar ao de evidências, fatos e dados auditados. “Precisamos usar o máximo de ferramentas e recursos da comunicação para tentar romper esse ciclo de descrédito à a ciência.” 

Yurij Castelfranchi, coordenador de curso de especialização em Comunicação Pública da Ciência (UFMG)

Castelfranchi defendeu a criação de mecanismos e plataformas que cumpram com a missão de manter a sociedade informada, mas também a capacite para a cidadania em democracias tecnocientíficas, como grande parte das democracias globais atualmente são categorizadas. Segundo ele, essas ações deveriam ser prioridades políticas: “Tem que haver capacitação para jornalistas da área de ciência, saúde e tecnologia, e também para os cientistas. É preciso que haja conhecimento de como funciona a ciência na mídia e como as pessoas se apropriam e usam a tecnologia, misturando-as com seus valores, objetivos e demandas.”

Para o pesquisador, o principal tripé para a construção de uma sociedade que se aproprie da ciência é composto por fomento, formação e investigação. Ele destacou que, há décadas, as pesquisas apontam que os negacionistas são uma minoria. No Brasil, apesar de crescente e perigosa, esse número ainda é menor do que nos EUA ou na Europa. “Precisamos de mecanismos reais de participação”, defendeu Castelfranchi. “Precisamos focar no jornalismo científico, mas expandir nossas percepções para outras formas de comunicação e em outras políticas. Apenas debater as fake news não é suficiente.”

Castelfranchi ressaltou que muitos confundem cidadania científica com conhecimento. “Mas a cultura não é feita de conhecimento, é feita de valores. A cidadania não é só conhecimento, nem só direito. É saber seu lugar de pertencimento na sociedade científica e assumir suas responsabilidades – algo que começa nas notícias que você consome”, argumentou. 

Castelfranchi coordena o Amerek, curso de especialização em comunicação da ciência da Universidade Federal de Minas Gerais. A iniciativa é uma forma de expandir os cursos de divulgação científica para além do eixo Rio-São Paulo, que vem recebendo demandas de estados das regiões Norte e Nordeste. O objetivo do curso é formar comunicadores que almejem construir pontes e contatos, conexão entre saberes. Segundo Yurij, “o problema não é como levar a ciência para as pessoas e sim como trazer a pessoa pra dentro da cidadania científica, fazendo com que elas se apropriem desse saber”.

Debate

Luiz Carlos Dias, membro titular da ABC ativo na luta contra a desinformação em tempos de pandemia, afirmou que o país vive um cabo de guerra entre ciência e pseudociência, acentuado pelo cenário de 15 milhões de desempregados e 30 milhões na informalidade. Em sua visão, o caminho ideal para os cientistas se prepararem para o futuro é o investimento em educação básica, letramento digital e a cobrança aos agentes políticos.  

Segundo Massarani, apenas isso não basta: é necessário que haja atuação em várias frentes. Ela destacou que, nos últimos 20 anos, houve investimento e evolução na divulgação científica. A tendência é que os investimentos e as capacitações continuem, tornando possível que cientistas e sociedade atuem em conjunto para consolidação de democracias tecnocientíficas no futuro.  

O químico e membro titular da ABC Aldo Zarbin desafiou os palestrantes a fazerem uma análise crítica do papel da grande mídia na cobertura pandêmica e na disseminação de conteúdos negacionistas. Segundo ele, grandes veículos midiáticos deram espaço para negacionistas como colunistas, que acabou popularizando inverdades como, por exemplo, a distribuição do “kit gay” em colégios. Massarani defendeu que é muito complicado falar da mídia como se fosse algo homogêneo. “Isso acontece porque existe a pluralidade nas mídias e na comunidade científica. Um único jornal possui editorias distintas, concepções diferentes… Infelizmente, há vozes negacionistas que têm muito peso”, explicou. 

Herton Escobar completou que há uma “zona cinzenta” entre liberdade de expressão e o abuso dessa liberdade. “Quando fatos e dados confirmados por pares são substituídos por ‘opiniões’, pode ocorrer um risco à saúde pública. Isso então precisa ser contido”, assinalou. Escobar destaco o pluralismo de ideias, muito prezado pelos jornais. “O jornalismo tem um apego muito forte em expor ‘o outro lado’ para evitar que o aquela mídial se torne um panfleto enviesado. Um outro ponto é que as redações são uma amostra da sociedade – e todos sabemos que há negacionistas em todos os lugares.”

Assista à gravação completa no canal do IOC no YouTube.