Leia matéria de Vinícius Lemos para a BBC News Brasil, publicada em 30 de maio:

O pesquisador Glauco Meireles quer desenvolver um projeto para estudar a aplicação do estanho em baterias de lítio. “O Brasil está entre as maiores reservas de estanho do mundo. Então, eu quero agregar valor tecnológico a uma matéria-prima nacional para o desenvolvimento de dispositivos tecnológicos”, explica Meireles à BBC News Brasil.

Ele, que tem mestrado e doutorado na área da Química, inscreveu o projeto no edital de bolsas de doutorado e pós-doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) de 2020.

Para conseguir conduzir o projeto, ele precisaria dedicar, ao menos, oito horas diárias à pesquisa em laboratório durante cinco dias por semana. “Mas na verdade, a gente acaba trabalhando muito mais do que isso”, diz.

O comitê que analisou a iniciativa dele apontou que se trata de um tema que colabora para o desenvolvimento da ciência e tecnologia no país. Apesar disso, Meireles não esteve entre os aprovados com bolsa pelo CNPq.

Assim como ele, outros milhares de pesquisadores brasileiros inscritos no edital do CNPq de doutorado e pós-doutorado de 2020 não receberam bolsas para conduzir as pesquisas, mesmo tendo seus projetos elogiados pelos pareceristas (especialistas que avaliam a proposta e emitem uma nota técnica sobre ela).

Dos 4.279 projetos inscritos na chamada de 2020 para o Brasil, 3.080 foram aprovados com mérito por pareceristas. Destes, somente 396 foram selecionados para receber bolsas. Para o exterior foram aprovadas 73 propostas com bolsas, entre as pouco mais de 2 mil inscritas — não foram divulgadas quantas tiveram boas avaliações de pareceristas. Ao todo, segundo o CNPq, foram investidos R$ 35 milhões no edital, que concedeu 469 bolsas.

Enquanto em anos anteriores havia a tradição de diferentes cronogramas para distribuição de bolsas, em 2020 houve somente um. Na chamada de 2019, por exemplo, foram dois cronogramas: o primeiro com 324 bolsas de doutorado e pós-doutorado, totalizando R$ 24,8 milhões, e o segundo com 470 bolsas, com mais R$ 35 milhões.

O CNPq afirma, em nota, que concedeu as bolsas referentes à chamada de 2020 de acordo com o limite de recursos previsto. A entidade argumenta que passa por um período de limitações e incertezas impostas pela pandemia de covid-19, pois não sabe quando haverá retorno “da normalidade das atividades acadêmicas e, principalmente, para a mobilidade dos pesquisadores, em especial para o interior”.

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Sem bolsas, muitos pesquisadores precisam reavaliar suas carreiras. “A vida deles é estressante, porque não há recursos. Se você olhar a sinalização do futuro para o jovem é péssima”, diz a vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências, Helena Nader.

Em nota, o CNPq afirma que planeja lançar uma chamada em 2021 para contemplar R$ 35 milhões para pesquisas de doutorado e pós-doutorado no Brasil e no exterior, após recente liberação de créditos suplementares deste ano (aqueles que precisam de aprovação do Congresso) para bolsas e projetos. Segundo o CNPq, essa chamada seria uma forma de complementar a de 2020.

‘Sem a bolsa não tem como sobreviver’

O CNPq pagou, no ano passado, 79,6 mil bolsas em diversas modalidades. O recurso é fundamental para os pesquisadores, pois é a fonte de renda deles. O valor varia conforme a formação: para doutorado, por exemplo, corresponde a R$ 2,2 mil, enquanto para pós-doutorado sênior pode chegar a R$ 4,4 mil.

Situações como demora para o lançamento de editais, atraso em pagamentos ou pouca concessão de bolsas são consideradas extremamente prejudiciais para o avanço da ciência, da tecnologia e da inovação no Brasil.

“Sem a bolsa não tem como sobreviver, visto que a dedicação é exclusiva”, explica Glauco Meireles. Se ele conseguisse a bolsa, receberia o valor correspondente ao pós-doutorado júnior: R$ 4,1 mil mensais.

A bolsa do CNPq era a prioridade do pesquisador para 2021. “Para fazer um projeto sem bolsa, este precisaria ser dividido em 20 horas semanais no laboratório e 20 horas semanais trabalhando. Mas na atual conjuntura é muito difícil conseguir um trabalho de 20 horas semanais que pague suficientemente bem. É economicamente inviável”, explica.

O projeto que Meireles inscreveu no edital relaciona dois temas nos quais ele se aprofundou nos últimos anos. Entre 2012 e 2017, durante o mestrado e doutorado, ele pesquisou sobre o estanho. Nos anos seguintes, trabalhou com baterias de lítio, usadas em carros elétricos, smartphones, notebooks e câmeras digitais.

Por meio do conhecimento adquirido nos últimos anos, decidiu estudar uma relação entre estanho e baterias de lítio.

“É um estudo de uma técnica de obtenção do óxido de estanho com potencial aplicação em baterias de lítio. Essas baterias são estudadas pela capacidade de carga que possuem e são consideradas a principal alternativa para a aplicação em baterias de carro elétrico, além de ter outras aplicações, como em relógios ou celulares”, explica o pesquisador.

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Cortes de recursos para a ciência e tecnologia

As dificuldades para concessão de bolsas são explicadas por uma situação que se tornou recorrente nos últimos anos: o corte de recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).

Em 2021, os recursos discricionários (que não são obrigatórios, dependem da disponibilidade de verbas e são usados para áreas como as pesquisas) do ministério correspondem a R$ 2,8 bilhões, sendo que 49% desse valor depende de créditos suplementares (que precisam de aprovação do Congresso). Em 2020, a pasta tinha verba de R$ 3,6 bilhões.

Os números mais recentes representam uma forte queda na pasta quando comparados a 2014, período em que esses recursos discricionários do MCTI correspondiam a R$ 8,7 bilhões — nos anos seguintes o país reduziu cada vez mais o investimento em ciência, tecnologia e inovação.

O orçamento do CNPq para este ano é de R$ 1,2 bilhão — 55% dependentes de créditos suplementares. Para bolsas de pesquisas serão destinados R$ 944 milhões, valor 12% menor que o do ano passado. Conforme levantamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o recurso total destinado ao órgão em 2021 é cerca de 8% menor que o do ano passado, que já era inferior aos períodos anteriores.

Disputa por verbas

A principal expectativa do MCTI para amenizar o cenário de redução de verbas e cortes de bolsas é a liberação de R$ 5,1 bilhões referentes a cerca de 90% do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), uma das principais fontes de recursos da ciência e tecnologia no país.

O FNDCT é obtido por meio de impostos e tributações de setores que exploram recursos naturais e outros bens da União.

Cerca de 90% do recurso do FNDCT deste ano foi colocado em uma reserva de contingência por determinação do governo federal. A principal alegação do Ministério da Fazenda é de que a liberação desse montante estoura a regra do teto de gastos.

Em março deste ano, o Legislativo proibiu, por meio de uma Lei Complementar, o contigenciamento do FNDCT e apontou que o fundo deve ser encaminhado ao MCTI.

Porém, o Congresso Nacional aprovou a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2021 um dia antes da publicação da Lei Complementar sobre o FNDCT no Diário Oficial. Desta forma, a proibição do contigenciamento não foi incluída na LOA.

Em carta divulgada nesta semana, entidades da área de Ciência, Tecnologia e Inovação pediram que os R$ 5,1 bilhões “sejam imediatamente e integralmente liberados para a função estabelecida em lei, que é o financiamento da pesquisa científica e tecnológica”.

“Os avanços da ciência, tecnologia e inovação têm se mostrado imprescindíveis para a superação da crise sanitária, econômica e social, em razão da pandemia de covid-19”, diz trecho da carta.

“O sistema nacional de ciência e tecnologia, consolidado nas últimas décadas, está em vias de colapso. Os sucessivos cortes orçamentários precarizam universidades e institutos de pesquisa, afetando seriamente a pesquisa realizada nessas instituições e a formação adequada de profissionais. O investimento escasso em P&D (pesquisa e desenvolvimento) prejudica a inovação e a recuperação da economia”.

O cientista político Luis Fernandes avalia a atual situação da ciência e tecnologia no Brasil como dramática e aponta que o principal impacto desse cenário é que o país deixa de construir o próprio futuro.

“O que caracteriza uma sociedade e o conhecimento é, cada vez mais, a geração de valor. Se não investirmos em capacidade científica para inovação autônoma, o país fica condenado a se inserir na economia mundial sem capacidade de gerar empregos mais capacitados”, declara o ex-presidente da Finep.

O especialista diz que um dos agravantes para o atual cenário foi a falta de preocupação do governo Jair Bolsonaro com a ciência e a tecnologia. Mas Fernandes avalia que um fator já prejudicava duramente o segmento no país na gestão anterior: a regra do teto de gastos governamentais adotada durante o governo Michel Temer (MDB).

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O futuro da ciência no Brasil

A queda nos números de bolsas de pesquisa no país representa um duro retrocesso que levará, ao menos, 10 anos para ser revertido, avalia Celso Pansera, ex-ministro de Ciência e Tecnologia no governo Dilma Rousseff (PT), durante o fim de 2015 e abril de 2016.

“Digamos que comecem a recuperar os investimentos [do governo federal] no ano que vem. Levará pelo menos uma década para recuperar o nível que tínhamos em anos anteriores, [quando havia crescimento no setor]”, afirma Pansera à BBC News Brasil.

“Em 2015, a execução para bolsas, pesquisas e desenvolvimento era de R$ 1,6 bilhão. Em 2020 caiu para R$ 1,1 bilhão. Agora, em 2021, é de pouco mais de R$ 900 milhões. Essa queda é enorme. Programas de pós-graduação foram abandonados, bolsas não foram renovadas e não foram lançados editais para novas bolsas. Isso vai minguando o sistema”, acrescenta.

Ele destaca que enquanto o CNPq atualmente possui pouco menos de 80 mil bolsas, em 2014 eram quase 105 mil. “O setor vai paralisando e morrendo por inanição. Os alunos que não têm bolsa, e não conseguem se sustentar sem elas, vão sendo expulsos desse sistema”, declara.

Com poucas oportunidades no Brasil, muitos cientistas decidem ir para outros países em busca de oportunidades na área da ciência e tecnologia.

Em grupos de pesquisadores brasileiros, é comum que eles troquem dicas para que possam deixar o país. “Recentemente me candidatei a duas vagas no exterior e estou aguardando se recebo algum retorno”, conta o pesquisador Glauco Meireles.

Países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — como Alemanha, França, Itália, Estados Unidos, Reino Unido, entre outros —, da qual o Brasil almeja fazer parte, investem, em média, mais de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em pesquisa e desenvolvimento. Já países reconhecidamente inovadores, como Coreia do Sul e Israel, investem mais de 4% na área.

O Brasil, conforme a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), investiu pouco mais de 1% do PIB em pesquisa e desenvolvimento em 2018. Em 2020, estima-se que o investimento tenha sido ainda menor.

“O Brasil usou em torno de 0,5% a 0,7% do PIB nessa área no ano passado. Isso não é investimento, porque não dá nem para a sobrevivência”, declara Helena Nader, vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

“O problema do Brasil é que nos últimos anos, não apenas no governo Bolsonaro, há uma cultura de que Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação são gastos. Outras nações encaram isso como investimento”, completa Helena.

“O grosso do investimento nas universidades dos Estados Unidos ou na Europa é de dinheiro público. O investimento do setor privado nas universidades e institutos diz respeito a perguntas e interesses da própria indústria, que ainda assim recebe incentivo (dos governos locais) para investir em inovação. Inovação é atividade de risco, os países desenvolvidos sabem disso e por isso investem”, diz.

“O investimento em ciência, tecnologia e inovação leva tempo, é uma forma de olhar para o futuro. Não é como uma estrada, que começa e acaba em um prazo. O Brasil está na contramão nesse sentido”, acrescenta a vice-presidente da ABC.

Nesse cenário, Helena afirma que é comum que muitos pesquisadores optem por deixar o Brasil quando conseguem oportunidades. “Conheço quatro brilhantes cientistas que foram embora para os Estados Unidos ou para a Inglaterra nos últimos anos”, declara.

“Com essa falta de visão sobre a ciência e a educação no Brasil, vai acontecer muita fuga de cérebros, porque os nossos estudantes são muito bons e ganham bolsa no exterior facilmente.”

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