Ser mulher é, muitas vezes, significado de conciliar jornadas duplas – ou até mesmo triplas – de trabalho. Historicamente, mulheres sempre foram orientadas para cuidar não apenas de seus filhos, mas também das tarefas domésticas e de parentes enfermos; sem saída, muitas acabam deixando de lado sua carreira e seus sonhos em prol das obrigações do lar. No ambiente científico, essa visão antiquada da posição da mulher na sociedade ainda é muito presente: em um meio predominantemente masculino, ainda há quem enxergue a maternidade com estigma. A exigência pela alta produtividade e os curtos prazos de submissão de artigos atingem diretamente as mães pesquisadoras, frequentemente prejudicadas pela ausência de editais inclusivos e políticas de apoio à maternidade.
Após mais de dois anos, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) aprovou a inclusão formal do campo de licença-maternidade nos currículos da plataforma Lattes, principal sistema para cadastro das atividades dos pesquisadores brasileiros. A incorporação do novo campo na plataforma ocorreu no dia 15 abril, e é considerada por muitos uma vitória na comunidade científica brasileira. Na linha de frente dessa luta está o Parent in Science, pioneiro e grande protagonista do movimento Maternidade no Lattes, que contou com o apoio de centenas de cientistas brasileiros.
Surgido em 2016, o Parent in Science é um projeto que visa ampliar os debates sobre parentalidade e ciência no contexto nacional. O projeto foi criado por Fernanda Staniscuaski, professora do Departamento de Biologia Molecular e Biotecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A inclusão do campo de licença-maternidade no Lattes foi uma das primeiras lutas travadas pelo projeto: a carta enviada para a CNPq, ainda no primeiro ano de fundação do projeto, contou com a assinatura de 34 sociedades científicas. Em 2020, a Comissão de Gênero da Sociedade Brasileira de Matemática/Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional (SBM/SBMAC) também enviou uma carta ao CNPq apoiando a inclusão deste quesito no Lattes.
O percentual de mulheres na academia conforme se avança na carreira científica no no Brasil: 55% dos bolsistas de iniciação científica são mulheres; já entre os bolsistas de produtividade em pesquisa, o número cai para 36%. Uma pesquisa realizada pelo Parent In Science em 2017 mostra que, enquanto as cientistas sem filhos têm uma curva ascendente em sua produção científica, as que se tornam mães têm uma queda drástica nas publicações até o quarto ano após o nascimento ou adoção do primeiro filho, para só depois disso começar a ascender novamente.
A inclusão do campo de licença maternidade no Currículo Lattes surge para preencher as lacunas nos perfis das pesquisadoras, que até então vinham sendo penalizadas pela baixa produção durante o período de adaptação com os filhos. Um artigo publicado em 2018 no portal Gênero e Número comprovou o “efeito tesoura” que reduz o
“A maior importância desta conquista é simbólica. Ela não é apenas mais uma linha no Lattes, ela significa o reconhecimento e acolhimento de algo diferente do padrão adotado por muitos anos no sistema de avaliação de produtividade”, afirmou a matemática Adriana Neumann, membro afiliada da ABC e uma das representantes do projeto. A pesquisadora é mãe de Anna Carolina, de 6 anos.
Suporte às mães durante a pandemia e preocupações com o gender gap
O movimento Maternidade no Lattes é apenas uma das muitas ações do Parent in Science, que atua em várias frentes visando promover um ambiente cada vez mais inclusivo para mães e pais dentro da academia.
No último ano, os membros do projeto elaboraram a pesquisa “Produtividade acadêmica durante a pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade”, que escancarou as dificuldades e as problemáticas enfrentadas por pesquisadores – principalmente por mães cientistas – durante a crise do COVID-19. Os dados mostraram que, especialmente em relação a submissões de artigos, mulheres negras (com ou sem filhos) e mulheres brancas com filhos (principalmente com idade até 12 anos) foram os grupos cuja produtividade acadêmica foi mais afetada pela pandemia.
Motivados por esses resultados, o Parent in Science fez uma campanha de arrecadação de fundos chamada Programa Amanhã, cujo objetivo era financiar o pagamento de auxílio dependente para que alunas pudessem concluir os seus cursos de pós-graduação. Foram 750 candidatas inscritas e com os fundos arrecadados foi possível contemplar 25 alunas com uma bolsa de 705 reais até a conclusão de seus cursos de mestrado ou doutorado.
Neumann considera esta a maior ação do PS até agora: “Os dados obtidos nessa pesquisa e os dados do programa Amanhã só mostram que é urgente a necessidade de políticas públicas que apoiem as alunas que são mães, principalmente depois da pandemia, pois caso contrário o que vamos ver é um aumento significativo do gender gap”.
Diminuir o gender gap (ou a disparidade de tratamento e salário entre homens e mulheres) é um dos principais objetivos das políticas do PS, que defende a criação de políticas de apoio à permanência de mulheres na ciência e editais que incluam a maternidade na sua avaliação. Pensando nas melhores diretrizes para evitar que isso aconteça, o projeto elaborou uma lista de diretrizes para a elaboração de editais inclusivos. O futuro pós-pandemia pode ser preocupante para as mães cientistas caso essas políticas não sejam aderidas.
A pesquisa “Closing the Gender Gap”, realizada em 2015 pela empresa de consultoria empresarial norte-americana McKinsey & Company é utilizada como referência até os dias de hoje. Os dados levantados apontam que se houvesse a equidade de gêneros no mundo, o PIB mundial teria um aumento de US $28 trilhões em sete anos. Essa pesquisa ainda revelou que se a desigualdade tivesse fim no Brasil, o PIB local teria um aumento de US$ 850 bilhões.
Um dado importante provém de outro estudo da própria McKinsey & Company divulgado em 2018, que destaca a importância da gestão das mulheres. Segundo o estudo, as empresas lideradas por mulheres têm, em média, rendimentos 21% acima da média industrial em seu país.
Próximos objetivos
A professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Angélica Thomaz Vieira lembrou como foi seu processo de adaptação quando retornou da licença-maternidade: “Quando eu tive meus filhos, eu não conseguia fazer amamentação exclusiva e também não consegui dedicar aos meus filhos exclusivamente, porque eu não tinha como levá-los pro laboratório para dar leite materno. Então, eu tinha que abrir mão do meu trabalho para poder amamentar. Não existia nenhum local na instituição do qual eu trabalho onde eu poderia estar ao menos tirando o leite materno.” Para ela, a inclusão de locais como esses é apenas um detalhe, mas que faz a diferença quando você está se adaptando à rotina do trabalho e à rotina da criança. Vieira compartilha o cuidado dos filhos, Rafael (2 anos) e Estela (4 anos), com o esposo, também cientista. Ainda assim, ela afirma que a rotina é pesada.
“Os dados analisados mostram que uma atenção especial deve ser dada às alunas quando se fala de políticas de apoio à permanência de mulheres na ciência. Acreditamos que essas políticas devem incluir a criação de espaços que acolham as crianças nos ambientes acadêmicos, tais como recreação em eventos científicos e creches nas universidades”, completa a professora Neumann.
Pensando em situações similares às de Viera, o Parent in Science se mantém firme na produção de textos e outros materiais para auxiliar na conscientização sobre a parentalidade na academia, que podem ser encontrados no site do projeto. Entre os destaques das publicações, estão guias práticos de como oferecer recreação para crianças em eventos científicos e uma carta sobre os impactos da pandemia na vida acadêmica das mães publicada na revista Science em maio de 2020. Entre outras ações do grupo, estão incluídas as frequentes análises dos impactos da parentalidade na carreira acadêmica dos cientistas brasileiros e a divulgação dos dados obtidos. Até o momento, foram feitas três pesquisas: uma em 2019, antes da pandemia; e duas durante a pandemia, que podem ser conferidas aqui e aqui.
Outra demanda que o Parent in Science visa atender é a inclusão de um campo para a maternidade na Plataforma Sucupira da Capes. Os programas de pós-graduação não querem ter os seus índices na avaliação da Capes prejudicados e, por isso, desligam as docentes que têm um período de baixa produtividade por conta da maternidade – criando uma barreira ainda maior para as pesquisadoras, que ficam impossibilitadas de orientarem alunos e acabam diminuindo ainda mais sua produtividade.
Pesquisas recentes apontam que, quanto mais diversificado o grupo de pesquisa, melhores são os resultados, tanto na ciência quanto na economia. Para Adriana Neumann, a inclusão da diversidade é fundamental desde a constituição de comissões julgadoras até a formação de um grupo de pesquisa. Outras iniciativas a serem consideradas para a promoção de um ambiente de pesquisa mais democrático é a promoção do combate ao viés implícito nos processos avaliativos e de reflexões sobre o que deve ser considerado como excelência em pesquisa. “Devemos lutar para que o grupo de cientistas brasileiros seja diverso – aqui falo, não só das mães, mas também de todos os grupos sub-representados – para que consigamos produzir uma ciência melhor”.