No sábado, dia 3 de abril, faleceu de causas naturais o Prof. José Rodrigues Coura, 93 anos, respeitado cientista e incansável lutador contra nossas doenças endêmicas. Neste momento em que algumas nações padecem sob a negação do conhecimento, da razão e cultura e sobretudo da ciência, alguns colegas e amigos do Prof. Coura resolveram prestar-lhe esta derradeira homenagem.

“Um mestre, figura humana excepcional, amigo atento e leal. Ainda que tenha sido visto por muito tempo como um pesquisador e um gestor de perfil mais conservador, especialmente pelas divergências com algumas propostas defendidas pelo grupo que passou a conduzir a gestão da Fiocruz sob a liderança de Sergio Arouca, tratava-se na verdade de uma personalidade generosa, capaz de apoiar estudantes e profissionais nos períodos mais difíceis, acolher novas lideranças científicas e promover ideias inovadora.

Expoente da pesquisa em doença de Chagas e da medicina tropical, praticava seu ofício como os grandes mestres desse campo de conhecimentos.

Daí a perspectiva ampla, pode-se mesmo dizer socioecológica, na Academia Nacional de Medicina por mais de 20 anos e durante a minha época de pesquisador visitante no Instituto Oswaldo Cruz que orientou seus trabalhos.

Isto se evidenciava na anamnese dos pacientes nos diferentes municípios em que realizou seus estudos. Tudo interessava: os dados clínicos; a alimentação; as condições de moradia; os hábitos de lazer e as redes sociais.

Em entrevista para a pesquisadora Simone Kropf, da Casa de Oswaldo Cruz, todas essas características, muitas presentes em outros colegas e amigos de sua geração, aparecem comentadas por ele com paixão e humor. Por esta razão o vejo como mestre, alguém que deixa discípulos e um legado. Estará sempre presente.”

Nísia Verônica Trindade, presidente da Fiocruz, membro da Academia Brasileira de Ciências


“Um nordestino arretado. Conheci Coura no início da década de 80 quando, recém chegado na Fiocruz vindo da UnB, a convite de Wladimir Lobato Paraense, ele foi nomeado vice-presidente da Fiocruz e diretor do Instituto Oswaldo Cruz. Coura, discretamente como era aconselhável naqueles tempos, ia tentando trazer cérebros para popular a Fiocruz, tão afetada pela ditadura militar que agonizava, mas não morria. Nomes como Luiz Rey, Leonidas e Maria Deane estavam na sua caderneta de endereços e em breve viriam enriquecer a Fiocruz. 

Um dia me chamou em seu gabinete e me informou que na realidade tinha pensado em outro nome para chefiar um futuro Departamento de Bioquímica, mas que essa pessoa não tinha aceitado a condição de dedicação exclusiva ao cargo. Perguntou-me se aceitaria essa missão. Disse que sim, mas que proporia que esse futuro setor do IOC se denominasse ‘Departamento. de Bioquímica e Biologia Molecular’. Aceitou sem pestanejar e, em 1o de abril de 1980, foi formalizada a criação deste setor no IOC, que deixou sua marca no desenvolvimento desta área na Fiocruz e mesmo no Brasil.

Como diretor do IOC e vice de Pesquisa, Coura sempre me apoiou. Mesmo em momentos críticos, quando a então toda poderosa Diretoria de Administração tentou ‘garfar’ recursos penosamente conseguidos de agências de fomento, sempre contei com seu decidido apoio. Foi neste período que Coura organizou e criou o Programa de Biologia Parasitária, que tinha introduzido uma organização inovadora: após um ano de curso os alunos recebiam um diploma de frequência e bom aproveitamento e só os melhores recebiam um convite para ingressar em um Programa de Mestrado em Biologia Parasitária. Assim, todos saiam contentes e a seleção se dava sem traumas e de um modo construtivo.

A dedicação de Coura à ciência e ao ensino sempre me fascinaram. Seu papel como formador de recursos humanos nessa área é indiscutível – cito apenas os nomes de Rivaldo Venâncio da Cunha e de Marcos Barros, dois pesquisadores de sucesso formados por Coura e com quem tive mais contato.

Incansável, Coura estava sempre enfrentando novos desafios, mas sempre na área da Medicina Tropical. Por trabalharmos em diferentes áreas de pesquisa e desenvolvimento, só ocasionalmente eu me dava conta das ‘andanças’ de Coura e seu grupo e do que iam ‘aprontando’ por esse Brasil afora. Lembro-me bem, por exemplo, quando ele descreveu ataque de populações humanas por triatomíneos silvestres no Amazonas, e propôs que isso poderia representar uma nova forma de transmissão da infecção chagásica1. Eu comentava com meus colegas dizendo ‘olha só onde anda o Coura, lá nos confins do Amazonas, descobrindo novidades na história natural da doença de Chagas’.

Nem tudo foram flores na minha relação com Coura. Quando decidi apoiar Sergio Arouca para presidente da Fiocruz, me senti meio peixe fora d’água entre meus pares no IOC. Recebi telefonemas do Brasil inteiro me perguntando como eu poderia apoiar alguém da saúde pública para presidir a Fiocruz. Coura, que eu definiria como um ‘conservador progressista’ teve seus momentos de dúvida se a Fiocruz sobreviveria a uma ou seguidas gestões de sanitaristas. Em um certo momento chegou a criticar abertamente essa mudança de rumo da Fiocruz, tendo ficado conhecida uma frase que usou para criticar a gestão Arouca – ‘A Fiocruz inchou, mas não cresceu’. Como eu fazia parte da ‘gestão Arouca’, como vice de pesquisa do saudoso Sérgio Arouca, foi natural que, em alguns momentos, eu e Coura tivéssemos divergências e debatêssemos isso em público. Claro que isso nunca impediu que sempre mantivéssemos uma relação de respeito e admiração, que se solidificou ao longo do tempo.

Minha ida em 1998 para a OMS, em Genebra, para dirigir o TDR – Programa de Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais, onde fiquei até dezembro de 2003, representou um hiato na minha trajetória de vida na Fiocruz, para onde vim em março de 1978. Mas esse afastamento de cinco anos e meio do Brasil me permitiu conhecer todo um outro mundo afetado pelas doenças tropicais, em particular me despertando para o impacto dessas enfermidades no continente africano e sudeste asiático. Pude conhecer outros grandes nomes da medicina tropical como Adetokumbo Lucas, nigeriano ex-diretor do TDR, um líder mundial falecido recentemente, em 25 de dezembro de 2020. Impossível não fazer uma associação com o falecimento de José Rodrigues Coura, reconhecendo que ambos e outros grandes nomes integram agora o panteão dos heróis da medicina tropical. Repousem em paz, as suas contribuições à ciência e à saúde nunca serão esquecidas!

Carlos Morel, CDTS/Fiocruz, Academia Brasileira de Ciências, pesquisador emérito do CNPq


Decano da medicina tropical brasileira, Coura foi um ativo participante do renascimento do Instituto Oswaldo Cruz, após o massacre de Manguinhos. Tive a honra de conviver o Coura como colega de Fiocruz e o prazer de contar com sua amizade.

O moderno pavilhão que abrigava seu laboratório e exibe até hoje um painel de azulejos de outro grande brasileiro, Cândido Portinari, silencia em reverência a seu ilustre inquilino que nos deixa tristes e saudosos.

Henrique Krieger, Academia Brasileira de Ciências e professor sênior da Universidade de São Paulo


“A dimensão de Coura como médico, cientista e humanista é de tal ordem que, imediatamente após sua morte, tivemos um sem número de depoimentos pessoais, comunicados institucionais, biografias mais ou menos alentadas, comentários sobre a sua produção científica e docente e até um belíssimo cordel “A Lenda do Zé de Taperoá’, presente do Wilson Savino aos 90 anos do Coura. Homenagens mais do que merecidas pela sua carreira e pela diversidade da sua obra.

Nesse meu texto, especialmente escrito para a nossa confraria, não vou descrever o impacto que o professor Coura teve na minha formação e na minha trajetória profissional, mas sim no que a nossa convivência e o seu exemplo me trouxeram como ser humano.

Convivemos no Instituto de Biofísica da UFRJ graças a amizade que o unia ao professor Chagas, na Academia Nacional de Medicina por mais de 20 anos e durante a minha época de pesquisador visitante no Instituto Oswaldo Cruz. Nesta última situação, apesar de não estar, no momento, exercendo cargo administrativo, o professor Coura era uma liderança inquestionável na instituição.

Além disso, tive o enorme privilégio de colaborar com ele no capítulo introdutório “Infecção e Doença Infecciosa” da segunda edição da sua monumental obra “Dinâmica das Doenças Infecciosas e Parasitárias” e na organização, na Academia Nacional de Medicina, de uma homenagem ao Prof. Carlos Chagas Filho.

Em todos os momentos de convívio se fez presente a marca de um pesquisador, médico e humanista absolutamente comprometido com a qualidade, o rigor ético o valor social e o alcance e a equidade dos benefícios do trabalho sendo realizado. Como professor, orientador e criador de cursos de pós graduação a sua preocupação foi sempre voltada para uma formação discente técnica e científica absolutamente rigorosa, priorizando a qualidade sobre a quantidade, aliada a uma clara percepção da responsabilidade social, do valor da ciência e de uma visão humanizada da produção discente. Vai fazer muita falta.”

Marcello André Barcinski, Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Ciências e Academia de Medicina


“Pós-graduando no Instituto de Microbiologia Paulo de Goés da UFRJ, ainda na Praia Vermelha, vim a conhecer nosso querido Coura no início de sua brilhante carreira na disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina.

Acompanhei ao longo dos anos sua notável atuação, como pesquisador, principalmente na doença de Chagas e em sua notável atuação na formação de recursos humanos que hoje atuam em todo o Brasil.

Acompanhei a sua interação com notáveis cientistas da área de medicina tropical da Universidade de Brasília. Entre eles, os saudosos/as Aluízio da Rosa Prata, Frederico Simões Barbosa, Wladmir Lobato Parense, Philips Marsden e Vanize Macedo.

Ficou viva em minha memória a sua presença na cerimônia de outorga de título de professor emérito da UnB à Carlos Eduardo Tosta, orientando de mestrado do querido Coura. Nessa ocasião Coura foi homenageado em um jantar com a presença de dezenas de pesquisadores e estudantes desse grande parasitologista e que ficará na galeria histórica da medicina tropical brasileira.”

Isaac Roitman, Academia Brasileira de Ciências e professor emérito da Universidade de Brasília


“Associei o momento de tristeza e de perda do Coura, ao que senti ao tomar conhecimento do falecimento do Zigman Brener e do Ziltonn Andrade. Todos, de forma direta ou indireta, meus mestres queridos e membros, titulares ou honorários, da Academia Nacional de Medicina e da Academia Brasileira de Ciências. Todos, com contribuições importantes à doença de Chagas, vista por diferentes ângulos, mas complementares. Todos, com grande prestígio na comunidade científica internacional e formadores de inúmeros líderes da pesquisa biomédica no país e em várias outros países da América Latina.

Meu primeiro contato com José Rodrigues Coura foi como aluno do quinto ano do curso médico da Faculdade Nacional de Medicina da UFRJ em março de 1972, abrindo o curso de Doenças Infecciosas e Parasitárias. Essa disciplina tinha sido fundada em 1925, sendo Carlos Chagas seu primeiro professor, seguido de outros como José Rodrigues da Silva, que foi sucedido pelo Mestre Coura em 1968. O Serviço ocupava o Pavilhão Carlos Chagas, onde pesquisa clínica e pesquisa básica conviviam lado a lado. 

Carlos Chagas Filho, que acompanhava de perto a minha formação no Laboratório dirigido por Hertha Meyer, me sugeriu procurar o Coura logo no início do curso de graduação e explicar-lhe o que eu fazia no laboratório. Passei a mostrar ao Coura tudo o que eu fazia, ainda como estagiário de iniciação científica.

Logo surgiu o convite de Coura e de sua esposa, Léa Coura, para fazer uma palestra no Centro de Estudos do Pavilhão para apresentar o que eu estava fazendo com o Toxoplasma e o interesse neste grupo de protozoários, que incluía ainda o Plasmodium gallinaceum e o Plamodium juxtanucleare, ambos causadores da malária em aves. Para esses estudos, tínhamos a influência de Lobato Paraense. Depois do seminário, Léa e Coura me convidaram para escrever uma revisão que foi publicada em 1974 na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.

As aulas ministradas por Coura eram claras, cobrindo desde aspectos básicos da biologia do agente parasitário às doenças por eles causadas. Lembro-me claramente das aulas sobre doença de Chagas e esquistossomose, temas de seu trabalho de pesquisa. Descrevia com detalhes o ciclo evolutivo desses agentes patogênicos, sua distribuição pelo país, aspectos epidemiológicos básicos e os dados clínicos resultantes de anamneses pormenorizadas. Sempre que possível, nos levava em seguida para as enfermarias, onde havia pacientes internados.

Daí em diante, nos tornamos amigos, participando juntos de muitos congressos. Foi ele quem me convenceu a aparecer de vez em quando nos célebres congressos sobre pesquisa aplicada em doença de Chagas realizados em Uberaba, organizados sob a liderança de Aluízio Prata. O encontrei muitas vezes na sala do Prof. Carlos Chagas Filho, sobretudo no período em que estava como vice-presidente da Fiocruz e diretor do Instituto Oswaldo Cruz. Era uma fase complicada e ele estava procurando trazer para o IOC um conjunto de pesquisadores brilhantes que tinham saído do país durante o governo militar. Lembro-me de nomes como Leônidas e Maria Deane, e Luiz Rey.

Nos últimos anos conversamos muito sobre suas pesquisas sobre a transmissão oral da doença de Chagas no estado do Amazonas. Muito me estimulou a organizar um laboratório de pesquisas naquele estado, o que acabamos de concretizar, inaugurando recentemente um moderno centro de microscopia confocal e eletrônica, onde assumi o compromisso de passar uma semana por mês nos próximos anos, procurando isolar novas cepas do T. cruzi, sobretudo as envolvidas na infecção por via oral, bem como analisar a biodiversidade de protistas patogênicos na região.”

Wanderley de Souza, Academia Nacional de Medicina e Academia Brasileira de Ciências.


“Quando voltei ao Brasil nos anos 70, tínhamos mais de 7 milhões de pacientes com doença de Chagas e cerca de 150 mil casos novos por ano. Apesar das restrições do ATO V, Coura logo me apresentou ao Firmino de Castro sugerindo que me incluísse no grupo do Aluizio Prata e Zigman Brenner para compormos o comitê do PIDE, Programa Integrado de Doenças Endêmicas do CNPq. O objetivo do PIDE era atrair e integrar pesquisadores de várias disciplinas no controle da doença de Chagas, malária e esquistossomose. Sobre a epidemiologia da doença eu só tinha a aprender com o grupo, nada a acrescentar. Mas acho que contribuí trazendo pesquisadores de outras áreas para o cenário da doença de Chagas. O PIDE multidisciplinar levou à formação de ponderável massa crítica de cientistas que deram suporte e consistência ao Programa Nacional para o Controle da doença de Chagas. Este Programa, contando com a dedicação do João Carlos Pinto Dias e outros epidemiologistas, eliminou no país a transmissão vetorial-domiciliar da doença de Chagas. Em seguida o programa foi adotado com sucesso por outras nações americanas.

Nos anos 80, Coura, eu, o Luiz Hildebrando e o Marcelo A. Camargo, juntaríamos mais uma vez nossos esforços no combate à epidemia de malária que se espalhava por Rondônia. Hildebrando era a autoridade em malária africana, mas no Brasil a autoridade era o Coura. Embora as atenções do Coura estivessem voltadas para o Amazonas, a malária era a mesma de Rondônia e sua experiência foi decisiva para nossos trabalhos. Mais recentemente, Coura dedicou-se a transmissão via oral da doença de Chagas no Pará, mantendo sua colaboração com nosso departamento na USP via a Profa. Marta Teixeira.

Portanto, testemunho que por toda sua vida, Coura dedicou-se aos problemas da saúde ne nossa gente, particularmente a desprotegida população rural, como também o fizera meu mestre e herói Samuel Pessôa.

Porém, entre tantas qualidades, a característica mais marcante do Coura, na minha opinião, era a de aglutinar pessoas. Sempre acolhedor, nunca exaltado, tolerante tanto com a esquerda como com a direita, contribuiu muito para minorar a angústia da caça às bruxas em Manguinhos, e sequelas do Golpe militar de 64.

Nosso amigo Coura e eu convivemos por mais de 50 anos em harmonia, sem conflitos, entre bons papos e bons copos. Todos me farão muita falta.”

Erney Plessmann de Camargo, Academia Brasileira de Ciências, Academia Nacional de Medicina e professor emérito da Universidade de São Paulo


1 (Coura JR, Barrett TV, Naranjo MA (1994) Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 27(4):251–3)