Leia artigo de Marcelo Mori, publicado no Jornal da Unicamp em 19/2. Mori é professor do Instituto de Biologia da Unicamp, coordenador da Força-Tarefa Unicamp Contra a Covid-19, secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e representante suplente dos Membros Afiliados da Academia Brasileira de Ciências.

O FNDCT é a sigla para Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O nome é longo e complicado, mas fala por si só. Mais importante do que o próprio nome é a sua finalidade. O Fundo é o principal instrumento público de financiamento de ciência, tecnologia e inovação do Brasil.

Foi criado em 1969 como uma maneira de promover o desenvolvimento científico e tecnológico do País. Até 1998 esse fundo tinha como principal fonte de receita incentivos fiscais, empréstimos de instituições financeiras, além de contribuições e doações de entidades públicas e privadas. Em 1998, com a criação dos Fundos Setoriais, as receitas do FNDCT passaram a ser alimentadas por um fluxo contínuo de recursos obtidos de tributos específicos como os oriundos das Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (CIDEs), dos royalties do petróleo ou gás natural e do percentual da receita operacional líquida de empresas de vários setores econômicos. Ou seja, recursos de impostos e tributações de setores que se beneficiam fortemente do desenvolvimento científico-tecnológico e que passaram a retornar parte da sua receita a um fundo público destinado ao investimento em ciência e tecnologia, completando assim um círculo virtuoso que visava impulsionar o desenvolvimento do País.

Este mecanismo se mostrou bastante promissor para estimular o fortalecimento do sistema de ciência, tecnologia e inovação brasileiro. E de fato, têm sido bem-sucedido na medida do possível. Nos últimos 10 anos os recursos arrecadados para o FNDCT atingiram até 6 bilhões de reais ao ano. Entre 2004 e 2019 foram 11 mil projetos financiados pelo Fundo Nacional. Parte desses recursos foi usada para consolidação e expansão de empresas que simbolizam o potencial científico-tecnológico brasileiro, como a Embrapa e a Embraer, além de beneficiar dezenas e dezenas de outras empresas que exercem atividades de pesquisa e desenvolvimento, várias delas micro e pequenas empresas. Além, claro, de financiar Universidades e Institutos de Pesquisa públicos e privados.

Instalações internas do Sirius, novo acelerador de elétrons brasileiro de 4ª geração
Instalações internas do Sirius, novo acelerador de elétrons brasileiro de 4ª geração

O FNDCT também financia programas de capacitação técnica, desenvolvimento tecnológico industrial e bolsas de iniciação científica, ajudando assim a treinar profissionais altamente especializados. O FNDCT, por meio da FINEP, ajudou ainda a construir a infraestrutura necessária para o desenvolvimento de pesquisa de ponta no país. Do Fundo Nacional veio parte do recurso para a construção do Sirius, o maior acelerador de partículas do hemisfério Sul e a maior e mais complexa estrutura científica já construída no Brasil. O FNDCT também colocou substanciosos recursos em projetos de pesquisa no combate ao Zika vírus e, agora, no enfrentamento ao novo coronavírus.

No entanto, anos de contingenciamento vêm minando a ampla capacidade que o FNDCT tem de exercer a função para a qual foi concebido e que consta em lei, isto é, financiar projetos voltados ao desenvolvimento científico-tecnológico brasileiro. Os recursos totais contingenciados desde 2006 superam os R$ 25 bilhões. Em 2020, dos R$ 5,2 bilhões disponíveis, apenas R$ 600 milhões foram autorizados para uso. Ou seja, quase 90% do recurso do FNDCT permaneceu contingenciado e não pode ser usado para o financiamento de ciência, tecnologia e inovação. Num ano de pandemia, com o país precisando de soluções rápidas contra a Covid-19, como vacinas e insumos, esta restrição de recursos para a ciência se mostrou ainda mais preocupante e exemplifica bem o problema que representa o contingenciamento do Fundo.

Mas como este problema não é de hoje e claramente afeta muita gente, políticos, sociedades científicas e entidades empresariais se uniram para evitar que o FNDCT possa continuar sendo frequentemente contingenciado. A primeira vitória foi retirar o FNDCT da PEC 187/2019 que propõe a extinção dos fundos públicos. A segunda foi a aprovação por vasta maioria, no Senado e na Câmara, do PLP 135/2020, que proíbe a colocação do FNDCT em reserva de contingência. Ou seja, dessa maneira, todo recurso disponível do Fundo ficaria habilitado para aplicação imediata e integral em ciência, tecnologia e inovação, como estabelecido por lei.

No entanto, o executivo impôs dois vetos que acabam por inviabilizar o propósito do PLP 135/2020. Um deles resulta na impossibilidade de utilização dos recursos contingenciados de 2020, na casa de R$ 4,2 bilhões. O outro, ainda mais preocupante, retira da lei o item que proíbe a alocação do FNDCT em reserva de contingência.

O motivo, segundo o governo, é que “o dispositivo contraria o interesse público, tendo em vista que colide com disposições legais já existentes, além de poder configurar, em tese, aumento não previsto de despesas, resultando em um impacto significativo nas contas públicas, cerca de R$ 4,8 bilhões, no PLOA 2021 e o rompimento do teto de gastos instituídos pela Emenda Constitucional nº 95/2016”.

O Congresso ainda tem o poder de derrubar os vetos do executivo, o que mobilizou entidades científicas e empresariais, além da opinião pública, em torno de manifestações pedindo para que os parlamentares derrubem os vetos, para o bem do desenvolvimento científico-tecnológico brasileiro. Uma dessas manifestações é o abaixo-assinado (link abaixo) organizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência em conjunto com diversas outras entidades, como a Academia Brasileira de Ciências, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap).

No processo de convencimento da população ficou claro o desconhecimento por grande parte da sociedade, inclusive entre acadêmicos, da importância do FNDCT e dos trâmites legais referidos acima. Por isso, uma campanha de conscientização e popularização do tema foi criada e nomeada #cienciasalva. Conteúdos foram gerados e postados em redes sociais, alguns deles reunidos no site www.cienciasalva.org. A campanha tomou corpo, contribuiu para triplicar o número de assinaturas da petição que agora chega a quase 110 mil assinaturas, chegou ao terceiro lugar dos “Trending Topics” do Twitter e conseguiu adeptos em celebridades como a apresentadora e modelo Fernanda Lima. Ainda assim, algumas questões aparecem e causam confusão, o que em muitos casos inibe as pessoas de participarem em discussões sobre o tema e se engajarem em uma das mobilizações mais importantes da história científica do Brasil.

##
Técnica de eletroencefalografia para medir a atividade elétrica do cérebro durante testes de imaginação motora com voluntários saudáveis

Uma das principais dúvidas que permanece é sobre o quão cabíveis são as justificativas para os vetos do executivo. O dispositivo vetado do PLP 135/2020 contraria mesmo o interesse público e colide com disposições legais? De acordo com a Emenda Constitucional nº 85 de 2015 – “A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado…”. Além disso, a Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe o desvio de finalidade de recursos legalmente vinculados a finalidade específica, como é o caso dos recursos do FNDCT. Assim, fica difícil entender como a aplicação integral de um fundo cuja finalidade é clara, constitucionalmente prioritária e estabelecida e amparada por lei pode contrariar o interesse público e colidir com disposições legais.

Outra questão em relação aos vetos é se o uso integral do fundo pode elevar em demasiado as despesas do estado, infringindo assim o teto de gastos. De fato, isso pode ocorrer se não houver compensação pela redução de despesas de outras linhas menos prioritárias, mas como apontado anteriormente, os recursos do FNDCT tampouco podem ser usados para outras finalidades. Se não utilizado para investimento em áreas de ciência, tecnologia e inovação, o FNDCT permanece congelado. Assim, quando mantidos em reserva de contingência, os recursos do FNDCT podem servir como uma massa de manobra sujeita a interesses políticos e econômicos momentâneos, desviando o fundo da sua finalidade estabelecida por lei e ferindo o seu caráter estratégico.

E quem se beneficia do FNDCT livre de contingenciamentos? Em suma, o Brasil. Se os recursos do FNDCT puderem ser aplicados integralmente, a consequência será o avanço de instituições públicas e privadas no sentido de promover ambientes mais criativos e inovadores, formando uma nova geração de profissionais qualificados e empreendedores, promovendo novas ideias, soluções tecnológicas e produtos, criando empregos e aumentando a arrecadação, que por sua vez é recurso revertido para os cofres públicos. Um exemplo dos benefícios do investimento em ciência e tecnologia é a riqueza gerada pelas mais de 1000 empresas fundadas por ex-alunos da Unicamp. São R$ 8 bilhões por ano, em torno de quatro vezes o orçamento da Unicamp e 13 vezes mais do que a parcela do Fundo investida em ciência, tecnologia e inovação no ano de 2020.

Se o setor privado se beneficia tanto, então por que precisamos de investimento público? Nos países desenvolvidos, a maior parte do investimento em ciência e tecnologia vem do governo, o que aumenta a competitividade das empresas e promove o crescimento da economia, além, claro, de tornar o ambiente acadêmico de ensino e pesquisa nas universidades e institutos mais competente. A Coréia do Sul, um país que serve de exemplo pelo desenvolvimento econômico rápido e sustentado por um forte investimento em ciência e tecnologia, dispende uma parcela mais de duas vezes maior do produto interno bruto em pesquisa e desenvolvimento se comparado ao Estado de São Paulo, que se assemelha em tamanho da população e é o Estado brasileiro que mais investe em ciência.

Pesquisador manipula equipamento de simulação de corrida e reciclagem de tênis
Pesquisador manipula equipamento de simulação de corrida e reciclagem de tênis

E qual a contrapartida das empresas para receber tal benefício? Várias empresas pagam tributos cuja finalidade específica é a destinação ao FNDCT. Cerca de 80% da arrecadação do Fundo provém de contribuições do setor privado, o que ajudou a duplicar a arrecadação de recursos para o FNDCT na última década. É importante dizer que grande parte dos recursos do FNDCT que financiam micro e pequenas empresas são reembolsáveis. Assim, o Fundo serve como um fundo de investimento de médio-prazo, cujo retorno financeiro para os cofres públicos é real e o crescimento econômico propiciado beneficia a todos.

E como você pode se envolver mais ativamente neste debate? Conhecendo mais a problemática e o impacto que o FNDCT tem sobre as nossas vidas, ajude a esclarecer as pessoas e engajá-las nesse debate. Manifeste-se perante os parlamentares que votarão nas próximas semanas se derrubarão ou não os vetos do executivo. Caso seja contrário ao contingenciamento do FNDCT, assine a petição pela derrubada dos vetos e pelo uso integral dos recursos do FNDCT: Abaixo-assinado · PELA DERRUBADA DOS VETOS AO FNDCT · Change.org. Acima de tudo, defenda a ciência como e quando puder. Afinal, #cienciasalva!

Veja a publicação original aqui