A Academia Brasileira de Ciências (ABC), na 22ª edição de sua série de webinários, realizada no dia 2/9, teve como tema a química de produtos naturais e prestou uma homenagem ao Acadêmico Otto Richard Gottlieb por seu legado à ciência brasileira. Participaram do encontro a Acadêmica Vanderlan Bolzani, como mediadora e palestrante, e o Acadêmico Norberto Peporine Lopes, a química Maria Fátima das Graças Fernandes da Silva e o químico Lauro Barata como palestrantes.

Ao iniciar esta edição, o presidente da ABC, Luiz Davidovich, relembrou a trajetória de Otto Gottlieb, que faleceu em 2011, e destacou que ele era um pesquisador a frente de seu tempo. “Otto estudou a relação dos seres humanos com o desmatamento, a introdução de espécies exóticas, mudanças na exploração do solo e a constituição da floresta Amazônica, assuntos que tem muito a ver com os dias de hoje”, disse Davidovich. Gottlieb tornou-se membro titular da ABC em 1961, desenvolveu uma nova área de estudo no campo da química de produtos naturais — a quimiossistemática ou taxonomia química — e publicou mais de 700 trabalhos científicos.

O legado de Otto Gottlieb

Maria Fátima das Graças foi aluna de doutorado de Gottlieb na Universidade de São Paulo (USP). Ela atua no campo de química de produtos naturais e se dedica, entre outros assuntos, à relação entre insetos e plantas. Para ela, os conhecimentos formulados pelo seu professor, há anos, poderiam ser aplicados em alguns dos problemas vivenciados para a produção de defensivos agrícolas e novos fármacos.

“O professor Otto tinha ideias para o futuro da biotecnologia”, disse Fátima. “Talvez ele só não tenha conseguido chegar aos parâmetros que temos hoje pela falta de estrutura daquela época”, ponderou a pesquisadora. Segundo ela, a nuvem de gafanhotos que se formou na Argentina, causando prejuízos à produção agrícola local e o temor dos produtores do sul do Brasil, poderia ser contida com uma das descobertas de Gottlieb. “Uma planta africana chamada Azadirachta indica, o óleo de neem, após passar por um processo de nanoformulação, pode ser utilizada como um inseticida natural”, afirmou.

Além de seu pensamento interdisciplinar, integrando diferentes áreas do saber, como a química e a biologia, Maria Fátima lembrou que seu professor também cuidava de repassar o respeito ao meio ambiente. “Ele tinha, como um de seus objetivos, entender a relação entre plantas, seus predadores, suas resistências e promover a defesa da natureza”, explicou a cientista. Ela e Vanderlan Bolzani receberam no mesmo ano  a medalha “Prof. Otto Richard Gottlieb da Divisão de Química de Produtos Naturais”, da Sociedade Brasileira de Química.

O canto e encanto da química de produtos naturais

A Acadêmica Vanderlan Bolzani também foi aluna de Otto Gottlieb no mestrado e doutorado em química orgânica pela USP. Hoje, ela é presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), é membro da Royal Society of Chemistry e da Academia Mundial de Ciências (TWAS) e teve uma grande influência de seu orientador ao escolher a taxonomia química como uma de suas áreas de estudo. Vanderlan desenvolve pesquisas de substâncias bioativas e de química medicinal em produtos naturais.

“Em poucos momentos da minha carreira participei de um evento com tanta emoção”, disse Vanderlan, ao lembrar de seu professor. “Neste momento difícil em que vive a humanidade, que passa por uma crise sanitária sem precedentes, temos como norte a preservação da natureza apontada pelo professor Otto”, afirmou.

O trabalho de Gottlieb, na época em que atuou, representou 70% da produção científica editada na Phytochemistry, principal periódico da área mundial em química de produtos naturais, segundo Vanderlan. Gottlieb foi responsável pela internacionalização da área e suas teorias são até hoje uma referência para a preservação da natureza em todo o mundo.

“O professor Otto gostava de responder, por meio da química, problemas que a biologia não conseguia resolver”, disse Vanderlan. Uma das preocupações do cientista, naquela época, era criar um sistema que conseguisse guardar toda a informação molecular da biodiversidade brasileira, a quimiotaxonomia. O mapeamento do perfil químico para as espécies classificadas pela taxonomia tradicional é um dado muito importante, pois representa a impressão genotípica da espécie.

“Ele acreditava que, se conhecêssemos a diversidade químico-biológica da natureza, poderíamos utilizá-la de uma forma sustentável. Hoje, como cientistas, temos o compromisso de trabalhar para tentar preservar nossas florestas”, afirmou a Acadêmica, que anunciou, em 2019, com o apoio do Chemical Abstract (CAS), empresa de base de dados químicos da American Chemical Society, a criação da segunda maior base de dados de produtos naturais do mundo, com 54.200 substâncias.

Só o conhecimento salvará a Amazônia

“O que está acontecendo com a Amazônia é como queimar a biblioteca de Alexandria sem nunca ter lido seus livros”, disse Lauro Barata. A analogia refere-se ao incêndio da biblioteca de Alexandria, no Egito, que guardava grande parte do conhecimento do mundo antigo. Barata, que pesquisa as propriedades de óleos e outras substâncias das árvores amazônicas, apontou diversas vezes para a ignorância sobre a biodiversidade amazônica e seus usos sustentáveis. Doutor em química pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Barata viu seus estudos se entrelaçarem aos de Otto Gottlieb ao longo de sua carreira.

“A Amazônia era uma das grandes exportadoras das drogas do sertão, que eram vendidas como commodities, não como produtos amazônicos”, disse. “Como reflexo até hoje, no Sistema Único de Saúde não existem produtos amazônicos, originários de uma floresta composta por mais de 100 mil espécies, com cerca de mil plantas medicinais conhecidas”, apontou o cientista. Segundo Barata, muitas plantas estudadas por Gottlieb tinham, inclusive, atividades antivirais, algo relevante durante uma pandemia.

Barata utilizou seu conhecimento de pesquisa e extração de óleos essenciais a partir das folhas para evitar o desmatamento na floresta Amazônica por empresas de cosméticos. “Hoje, trabalho com pequenas empresas farmacêuticas, cosméticas e com as comunidades locais, importantes para a economia do país”, disse Barata. “Uma das inspirações para esse trabalho é a compreensão de Otto de conhecer melhor os mecanismos da natureza para cuidar do futuro da vida no planeta”, completou.

Uma visão para além de seu tempo

O Acadêmico Norberto Peporine era ainda muito jovem quando conheceu Otto Gottlieb. Farmacêutico e doutor em química pela USP, ele coordena o Núcleo de Pesquisa em Produtos Naturais e Sintéticos da Central de Espectrometria de Massas de Macromoléculas Orgânicas da USP. Hoje, Peporine atua no campo de espectrometria de massas, uma influência dos trabalhos de Otto Gottlieb.

“Fiquei deslumbrado quando conheci aquele senhor que falava tanto em equilíbrio da natureza”, contou Norberto. “O professor Otto era um visionário que conseguiu, naquela época, pensar e entender a dinâmica da natureza muito bem”, disse. “Foi necessário o desenvolvimento de várias técnicas e estratégias para que pudéssemos provar algumas das coisas que Gottlieb profetizava”, afirmou Norberto.

Segundo Peporine, o pós doutorando Alan Pilon, com quem trabalhou, resolveu utilizar os métodos aplicados por Gottlieb e precisou utilizar 62 espécies e 254 espécimes de plantas. Segundo Norberto, com a mesma amostra de plantas, na época de Otto, haveria a necessidade de publicação de dezenas de teses, pela pouca capacidade de gerar informação. “Isso mostra como o professor Otto conseguia enxergar o macro com pequenos dados. Essa capacidade de visão era única”, explicou o Acadêmico Peporine.

Além dos avanços na química de produtos naturais e na luta pela preservação da natureza, Otto Richard Gottlieb atuou nas maiores instituições de pesquisa e universidades do país. Ele foi indicado para o Prêmio Nobel de Química em 1999, um reconhecimento a sua visão, que virou a marca de seu trabalho à ciência.