Amigos do falecido Acadêmico Luiz Rodolpho Travassos, seis Acadêmicos da autodenominada “Confraria” escreveram um conjunto de lembranças sobre o companheiro, que se foi no dia 30 de julho. Leiam os relatos:
Quando Travassos (ou “Travassinho”, como às vezes o chamávamos na “Confraria”) se graduou em medicina na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], neste mesmo ano de 1962 eu ingressava na medicina da UFPE [Universidade Federal de Pernambuco]. Distantes, portanto, no tempo e na geografia.
Uma outra “sincronia” de datas nos aproximou: em 1967 ele conseguia seu doutorado em microbiologia e imunologia na UFRJ, orientado pelo Prof. Amadeu Cury, e eu começava o meu doutorado no Instituto de Biofísica da UFRJ, orientado inicialmente por Mauri Miranda. Mauri gostava de visitar o laboratório do Cury e vez por outra me convidava para ir até lá “ver o pessoal da microbiologia”. Foi nesses breves encontros na Avenida Pasteur que conheci Amadeu Cury, Travassos e também Isaac Roitman. Fecha o pano do 1º capítulo.
Nas décadas de 70 e 80 reencontrei Travassos na UnB [Universidade de Brasília], no laboratório do Isaac [Roitman], e na então Escola Paulista de Medicina, no laboratório do Erney [Camargo]. Minha ida em 1978 para a Fiocruz no Rio e em 1998 para a OMS [Organização Mundial de Saúde] em Genebra representaram um hiato de décadas na minha amizade com Travassos.
O 3º capítulo se iniciou de modo inesperado: Marcio Rodrigues, que tinha sido doutorando do Travassos, fez concurso para a Fiocruz em 2015 e se tornou meu vice na Coordenação do CDTS [Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde]. Aconteceu então uma “terceirização” inesperada – Marcio e eu falávamos frequentemente do Travassos, que ambos admirávamos, curtindo as conversas, conselhos e ironias que ele nos tinha proporcionado. Nesse momento Erney criou a “Confraria” e foi uma delícia reencontrar Travassos pessoalmente, agora em longos jantares, podendo desfrutar mais de perto de tudo que ele tinha a oferecer – na ciência, na cultura, no seu humor refinado e, por vezes, ferino – mas sempre num bom sentido.
Sempre o admirei e, mesmo à distância geográfica e temporal acima referida, Travassos sempre foi para mim um modelo de pensador, de homem da ciência e figura humana ímpar. Repouse em paz!
Éramos sete amigos, hoje seis, que nos reuníamos, quando possível, para almoçar, bebericar o resto da tarde e discutir ciência, gestão de ciência e política em geral, entremeadas com tópicos do cotidiano. Nos apelidávamos de “A Confraria”, por falta de melhor inspiração. Nosso caríssimo Travassos era membro fundador e prócer de nossa Confraria. Sempre calmo, era gentil tanto nas concordâncias como nas divergências. Agradável e confiável companheiro.
Conheci Travassos nos anos 70, na Escola Paulista de Medicina. Os professores Luis Trabulsi, Nelson Medes e eu havíamos assumido o Departamento de Micro, Imuno e Parasitologia e queríamos criar um curso de pós-graduação. Não tínhamos experiência, eram os anos 70, e pedimos socorro ao Travassos, então na UFRJ. Travassos veio, nos ajudou e resolveu ficar entre nós, o que resultou em longa e saudável amizade e em excelente curso, A7 desde o início.
Por alguns anos seu laboratório ficou situado na Parasito. Trabalhávamos em temas diferentes, mas sempre trocando ideias sobre nossos projetos. Nunca tivemos divergências sérias, embora tivéssemos opiniões diferentes em muitas coisas. Por exemplo: Travassos era conservador, religioso, não comia camarão, preferia New York, Mozart era seu compositor predileto e gostava do frio. Tínhamos, porém, coisas mais importantes em comum: a ciência, o respeito aos direitos do ser humano e a opiniões divergentes, sem falar no gosto por bons whiskies. Perdemos um grande e generoso amigo.
Conheci o Travassinhos em Brasília, no laboratório do Isaac [Roitman], na década de 1970, em plena ditadura militar. Nesta época, por razões óbvias, concentrávamos nossos esforços em ciência. Foi possível reconhecer de imediato o intenso envolvimento descompromissado dele com os trabalhos que se desenvolviam em nosso Instituto.
Divergi dele algumas vezes em diferentes assuntos, porém ele sempre conseguia tratar as diferenças de opinião como uma característica essencial da espécie. Neste aspecto, não posso deixar de lembrar de certo jantar em Brasília em que ele se “defrontou” com quatro ateus assumidos. Ele, elegantemente, defendeu suas convicções, baseadas na sua recentemente adquirida religião. Deve-se ressaltar que nunca presenciei Travassos colocar seus princípios religiosos ou políticos como impedimentos do livre pensar.
Gostaria que o legado deste grande cientista brasileiro para a geração que vive a atual tragédia sanitária, fosse: “Apesar da ciência não ser neutra, a política não tem o poder de alterar os resultados científicos, mas os resultados de pesquisas científicas podem alterar políticas.”
Travassos foi meu orientador de doutorado (1963-1967) na UFRJ. Casei-me em sua casa. Foi padrinho de casamento. Introduziu-me ao pensamento científico. Quando estudante de pós-graduação, convivi com ele e Norma, sua esposa. Ele morava em um apartamento no Flamengo e recebia seus estudantes com refinamento e alta culinária.
No laboratório, instalou um rádio sempre ligado na rádio MEC, que transmitia muita música clássica. Antes da música tocar, Travassos abaixava o volume e depois aumentava e perguntava a todos o compositor da obra. Além da formação científica estimulava nossa educação musical. Travassos era compositor e notável pianista.
Sua carreira científica foi brilhante e diversificada. Trabalhou com bactérias, protozoários, fungos e também em doença oncológica (melanoma), com contribuições em renomadas revistas científicas, sempre importantes. Formou uma família de cientistas.
Convivi com Travassos antes e depois de sua conversão ao judaísmo. Dominou o hebraico e tornou-se um erudito na cultura e religião judaica. Era demandado para dar conselhos, como se fosse um rabino. Os conselhos foram sempre sábios e justos. Viverá sempre em nossas memórias.
Conheci o Travassos ainda na Praia Vermelha, no final dos anos 60 do século passado, aonde eu trabalhava no Instituto de Biofísica e ele no Instituto de Microbiologia. A interação institucional não era das mais intensas. Diria até que havia uma certa disputa em alguns pontos, como por exemplo, qual teria sido a primeira tese oficialmente homologada em um curso de pós graduação sensu stricto na UFRJ?
No entanto, aconteciam sim, interações pessoais e científicas que se tornaram muito produtivas. Uma delas era a frequência assídua do Travassos nos Seminários Científicos da Praia Vermelha, organizado e prioritariamente frequentado por professores e alunos do Instituto de Biofísica. Foram nesses seminários que conheci o Travassos. Nossos encontros foram mais ou menos assíduos em diferentes momentos das nossas vidas, mas eram sempre muito cheios de humor, carinho e emoção. Aqui, vou me limitar a descrever o episódio da sua indicação e posse como Honorário Nacional da Academia Nacional de Medicina.
A ANM foi fundada em 1829 ainda no reinado do Imperador D. Pedro I e reúne-se semanalmente desde então. É, portanto, a mais antiga instituição cultural e científica brasileira a reunir-se ininterruptamente a mais de 190 anos. Um dos artigos do seu Regimento Interno diz que o título de Honorário será concedido a médico “credenciado por notório saber e irreprochável caráter, cujas contribuições e realizações tenham concorrido para o engrandecimento da Medicina ou sejam consideradas de efetivo valor para a humanidade”.
Como eu não tinha a menor dúvida que o Travassos preenchia ambos os requisitos e muito mais do que isso, propus que a Academia concedesse a ele esse título. A proposta passou por todas as etapas e foi aprovada por aclamação em plenário. O título foi concedido em sessão solene no dia 11 de julho de 2019. O auditório estava lotado, inclusive com vários colegas da turma da medicina do Travassos e da Norma. Foi uma festa muito bonita.
Ao recebê-lo em nome da Academia, iniciei o meu discurso com: “O Prof. Travassos é certamente um ícone da biologia celular e referência internacional na área da glicobiologia. Suas notáveis contribuições à ciência e à medicina vão desde a microbiologia, aonde iniciou e fez grande parte da sua carreira no Instituto de Microbiologia Paulo de Góes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ainda na Praia Vermelha, até a oncologia experimental já na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), para onde o Prof. Travassos transferiu-se em 1981”. Terminei com um dito atribuído a Sydney Brenner “It takes 1,000 nanobiologists to make one microbiologist”. O Travassos deu aquela risada gostosa. Ele vai fazer muita falta.
Já no início da minha carreira científica em 1970, quando cursava o segundo ano do curso de medicina na Praia Vermelha, Carlos Chagas Filho me falou sobre o Travassos e recomendou que o procurasse. No entanto, somente 1974, quando todos já estávamos na Ilha do Fundão, foi que o conheci. A motivação principal foi termos demonstrado, por métodos citoquímicos e microscopia eletrônica, a presença de glicoconjugados na superfície de tipanosomatídeos. Afinal, Travassos dedicou grande parte da sua vida ao estudo dessas macromoléculas. Quando mostrei os resultados e as imagens ele ficou entusiasmado.
Fui pela primeira vez à sua residência na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, para a revisão final de um artigo intitulado “Demonstration of concanavalin A receptors in Leptomonas pessoai”, em colaboração com Jayme Angluster e Marlene Bunn, e fiquei admirado com o seu domínio da língua inglesa, fazendo correções pertinentes e melhorando significativamente a discussão do artigo. A discussão que tivemos foi tão profunda que logo a seguir me convidou para escrever com ele uma revisão intitulada “Microbial Membranes: Structure and Molecular Organization”, que publicamos juntos na Revista de Microbiologia em 1976.
Senti muito a mudança de Travassos do Rio de Janeiro para São Paulo. Além da diminuição na possibilidade de discussão científica, também sentimos sua falta nos almoços na churrascaria Oasis, na Ilha do Governador, que nunca tinham hora para terminar.
Meu último encontro com Travassos foi recente. Veio ao Rio para tomar posse como Membro Honorário da Academia Nacional de Medicina e no dia seguinte nos reunimos em uma churrascaria no Rio de Janeiro, com as presenças do Carlos Morel, Erney Camargo, Henrique Krieger e Marcello Barcinski. Seu exemplo de cientista, formador de cientistas e amigo permanecerá para sempre.