A 13a edição da série de webinários da ABC “Conhecer para Entender: O mundo a partir do coronavírus” trouxe três historiadores, no dia 30/6, para conversarem sobre a história das pandemias. O Acadêmico Ruben Oliven ajudou a coordenar o encontro dos palestrantes e os debates.
Os três historiadores convidados foram o Acadêmico José Murilo de Carvalho, doutor em ciência política pela Universidade de Stanford, nos Estados unidos, ex professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj); Sidney Chalhoub, doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor titular colaborador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor dos departamentos de História e de Estudos Africanos e Afro-Americanos da Universidade de Harvard (EUA); e Dominichi Miranda de Sá, doutora em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e chefe do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A Revolta da Vacina
O Acadêmico José Murilo de Carvalho iniciou o ciclo de palestras com a história da Revolta da Vacina, uma rebelião popular contra a vacina anti-varíola, no Rio de Janeiro, então capital do país, entre 10 e 16 de novembro de 1904. Segundo ele, esse acontecimento foi marcado pela política e pela atuação do médico Oswaldo Cruz, que esteve no centro da luta pela ciência e pela saúde pública da população brasileira.
“A cidade do Rio de Janeiro era marcada por uma série de doenças endêmicas e pandêmicas. Rodrigues Alves, então presidente do Brasil, chamou duas pessoas que abalaram a vida da cidade, Pereira Passos, para a reforma urbana, e Oswaldo Cruz, para a saúde”, contou Carvalho. Francisco Pereira Passos foi prefeito do Rio nessa época e Oswaldo Cruz era diretor-geral de saúde pública do Brasil, nomeado pelo presidente do país. “Oswaldo Cruz lutou contra três grandes doenças: a varíola, com a lei de vacinação, a febre amarela, combatendo os mosquitos, e a peste bubônica, com a caça aos ratos”, disse.
Uma das semelhanças entre esse momento histórico com o contexto atual foi a propagação das hoje conhecidas fake news, envolvendo a vacina contra a varíola. “Apesar dessa vacina já existir no Brasil, ela não conseguia ser utilizada para a imunização da população até Oswaldo Cruz conseguir passar uma lei pelo Congresso. Houve, então, uma verdadeira campanha, inclusive com informações falsas, para derrubar essa lei”, lembrou o Acadêmico. A revolta durou uma semana, várias pessoas foram presas e deportadas e 50 morreram, um acontecimento complexo que evidenciou a relação da população com a ciência.
Para o Acadêmico José Murilo, esse evento na história da saúde pública brasileira também pode servir como reflexão acerca da garantia de direitos da população. Para ele, se a não vacinação de um grupo de pessoas pode comprometer a saúde da sociedade, o Estado poderia intervir. “Hoje, há um elemento político no negacionismo e em ideias anti-vacina, é uma adesão à postura que vem de cima”, disse. Nesse sentido, seria possível entender uma diferença entre a Revolta da Vacina e o negacionismo atual. “Em 1904, um sistema de crenças morais e a relação da população com outras vacinas provocou um descontentamento da população.”
Uma doença social
Sidney Chalhoub é autor de livros que retratam o contexto e a formação de políticas de saúde pública no Brasil. Em “Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte”, Chalhoub aborda a transmissão da febre amarela no Rio de Janeiro e a resistência das comunidades negras à vacina antivariólica.
Ele considera a febre amarela um dos fatores responsáveis pelas ideologias raciais nas sociedades que tinham a escravidão institucionalizada. “Pelo tráfico africano, muitas doenças se propagavam e a suscetibilidade de algumas raças a doenças, como a febre amarela, foi uma base para ideologias”, disse. Essas ideologias faziam comparativos entre diferentes “raças”, como a branca e negra, e produziam entendimentos para as incógnitas científicas daquela época. “Não se sabia que muitos negros trazidos pelo tráfico do continente africano provavelmente tinham uma imunidade adquirida à febre amarela, já presente na África, por terem tido contato com a doença em algum momento da vida”, contou Chalhoub. “O enfrentamento da febre amarela passa a justificar intervenções no ambiente e na miscigenação da população”, afirmou.
Para o historiador, a COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus, também adquiriu um sentido racial durante a pandemia no Brasil e nos Estados Unidos. “A COVID é quase uma ilustração das sociedades. Ela chega por meio de pessoas que podem andar de avião, fazem turismo e vai descendo na escala social, atingindo a massa da população, na qual predominam negros, pobres e menos favorecidos”, disse.
Sidney também destacou o quanto a COVID-19 pode ser prejudicial para o capitalismo, um sistema que lida com uma lógica de deslocamento de pessoas e mercadorias pelo mundo.
Em defesa de uma saúde pública forte
“A história pode nos fornecer evidências para uma agenda programática para a crise atual”, afirmou Dominichi de Sá. Por trabalhar na área de história das ciências e da saúde, a pesquisadora apresentou um panorama de algumas pandemias que assolaram populações pelo mundo e suas consequências sociais. A peste bubônica, a gripe espanhola e, hoje, a pandemia de COVID-19 deixaram milhões de mortos, superando guerras, enfraquecendo economias e deixando marcas de estigmatização de populações e culturas, como o que ocorre, hoje, com os chineses.
“Epidemias são fenômenos biológicos e sociais e isso demanda trabalhos transdisciplinares”, disse Dominichi. Como em outras epidemias, muitos aspectos das doenças eram desconhecidos pela ciência no momento em que havia a propagação dos vírus e, segundo contou a historiadora, muitas vezes, respostas pontuais a essas emergências sanitárias eram insatisfatórias. “Nesse sentindo, o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa ser valorizado ainda mais neste momento por seu acúmulo de experiência, presença e capilaridade no território nacional. Temos uma estrutura que permite que a população tenha acesso a serviços de saúde e isso ajudou a conter um pouco uma tragédia que poderia ser bem maior do que a que estamos vendo”, afirmou.
O negacionismo e a propagação de fake news, para a historiadora, prejudicam o enfrentamento da pandemia e revelam a necessidade de maior investimento, dos próprios cientistas, em atividades de divulgação científica, para melhor informação da população sobre a complexidade dos processos de produção do conhecimento científico. Dominichi, a partir da obra “Merchants of Doubt”, dos historiadores Naomi Oreskes e Erick Conway, exemplificou o mau uso e o mau entendimento sobre as controvérsias científicas. Os mercadores da dúvida insuflam a crença equivocada na população, por meio de veículos de imprensa, de que existem dois lados, com dados científicos que se equivaleriam na qualidade dos resultados, sobre, por exemplo, o aquecimento global ou o risco de vacinas. Como esses saberes ainda seriam processos em disputa, na falsa propaganda dos mercadores da dúvida, a população fica com informações erradas, incompletas e com a sensação de que é possível escolher um dos lados do impasse.
Dominichi exemplificou esse fato com a crença permanente de alguns grupos na sociedade em um possível tratamento conta a COVID-19 pela cloroquina, um medicamento que não teve atuação comprovada cientificamente, o que, para ela, demonstra um desconhecimento das formas de produção científica por esses movimentos, que, afinal, só promovem desinformação e a crença errada de que é possível uma solução simples para o fim da pandemia. O trabalho de enfrentamento à crise deve ser transdisciplinar, intersetorial, permanente, e de todos os entes federativos com a sociedade.
“A resistência ao isolamento social, uma das medidas de prevenção à COVID-19, tem um conteúdo de conservadorismo, de grande individualismo”, disse. Enquanto isso, segundo dados das secretarias estaduais de saúde, na semana em que ocorreu esta edição do webinário, o Brasil chegava à marca de 60 mil mortos pela COVID-19, com mais de mil mortes diárias e mais de 1 milhão e 400 mil casos confirmados.
Confira o vídeo com os principais destaques desta edição.
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