A série de webinários da ABC “Conhecer para Entender: O mundo a partir do coronavírus” chegou a sua 12ª edição, no dia 24 de junho, com o tema “Desafios sociais e econômicos da pandemia”. Desta vez, a vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader, mediou o encontro e o debate entre os participantes.

Para conversar sobre o tema, a ABC convidou Marta Arretche, diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP); Eustáquio Reis, ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); e Nísia Trindade, presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição que completou 120 anos em maio de 2020.

Desafios pós-pandemia

A professora Marta Arretche iniciou o ciclo de palestras desta edição apontando algumas possíveis consequências das medidas de resposta à pandemia de COVID-19. Com pós-doutorado no Departamento de Ciência Política do Massachussets Institute of Technology (MIT), nos EUA, ela é diretora de um centro de estudos da USP sobre desigualdades e políticas públicas para a redução da pobreza no Brasil.

“Antes da pandemia, já havia no Brasil uma imensa desigualdade. Após uma depressão econômica, ela vai se tornar ainda maior, com uma população ainda mais dependente do Estado”, apontou. Para ela, apesar da falta de estratégias de Estado para contenção da propagação da COVID-19 e para administrar suas consequências, ainda há saídas para a crise social e econômica que se instalou com a doença. “O país produziu dados diagnósticos com muita rapidez e ficou clara a capacidade de resposta da comunidade científica. No nível socioeconômico, a solução é a criação de programas de transferência de renda e o auxílio emergencial foi um dos instrumentos utilizados”, disse.

A ausência do Estado, em nível federal, foi substituída por iniciativas dos governos dos estados e municípios, com a adoção do distanciamento social em vários níveis, mais ou menos rigorosos.  Em meio às novas medidas, Marta apontou para uma polarização política estimulada pelo presidente da República, que influenciou respostas à pandemia que deveriam ser fornecidas pela ciência, como o caso da cloroquina. “Quando ficou claro que a pandemia levaria a custos econômicos e sociais altos, houve a preocupação de cientistas sociais de que poderíamos ter, em meio a toda essa realidade, uma convulsão social, ou seja, um cenário de crise generalizada, mas não foi o que aconteceu. Isso levanta a questão do que a população brasileira seria capaz de tolerar”, disse Arretche.

“A questão da necessidade de obter renda compromete diretamente essas estratégias de distanciamento social”, observou a pesquisadora, ao pontuar que aqueles que têm acesso à renda e às condições adequadas de moradia serão os que resistirão à passagem da pandemia. E, apesar de não poder precisar as vantagens ou desvantagens da reabertura precoce do comércio pelo país ao longo de junho, pelas subnotificações, a reabertura acontece, segundo Marta, em um período longe do pico de contágios, mas em resposta à pressão após a suspensão de atividades. “Nesse cenário de pouca informação do governo, é bem provável que tenhamos que voltar atrás nas medidas de distanciamento”, completou.

O fechamento de escolas foi uma das medidas mais imediatas adotadas por todo o país. Porém, a iniciativa afetou os estudantes e suas famílias de maneiras desiguais. Para Marta, é possível que este tenha sido um ano perdido para crianças e jovens brasileiros, com um aproveitamento letivo difícil de ser mensurado. “Vamos conviver muito tempo com as consequências econômicas e sociais do coronavírus, como o endividamento do Estado, as dificuldades de financiar políticas públicas e a extrema pobreza”, afirmou Arretche. O Instituto Locomotiva, citado pela pesquisadora, em parceria com o Data Favela, fez uma entrevista com donas de casa de diversas favelas do país, e 92% delas disse que faltará comida após mais um mês de isolamento. Para sair dessa crise, Marta apontou alguns caminhos, como o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e um novo programa tributário pelo Estado, com a taxação de riquezas.

Desafios econômicos

“A chave do tesouro para a solução desta pandemia está nas mãos dos cientistas”, afirmou Eustáquio Reis. O economista dirigiu por seis anos o Ipea, instituição que oferece suporte técnico em políticas públicas e programas de desenvolvimento para ações do governo. Foi professor de Economia Internacional na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Embora as ciências da saúde estejam na linha de frente no combate à pandemia, há também grandes desafios para as ciências sociais, inclusive os econômicos. “Nos meses críticos da pandemia, que ainda estamos vivendo, está ocorrendo uma queda no consumo e na produção nunca vistas no país”, apontou. O comportamento de consumidores e empresas mudaram, segundo Reis, devido às incertezas do presente e às expectativas de uma futura recessão. Enquanto liquidações se tornaram mais frequentes, muitos consumidores optaram por poupar dinheiro, o que afetou as relações de oferta e demanda. “O principal problema será sair da crise e isso vai exigir renda e consumo”, disse.

Para o economista, os setores que têm maior contato social, como lojas, serviços e atividades informais, estão no epicentro da recessão econômica. “Essas atividades podem sofrer alterações no lucro a ponto de chegar à falência, o que vai gerar aumento do desemprego”, evidenciou o pesquisador.

Nesse sentido, os programas de transferência de renda e a taxação de riquezas são, para Reis, algumas das soluções possíveis para a crise econômica causada pela pandemia. “É hora de o Brasil fazer uma nova política de taxação para financiar gastos adicionais durante este período”, disse. Com dinheiro disponível para consumo, as populações mais pobres e vulneráveis poderiam movimentar a economia do país, auxiliando a recuperação dos índices da economia. “Temos que gastar com a manutenção de programas de renda básicos e não universais, que envolvem transferências de dinheiro a pessoas que não tenham um emprego formal e que se enquadrem em regras predefinidas pelo governo. Teremos que focar nas populações que terão mais dificuldade de sair da crise, como os informais e os que trabalham no setor de serviços, e em evitar casos de corrupção”, afirmou.

Um cenário sanitário e social complexo                                      

A historiadora Nísia Trindade preside a mais importante instituição para a promoção de saúde pública na América Latina, a Fiocruz, que completou 120 anos desde sua fundação neste ano. Falando sobre a história das doenças infecciosas no mundo, Nísia conta que elas sempre estiveram relacionadas à pobreza. “Com a emergência do novo coronavírus, observamos um quadro cada vez mais intenso de epidemia, num cenário sanitário muito mais complexo, que deve ser visto de maneira multifacetada”, afirmou. Essa visão sistêmica, segundo ela, é importante pelo fato de o Brasil já conviver com outras epidemias existentes, como a de zika, da dengue e da chicungunha, além das condições de desigualdade vivenciadas pela população. “A pandemia tem características especiais no Brasil: um terço da população adulta, com idade acima de 18 anos, apresenta pelo menos um fator de risco para a COVID-19. Esse é um aspecto importante para também pensarmos os indicadores de saúde no país”, disse

Nísia Trindade apresentou uma estimativa do risco de espalhamento da COVID-19 entre os municípios brasileiros produzida pelo Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância em Epidemiologia da Fiocruz. Ela mostrou que a região Norte apresenta os maiores índices de vulnerabilidade social do país, o que se relaciona com os números dez vezes mais altos de contágio e mortes por COVID-19 do que ocorre na região Sudeste. “Essa situação tem a ver com a mobilidade viária e o acesso precário a serviços de saúde e ao auxílio emergencial, além de envolver as populações indígenas, que sofrem com o aumento intenso do número de mortes”, explicou. Esses dados podem ser acessados no Observatório COVID-19, construído pela Fiocruz.

Em todo o país, no entanto, as favelas e periferias concentram os maiores índices de contágio e mortes. Próximo à sede da Fiocruz, o município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, periferia do Rio de Janeiro, apresenta o segundo maior número de mortes por COVID-19, atrás apenas da capital carioca. Nísia aponta a dificuldade de exercer o isolamento social como um dos principais fatores que infla esses números. “Está havendo uma grande articulação em algumas favelas com as universidades e com a sociedade civil, de modo mais amplo, para testagem e ajuda à população. Mas a responsabilidade de apresentar soluções é do Estado, que precisa ter políticas públicas adequadas”, completou.

Nísia destacou a vulnerabilidade compartilhada entre os países pobres e em desenvolvimento, especialmente com relação à grande dependência em insumos, equipamentos de proteção individual e medicamentos. A presidente da Fiocruz afirmou que o SUS está sendo um diferencial no Brasil, tendo um papel decisivo na pandemia. “Sabemos que estamos diante de um problema de saúde pública de longa duração e a utilização de terapêuticas adequadas dependem fortemente do Sistema Único de Saúde, assim como dependerá a distribuição de vacinas, quando houver,” afirmou.

Para Nísia, a Academia Brasileira de Ciências é um ator importante para pensar soluções em diálogo com o Parlamento e com a sociedade. Luiz Davidovich, presidente da ABC, que também participou do debate, evidenciou os problemas de saneamento básico e de acesso à água tratada no país. “Teremos que atuar em várias frentes relacionadas à desigualdade, como o acesso à saúde, à educação e ao desenvolvimento de um programa de renda mínima. Temos que pensar no Brasil agregando valor a seus produtos e com maior protagonismo internacional”, disse. “A urgência de políticas de fortalecimento da ciência, tecnologia e inovação tem sido um ponto fundamental levantado pelos convidados dos webinários da ABC para que o país possa sair da crise provocada pelo novo coronavírus. Sua articulação com políticas sociais e de saúde pode gerar soluções para as tantas demandas da nossa população.”

 

Confira o vídeo com os principais destaques desta edição.


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