Um dos objetivos da Academia Brasileira de Ciências (ABC) é dar subsídios científicos para a formulação de políticas públicas. Por isso, no dia 18 de outubro, foi inaugurada uma série de eventos que busca atingir este e outros objetivos: os “Diálogos Pelo Brasil”. Realizado no Auditório do Instituto Latino Americano de Estudos Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o evento discutiu os desafios que o Brasil enfrenta em seus aspectos econômicos, sociais e políticos, sob uma perspectiva da comunidade científica e Acadêmica.

Helgio Trindade, Ruben Oliven, Miriam Grossi, Antônio Sérgio Guimarães e João Carlos Brum Torres

A edição de Porto Alegre (RS) foi coordenada pelo Acadêmico e Diretor da ABC, Ruben Oliven, que destacou a finalidade da série e comentou que “os encontros vão rodar o país, com um já marcado para Salvador, na Bahia, no dia 23 de outubro, e outro previsto para São Paulo em novembro”.

Pela manhã, o Acadêmico Helgio Trindade e os pesquisadores João Carlos Brum Torres, Miriam Grossi e Antônio Sérgio Guimarães discutiram assuntos relacionados à cidadania. À tarde, os Acadêmicos Angela Wyse, Carlos Alexandre Netto, Marcia Barbosa e Simon Schwartzman dialogaram sobre ciência e educação superior.

A cidadania no Brasil: um paradoxo na lógica liberal com práxis autoritária

O Brasil já vivenciou dois períodos de ditadura: o Estado Novo (1939 – 1945), de Getúlio Vargas, e a Ditadura Militar (1964 – 1985). Contudo, de acordo com o Acadêmico Helgio Trindade, “mesmo em períodos ditatoriais, o país apresentou características liberais” e tal paradoxo ajudou a moldar a cidadania e o sistema político brasileiro.

O doutor em ciência política afirma que esse processo de construção começou a se desenhar bem antes do século 20: “minha hipótese é que do Império à República, a práxis, a prática autoritária é um traço permanente, que, combinado com um liberalismo conservador, não produziu no Brasil até os dias atuais um efetivo regime liberal-democrático​”.

Além disso, Trindade afirma que existe, no Brasil, um distanciamento sensível do poder político, em que a maioria da população não toma conhecimento da política de modo geral. Dessa forma, o Acadêmico defende que o sistema político brasileiro construiu-se pela hibridação entre dois processos: o padrão de construção do Estado nacional, articulado com a dinâmica do liberalismo conservador​.

As incertezas do mundo contemporâneo e os desafios ao exercício da cidadania no século 21

Desde o período da Grécia Antiga até o século 21, a concepção de cidadania e os diferentes sistemas políticos sofreram inúmeras alterações e reconstruções. Para falar dos desafios ao exercício da cidadania nos dias atuais, o doutor em Ciências Humanas João Carlos Brum Torres optou por traçar um panorama histórico da situação.

Os cidadãos romanos, por exemplo, tinham um sistema extremamente complexo e, sobretudo, desigual. “Naquela época, havia diferenças censitárias, ou seja, a participação das pessoas nas eleições e aprovações de leis variava de acordo com as diferentes condições socioeconômicas”, conta o pesquisador. Na Europa Moderna, por outro lado, a concepção de cidadania foi renovada, principalmente, por sua associação à ideia de direitos humanos, que também era uma novidade.

Dessa forma, a evolução histórica da cidadania moderna, que passa pela aquisição dos direitos políticos, “foi imediatamente associada a modos de governo representativos e, mais tarde, à formação de partidos políticos que estruturaram o exercício dos direitos do cidadão nas democracias modernas”, completa Torres.

Diante desse cenário, o cientista apresenta alguns desafios ao exercício da cidadania no século 21. O primeiro deles diz respeito à necessidade de recuperar a importância da política e de voltar a reconhecer que o desdobramento da vida coletiva depende de macro decisões que são tomadas na esfera política. O segundo desafio, para Torres, corresponde “ao ataque à globalização trazido pela administração de Donald Trump e o ressurgimento dos nacionalismos, que têm o Brexit como expressão mais visível”.

Em relação ao cenário brasileiro, o doutor em ciências humanas acredita que é preciso entender quais foram os fatores geradores da inconformidade que se manifestou no país, e por que o vetor de orientação dominante da reação política do cidadão brasileira se endereçou para o lado da direita. Diante disso, João Carlos Torres conclui que o principal desafio à cidadania brasileira é “reencontrar um diagnóstico mais claro e objetivo da situação em que o país se encontra, e depois reunir forças para criar uma visão alternativa do Brasil”.

Gênero e cidadania no Brasil dos anos 2000: avanços e retrocessos

Em 2019, acontece um caso de violência contra a mulher a cada seis minutos.  Esse foi um dos dados apresentados pela doutora em Antropologia Miriam Grossi, retirados de um levantamento feito pelo Jornal O Globo. Diante de um cenário tão violento, a pesquisadora destacou a importância de analisar o panorama histórico e entender o que já foi feito para mudar a situação, incluindo no campo acadêmico.

Desde a década de 1970, com o surgimento de importantes instituições científicas como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), até os anos 2000, com a criação de políticas públicas voltadas para a mulher e editais para pesquisa sobre gênero, houve muitos avanços. Por isso, para a pesquisadora, os movimentos sociais, o campo acadêmico e as políticas públicas formam um tripé articulado quando o assunto é gênero e são essenciais para a manutenção da cidadania feminina.

Apesar dos avanços e da criação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006) e da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015), Miriam Grossi aponta que a violência contra as mulheres continua muito intensa e dificulta o pleno exercício da cidadania para elas. Segundo o Atlas da Violência de 2019, treze mulheres foram assassinadas por dia, em 2017 e o número feminicídios aumentou 30,7% de 2007 a 2017. Diante desse cenário, a doutora em antropologia considera que o projeto de lei para a flexibilização da posse de armas é um retrocesso, considerando que o assassinato de mulheres por arma de fogo (de 2007 a 2017) cresceu cerca de 30% dentro de casa, ainda de acordo com o Atlas da Violência.

Contudo, ela também enxerga possibilidades mais otimistas: “o que está acontecendo no Brasil vai provocar, por um lado, um aumento na violência e, por outro, um aumento na resistência”. Movimentos como o “Mães na Ciência”, o “Ni Uma a Menos”, o “Vidas Negras Importam (Black Lives Matter)” e a “Marcha das Mulheres (Women’s March)” foram alguns exemplos positivos citados por Grossi.

Retóricas de integração social: negros brasileiros

Para compreender o processo de construção da cidadania brasileira, o doutor em Sociologia Antônio Sérgio Guimarães traçou um panorama daqueles que representam 19,2 milhões dos brasileiros: os que se declaram negros. Para ele, ao longo da história houve três formas de imaginar a nação, sendo a primeira pautada na ideia do Brasil mestiço e da democracia racial, defendidos por Gilberto Freyre em seu livro “Casa Grande e Senzala”. A segunda forma corresponde à noção de que o brasileiro é desterrado de sua própria terra, defendida por Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”. A terceira forma é trazida por Guerreiro Ramos na “Cartilha de um Aprendiz de Sociólogo”, ao dizer que o povo brasileiro é negro.

De acordo com o pesquisador, o termo “raça” também passou por diversas conotações ao longo da história: em um primeiro momento, foi utilizado em um contexto biológico, com o objetivo de excluir e desumanizar principalmente a população negra; nos Estados Unidos e na África do Sul, por outro lado, o termo tinha o objetivo de classificar para resistir e mobilizar, considerando as situações de segregação racial. “Atualmente, as reflexões raciais são feitas para garantir os direitos conquistados”, afirma.

Nesse contexto, “ser branco no Brasil não está unicamente relacionado a cor enquanto tom de pele, mas também a posição social e classe”, reforça Guimarães. Para ele, há uma fusão entre ser branco e ser cidadão portador de direitos. Ser negro, por outro lado, é muito mais visto como um fenótipo do que como um lugar social, o que preocupa o pesquisador.

Diante disso, a população negra constituiu alguns objetos de luta para conquistar e manter seus direitos enquanto cidadãos, tais quais a liberdade individual, igualdade de tratamento, igualdade de oportunidades, entre outros. Dentre as campanhas e movimentos sociais existentes, o doutor em Sociologia destaca as cotas raciais, que tornaram as universidades públicas muito mais acessíveis.

 


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