RIO – Carolina Araújo, 42 anos, sempre gostou de matemática. Quando tirava dez em uma prova, a família dizia que ela era igual à mãe, uma engenheira com muita habilidade com os números. Incentivada pelos pais desde a infância, Carolina escolheu seguir carreira nas Ciências Exatas e, hoje, é a única mulher no quadro de pesquisadores permanentes do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa). A partir de janeiro de 2020, a matemática Luciana Lomonaco vai passar a integrar o quadro.

Arte sobre foto de Carla Russo

Ela se considera privilegiada por ter tido a mãe como modelo desde pequena, por sempre ter recebido o incentivo da família e, posteriormente, de seus professores e colegas para seguir a carreira na Matemática. Mas reconhece que, para a maioria das mulheres que escolhem as Ciências Exatas, essa não é a realidade.

— Eu só despertei para as questões de gênero muito recentemente, porque muitas barreiras pelas quais as mulheres passam, eu não passei. Acho que o fato de eu ter tido uma mãe engenheira, que era muito boa em Matemática, já construiu um modelo de mulher de Exatas para mim. Sempre foi natural que eu pudesse ocupar esse lugar, mas tenho consciência que isso é uma exceção — afirma.

Além de serem minoria, as mulheres que decidem se dedicar à pesquisa científica na Matemática acabam abandonando a academia ao longo da carreira, afirma Carolina Araújo. Ela cita um levantamento feito pela pesquisadora Christina Brech, que demonstra que as mulheres representam 42% dos ingressantes nos cursos de graduação em Matemática do Brasil. Na pós-graduação esse percentual cai para 27% entre os egressos de cursos de mestrado e 24% entre os de doutorado.

Entre os pesquisadores, o desequilíbrio é ainda maior. Atualmente, entre os bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em Matemática, Probabilidade e Estatística, as mulheres não chegam a 12%. No nível 1A, o mais alto em reconhecimento e valor de bolsa, elas são menos de 10%.

— A gente precisa entender por que essas mulheres estão abandonando a carreira — afirma Carolina, explicando que este é um dos objetivos do primeiro Encontro Brasileiro de Mulheres Matemáticas, coordenado por ela, que acontece nos dias 27 e 28 de julho na sede do Impa, no Rio de Janeiro. — É uma equação super complexa. São muitos os fatores que influenciam isso. Nesse encontro, a nossa ideia é tentar pontuar alguns deles.

‘Encontro é fruto da mobilização das mulheres’

A pesquisadora conta que a realização do primeiro encontro nacional de mulheres matemáticas é o resultado de uma mobilização que tem se fortalecido nos últimos anos. Desde 2016, uma rede de cientistas interessadas em debater a desigualdade de gênero tem se articulado no país, através da realização de debates, mesas redondas e encontros regionais.

No ano passado, o país também recebeu o primeiro Encontro Mundial de Mulheres Matemáticas (World Meeting for Women in Mathematics – WM2), um evento satélite do Congresso Internacional dos Matemáticos (ICM). Carolina Araújo foi uma das palestrantes convidadas.

Entre os destaques do evento deste final de semana estão as palestras de Ragni Piene, matemática norueguesa referência na área, Yoshiko Wakabayashi, pesquisadora da USP recentemente eleita para a Academia Brasileira de Ciências, e Valéria de Paiva, brasileira que atua no Vale do Silício.

A programação também inclui a apresentação da pesquisa de dez jovens matemáticas que concluíram o doutorado a partir de 2010, uma sessão de tutoria para as iniciantes e mesas redondas sobre diversidade, maternidade e iniciativas de inclusão.

Em conversa com CELINA na sede do Impa esta semana, Carolina Araújo falou sobre a importância deste encontro, os fatores que afastam as mulheres da matemática e sobre o que elas têm conquistado desde que iniciaram a sua mobilização.

CELINA: A senhora sempre foi estimulada a estudar matemática, mas acredita que, de modo geral, ainda falta incentivo para as meninas se dedicarem a isso na escola?

Carolina Araújo: Infelizmente sim. Ainda há muito viés inconsciente entre os próprios professores do ensino médio e fundamental. Eu não conheço muitos estudos no Brasil sobre isso, mas no encontro latino-americano de mulheres matemáticas no Chile, no ano passado, apresentaram um experimento feito com estudantes de licenciatura que dariam aula no ensino fundamental. Eles tinham que estudar o caso de uma criança que estava enfrentando dificuldades nas aulas de matemática e dar um diagnóstico sobre a possível recuperação dela. O caso era o mesmo, só mudavam o nome. Os que receberam o caso com o nome de uma menina eram muito mais pessimistas em relação ao sucesso da aluna. É algo que está, de alguma forma, no nosso inconsciente. E eu falo “nosso” porque sei que também tenho viés inconsciente. Eu tento ficar alerta, mas sei que ele está aqui e isso acaba passando para as meninas.

Isso tem impacto na sub-representação de mulheres na Matemática?

É uma equação super complexa. São muitos os fatores que influenciam isso. Nesse encontro [brasileiro de mulheres matemáticas], a nossa ideia é tentar pontuar alguns desses fatores. Um deles, pensando de forma cronológica, começa dentro de casa e na escola. A gente vai abordar essa questão no evento. Outro ponto é a falta de modelos. Quando você pensa num cientista, é muito difícil que a primeira ideia que você vai ter é de uma mulher fazendo ciência. Nesse encontro, a gente quer dar grande visibilidade para as matemáticas brasileiras. Vamos ter dez palestras de jovens pesquisadoras, que concluíram o doutorado a partir de 2010. São mulheres promissoras, de várias regiões do Brasil, que estão fazendo matemática de boa qualidade, para que as mais jovens possam vê-las como modelos, para aumentar a sensação de pertencimento.

Depois de as mulheres tomarem a decisão de ir para as Exatas, como é essa vivência num ambiente majoritariamente masculino?

Cada uma traz a sua singularidade e sua personalidade. Eu, na graduação, vivi um ambiente muito particular na PUC [Rio]. Comecei a fazer iniciação científica já no primeiro ano e tive um professor que me incentivou muito e foi fundamental na minha formação. Eu tive uma experiência muito positiva. Mas, infelizmente, as mulheres muitas vezes encontram em sala de aula professores que são machistas e que vão ter um impacto na carreira delas. Nessa época, o que a gente ouve de um professor tem muito impacto. E aí a gente precisa entender porque essas mulheres estão abandonando a carreira. Quando você olha na graduação de matemática, 42% dos alunos são mulheres, mas quando você vai para os diplomas de doutorado em matemática concedidos a mulheres, não chegam a 25%. Então as mulheres estão saindo da academia.

E isso tem a ver com o ambiente? Com pouco incentivo?

Tem a ver com o ambiente, com a sensação de não pertencimento. Quando você está num ambiente em que é minoria, a sensação é muito diferente. Eu lembro que, no meu doutorado, eu não usava saia, eu só usava calças. Não foi uma escolha consciente não, mas foi uma forma de me proteger.

A maternidade também influencia na permanência e no caminho que essas mulheres trilham na Matemática?

A maternidade com certeza é um momento muito impactante na carreira científica das mulheres. Vamos ter uma mesa redonda sobre isso no encontro e a gente espera sair dela com algumas ideias de ações e iniciativas. Eu fui mãe há três anos, aos 39, e sinto que fez muita diferença eu já estar estabelecida na minha carreira. O impacto foi menor. Eu já tinha doutorado e pós-doc. Houve impacto na minha pesquisa, mas não foi tão forte quanto para uma mulher que tem filhos no início da carreira. Eu tive filho aos 39 anos, mas outra mulher pode querer ter filhos antes. Adiar a maternidade não deveria ser uma exigência para seguir a carreira científica.

Acha que existe uma pressão para que uma mulher na academia demonstre muito mais resultado que um homem para ser reconhecida?

A gente chama isso de efeito Matilda. É algo que é subjetivo, difícil de medir, mas existem vários estudos que mostram que o mesmo trabalho ganha avaliações diferentes se ele é assinado por uma mulher ou por um homem. Tem um estudo em que pesquisadores de várias universidades receberam dossiês de candidatura de um estudante que foi designado aleatoriamente com um nome feminino e masculino e foi avaliado para um cargo em um laboratório de pesquisa nos EUA. O currículo era o mesmo, só com o nome diferente. O candidato com o nome masculino foi consistentemente avaliado como mais competente do que a candidata idêntica, e o salário inicial sugerido para ele foi consistentemente mais alto. Eu tenho certeza que essas pessoas acham que estão fazendo uma avaliação meritocrática, mas não é isso que está acontecendo. E isso eu só comecei a perceber depois de estudar muito.

Houve alguma mudança nos últimos anos? Considera que o cenário está melhorando?

A gente tem conquistas importantes. Acho que a gente está conseguindo romper com um silêncio. Não se falava sobre isso até um tempo atrás. Em 2016, o Encontro Paulista de Mulheres Matemáticas foi um marco. O evento lotou e mostrou que havia uma demanda pública para falar sobre isso. Desde então, a gente tem realizado vários debates e mesas redondas por todo o país. Entre 2017 e 2018, aconteceu um ciclo de debates chamado ‘Matemática: substantivo feminino’. A partir dele foram se construindo redes locais e uma rede nacional de mulheres matemáticas. A gente hoje não tem uma rede formal, institucionalizada, mas tem uma rede de mulheres matemáticas que estão pensando a questão de gênero . Esse encontro é fruto da construção dessa rede. Outra conquista importante desse movimento é que, recentemente, a SBM [Sociedade Brasileira de Matemática] e a SBMAC [Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional] criaram uma comissão conjunta de gênero. Essa comissão já está dando seus primeiros passos. Fizeram um documento de sugestões para garantir diversidade quando você organiza seu evento. No ano passado, tivemos eventos que todos os painelistas eram homens. E a maioria dos homens nem tinha reparado. O fato de a gente estar em rede trouxe força para gente questionar isso dentro da nossa própria comunidade.

Como tem sido esse diálogo com os homens da matemática? Eles estão abertos?

Muitos deles estão percebendo essas coisas. Acho que ninguém faz isso de maldade ou porque quer excluir as mulheres. Tem um trabalho de sensibilização a ser feito. Os meus colegas aqui no IMPA me apoiam muito. Mas imagina o efeito que isso tem para uma aluna de doutorado que está querendo fazer pesquisa. Ela vai a um congresso importante que tem 30 palestrantes homens. Como vai se sentir ali? Aquele é o lugar dela? É importante esse documento da comissão de gênero, dando dicas para garantir essa diversidade. Estamos falando aqui de mulheres, mas também tem a questão racial, onde tudo isso se repete, mas acredito que de forma ainda mais forte. Em uma mesa aqui em 2017, a primeira manifestação da plateia foi de uma mulher negra, que colocou que, por um lado estava feliz que a gente estava fazendo aquela discussão, mas, por outro, pontuou que, na mesa redonda, todas as mulheres eram brancas. E as mulheres negras? Isso foi algo que aprendi com essa experiência e acho muito importante que dentro desse movimento, em que lutamos para aumentar a participação feminina, sensibilizando para a questão de gênero, a gente abraça a questão racial também.

Considera que essa discussão que está acontecendo no campo das Ciências e da Matemática de 2016 para cá tem influência da popularização do debate feminista?

Com certeza. Ela faz parte dessa agenda social que estamos vivendo. Estamos todas conectadas. A questão [da desigualdade de gênero] está aí, inclusive na matemática, e precisamos olhar para ela. Eu não tenho problema nenhum em falar que sou feminista, mas talvez algumas pessoas tenham. Nossa rede é muito diversa. Tem mulheres mais ativas na política, mulheres religiosas. É um espaço muito democrático. O encontro não tem uma bandeira. Ele é um momento de diálogo, de acolhimento da diversidade. O protagonismo do encontro é das mulheres, vamos tratar de assuntos que nos tocam, mas ele também é aberto aos homens. E os homens precisam participar dessa discussão, porque isso não é um problema de mulheres, é um problema da sociedade.

Algumas pesquisas indicam que empresas que têm equipes mais diversas têm um desempenho melhor, que a diversidade se reflete em lucro. Isso se reflete na produção científica da matemática também?

Isso é difícil de medir, mas tenho convicção que sim. Por que o que faz um matemático faz? Existe um problema que você quer resolver, ninguém sabe a resposta e você tem que pensar numa solução. Eu tenho convicção que cada um traz o seu olhar singular para o problema. Se você tem uma diversidade de olhares, você tem mais chances de encontrar a solução. Vejo isso nas minhas colaborações. As mais ricas são as que têm um ponto de vista bem diferente do bem. O ponto de vista científico traz, de alguma forma, o que a pessoa é, então a diversidade para a ciência é importantíssima.