SÃO PAULO – Uma hora de deslocamento no trânsito de São Paulo equivale a fumar cinco cigarros, revela estudo inédito da USP que avaliou pulmões de 413 cadáveres autopsiados na capital paulista.
O trabalho, financiado pela Fapesp e publicado neste mês na revista Environmental Research, faz parte de uma nova estratégia que combina análises epidemiológicas e espaciais e dados de autópsia para quantificar a exposição à poluição atmosférica acumulada ao longo da vida.
Esses e outros achados científicos sobre os efeitos dos poluentes na saúde humana serão apresentados nesta quarta (19) na ONU (Organização das Nações Unidas) por cinco academias de ciências e saúde do mundo, inclusive a brasileira. A ideia é propor a criação de uma espécie de Convenção Quadro sobre o tema, semelhante à do tabaco.
A pesquisa da USP envolveu cruzamento de vários dados. Por meio de questionários aplicados aos parentes próximos da pessoa morta, foram coletados dados como o local onde ela morava, a ocupação, se era fumante ou não, o tempo de residência em São Paulo e horas gastas no trânsito entre a casa e o trabalho.
Os endereços de todos os falecidos foram georreferenciados, e as ruas classificadas de acordo com a intensidade de tráfego da região.
Na autópsia, o pulmão foi avaliado para quantificar os depósitos de carbono resultantes da inalação repetida de poluentes atmosféricos, partículas de fumaça ou de carvão.
Essas partículas entram pelo sistema respiratório e podem ficar retidas nas regiões pulmonar e linfática por um longo período, levando a lesões chamadas de antracose. Nas imagens macroscópicas, elas aparecem como manchas pretas no pulmão. Em geral, são inócuas, mas podem evoluir para doenças pulmonares graves, como a fibrose, principalmente nos profissionais expostos à poeira do carvão.
Há vários estudos epidemiológicos mostrando o impacto da poluição do ar na saúde humana. Por exemplo, cerca de 12% das internações por causas respiratórias em São Paulo são atribuídas aos poluentes, que também responderiam por 4.000 mortes prematuras ao ano.
Mas a avaliação do efeito a longo prazo da exposição individual ao tráfego urbano ainda é um desafio. O trabalho da USP é o primeiro a analisar esse contexto por meio de um grande estudo de autópsia.
Isso é crucial para o estabelecimento de relações causais, para rastrear e monitorar a poluição do ar e para planejar políticas públicas locais.
Segundo o professor da USP Paulo Saldiva, diretor do IEA(Instituto de Estudos Avançados) e um dos autores do trabalho, o estudo é um dos maiores com foco no acúmulo de partículas no pulmão como resultado da exposição à poluição do ar e o primeiro a detectar uma associação significativa com o tempo gasto no trânsito.
Um dado curioso ainda não publicado mostra que, quando se olha os níveis de poluição medidos pela Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), eles são maiores onde há mais trânsito —ou seja, no centro.
No entanto, a pesquisa mostrou que as pessoas que mais concentravam poluentes nos pulmões foram as que moravam na periferia e passavam mais tempo no trânsito.
“As pessoas que viajam mais para trabalhar não só concentram mais doses de poluição como também são as que mais morrem por diabetes, infarto e AVC [acidente vascular cerebral]. Não têm tempo nem para adoecer, para cuidar da sua saúde. Juntam-se aí duas vulnerabilidades”, afirma Saldiva.
Para ele, esse achado foi uma das maiores contribuições brasileiras na declaração que as cinco academias nacionais de ciências e de medicina do mundo (Brasil, EUA, Alemanha e Africa do Sul) vão apresentar na ONU.
O documento chama a atenção para a crescente poluição do ar e o impacto na saúde humana e na economia dos países. Nas grandes cidades brasileiras, a poluição veicular é responsável pela grande maioria das emissões de poluentes.
Estima-se que eles contribuam para ao menos 5 milhões de mortes prematuras por ano em todo o mundo, com maior impacto nas populações vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas que vivem na pobreza.
“Podemos mudar comportamentos, alertando as pessoas para os perigos à saúde, e informar os governos sobre os custos disso e as alternativas para mudar esse cenário. Com o cigarro, foi assim que funcionou. A estimativa no Brasil é que para cada unidade arrecadada com a venda do cigarro, você gasta quatro com os danos à saúde e perda de capacidade laboral”, diz Saldiva.
Para Maria de Fatima Andrade, professora titular do departamento de meteorologia e ciências atmosféricas da USP, que também participou do grupo que elaborou o documento, outra contribuição foi mostrar que as pessoas são expostas de formas diferentes à poluição do ar resultante do tráfego urbano.
Um estudo em São Paulo, ainda não publicado, mostra, exemplo, que as pessoas que usam ônibus estão mais expostas aos poluentes resultantes da emissão do diesel do que as que utilizam o carro.
“A exposição é a concentração de poluentes vezes o tempo que você está respirando aquele ar. Em São Paulo, temos deslocamentos enormes, pessoas que ficam uma, duas horas expostas aos poluentes.”
Segundo Andrade, o caminho é a utilização de meios de transporte públicos mais limpos, como ônibus elétricos, especialmente em rotas que envolvam grandes deslocamentos e que atendam a uma população maior.
“Hoje temos um sistema de transporte que funciona melhor na área central e pior na periferia. Se uma pessoa precisa ficar duas horas no sistema de transporte, ela acaba sendo exposta muito mais que aquela que só pega o metrô, com concentrações mais baixas.”
Na opinião de Saldiva, enquanto o país não avança em políticas públicas voltadas para a redução da poluição atmosférica, muitas pessoas estão encontrando suas próprias alternativas para não ficar paradas no trânsito, usando bicicletas e patinetes, por exemplo.
“São Paulo parecia que avançaria rumo a uma redução de emissão de poluentes e voltou atrás nessa nova licitação de ônibus. Nossa vigilância ambiental não se ocupa com poluição ambiental, ainda está preocupada com mosquitos. Estamos no tempo do Oswaldo Cruz, na revolta das vacinas.”
Vários países do mundo estão adotando políticas para a redução de poluentes. A Inglaterra, por exemplo, estuda utilizar células de etanol como combustível de transição da frota de veículos. A China está em processo de substituir ônibus a diesel por elétricos.