Leia a seguir matéria escrita pela Acadêmica Márcia Barbosa e José Rafael Bordin, para o jornal O Globo, publicada em 12 de abril:
Água é o principal recurso mineral da Terra. Menos valiosa que o ouro ou a prata, que o diamante e a safira, mas sem água não há vida – pelo menos como a conhecemos. Por mais que para a maioria dos leitores ter uma garrafa de água fresca à disposição seja algo nada extraordinário, esta não é a realidade para boa parte da população mundial – e mesmo brasileira. Segundo a ONU [1], 20% da população mundial já sofre com falta de água e outros 26% com escassez. Com o aumento da população do planeta esses números tendem a piorar muito – estima-se que 50% da população mundial sofra com escassez de água até 2050.
Apesar do Brasil possuir uma das maiores reservas de água do planeta, existem regiões sofrendo de escassez de água. O semiárido nordestino é o caso mais notório, mas o problema se estende do Norte ao Sul. Em Brasília 2 milhões de pessoas ficam sem água nas torneiras a cada 5 dias. Em Bagé, uma cidade no Pampa gaúcho, com vastos campos para criação de gado, o racionamento de água diário era uma realidade até o verão passado, e existe a apreensão de que logo o racionamento retorne. São Paulo sofreu recentemente com a seca do reservatório da Cantareira, deixando milhões de pessoas sem água.
Se a Terra é o planeta água, por que sofremos com escassez? 71% do nosso planeta é coberto de água, mas somente 2,5% de toda esta água na Terra é água doce, e a ínfima parte de 0,3% é água doce de fácil acesso. Com isto, a água disponível daria para o consumo de 7 bilhões de pessoas – neste momento já passamos de 8 bilhões de habitantes na Terra.
Em que se gasta tanta água? A agricultura demanda 70% da água consumida por humanos. Além do consumo pelo aumento populacional, os recursos hídricos são poluídos com resíduos macroscópicos, como plástico, e com resíduos a nível atômico e molecular como cafeína, hormônios e mesmo drogas. A isto se adicionam os desastres ambientais como os provocados pela Vale em Brumadinho e pela Samarco em Mariana, que levaram à morte de rios extremamente importantes devido à contaminação por metais pesados. Então é urgente para a sobrevivência e dignidade humana tornar mais eficiente o acesso mundial à água, e isso passa diretamente por sua purificação.
Uma das saídas é a dessalinização da água do mar para as regiões que estiverem próximas ao mar ou da água subterrânea quando esta estiver contaminada com sais minerais. Duas tecnologias competem para no processo de dessalinização: destilação e osmose reversa (ou inversa). A destilação consiste em evaporar a água da solução salina. Como o ponto de evaporação da água é uma temperatura mais baixa do que do sal, a água evapora e o sal fica. Este vapor de água é depois condensado. O problema deste processo é a enorme quantidade de energia que necessita. Hoje no Brasil entre os grupos que pesquisam nesta áreas destaca-se o da UFRJ que inclusive possui um produto tecnológico para produzir água a um custo mais baixo associando células fotovoltaicas [2]. Esta tecnologia é particularmente interessante para dessalinizar água do mar que além de sal apresenta microorganismos.
A osmose reversa se baseia em um fenômeno denominado de osmose. Ele ocorre quando duas soluções, uma rica em sal e a outra contendo somente água, são separadas por uma membrana pela qual só passa água. Se nada for feito, a água irá naturalmente passar da região sem sal para a região com sal. Para que o processo contrário ocorra é necessário realizar uma pressão na solução salina em direção à membrana. Lembra o processo tradicional de filtrar café, onde o pó fica de um lado do filtro. No caso do café a pressão é exercida pela gravidade. Infelizmente no caso da dessalinização não é possível fazer isto e utiliza-se energia para pressionar a solução em direção ao filtro. Para impedir a passagem do sal, usam-se filtros de membranas com buracos (poros) menores que 2.0 nanometros, 1.000.000 de vezes menores que a espessura de um fio de cabelo [3]. Esta é técnica empregada pelo Programa Água Doce (PAD) criado pelo extinto Ministério do Meio Ambiente [4]. Com um investimento relativamente baixo, de R$ 258 milhões ao longo de 7 anos, o PAD implantou centenas de sistemas de dessalinização no semiárido nordestino, beneficiando centenas de milhares de pessoas. O tanque utilizado foi projetado pela Embrapa [5], e o resíduo que sobra do processo pode ser usado como substrato para criação de peixes e microalgas. Contudo, o processo de osmose reversas ainda é caro – o custo para deixar água salobra potável é 5 vezes maior que simplesmente usar água doce. Felizmente existem algumas iniciativas nacionais de tentar baratear os custos usando fontes alternativas de energia que sejam adaptadas ao local onde ocorre a falta de água [6].
Para baratear o processo é necessário desenvolvermos membranas capazes de deixar passar mais água e rejeitar mais sal. Do ponto de vista prático, isto significa poros ainda menores. Felizmente, com o advento da nanotecnologia isto é possível. Dois materiais promissores são o grafeno e o dissulfato de molibdênio [7, 8, 9]. O grafeno é uma folha de carbono de um único átomo de espessura – é como se fatiássemos um diamante tão fino que cada fatia teria a espessura de um único átomo. Já o dissulfeto de molibdênio é um sanduíche, onde temos duas fatias de enxofre fazendo o papel de pão e uma fatia de molibdênio como o recheio. Qual a diferença entre estes materiais? Grafeno odeia água, ou é hidrofóbico. Assim ele deixa passar mais água através de nanoporos produzidos nele. Contudo, passa mais sal em comparação ao dissulfeto de molibdênio, que tem uma parte que odeia água – o molibdênio – e partes que amam água, o enxofre. Como resultado o fluxo de água é menor, mas também retêm mais sal. Estes processos ainda estão em fase de estudo aqui mesmo no Brasil e se espera que no futuro venham a ser uma proposta para as plantas de dessalinização.
E qual a parte mais interessante nisso tudo? O Brasil tem pesquisadores estudando e produzindo a nova geração de filtros baseados em nanotecnologia ou em novas formas de obter energia a partir de fontes renováveis. O Brasil tem a maior reserva hídrica do mundo, e precisa desempenhar um papel protagonista no desenvolvimento de tecnologias para garantir água potável para o futuro porque ciência gera desenvolvimento.
[1] http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml
[2] https://www.marinha.mil.br/dgdntm/sites/www.marinha.mil.br.dgdntm/files/arquivos/9-%20Aplica%C3%A7%C3%A3o%20de%20Reatores%20Modulares%20-Prof.%20Dr.%20Cotta-%20DGDNTM%20MB.pdf
Technology, and the environment. Science 333, 712, 2011.
[3] ELIMELECH, M.; PHILLIP, W. A. The future of seawater desalination: Energy,technology, and the environment. Science 333, 712, 2011.
[4] http://www.mma.gov.br/agua/agua-doce
[5] http://www.mma.gov.br/images/arquivos/agua/agua_doce/aguadoce_atualizacao_orientacoes_tecnicas_pad_21dez15.pdf
[6] http://site.ufvjm.edu.br/revistamultidisciplinar/files/2018/05/Cristiano1011.pdf
[7] 2D nanoporous membrane for cation removal from water: effects of ionic valence, membrane hydrophobicity and pore size. M. H. Köhler, J. R. Bordin and M. C. Barbosa. J. Chem. Phys. 148, 222804 (2018).
[8] Ion Flocculation in Water: From Bulk to Nanoporous Membrane Desalination. M. H. Köhler, J. R. Bordin and M. C. Barbosa. J. Mol. Liq. 277, 516-521 (2019)
[9] Environmental performance of graphene-based 3D macrostructures. Nariman Yousefi, Xinglin Lu, Menachem Elimelech Nathalie Tufenkji. Nature Nanotechnology 14, 107–119 (2019)