Para tornar a contribuição da ciência mais eficaz na produção de conhecimentos adequados à formulação e implementação de políticas públicas, é necessária uma abordagem mais abrangente de avaliação das múltiplas dimensões que interagem entre si e perpetuam a pobreza. A primeira sessão da Conferência IAP-Spec, realizada em 27 de março, no Museu do Amanhã, tratou dos efeitos interativos de educação, nutrição, saúde, condições de mercado não somente no nível de renda das pessoas, mas também em suas oportunidades de ascensão social.

A sessão 1 teve como moderadora a própria coordenadora do evento, a cientista política Elisa Reis, professora de sociologia política na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadora do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar para o Estudo da Desigualdade Social e vice-presidente do Conselho Internacional de Ciência (ISC, na sigla em inglês).

Ela ressaltou que a força mobilizadora do evento estaria em estimular a percepção de que a multidisciplinaridade é básica. “Aqui percebemos isso acentuadamente. Precisamos de ação. E isso requer boas interações entre as ciências e os formuladores de políticas públicas”, apontou.

 

Medindo a pobreza global com um olhar multidimensional

Professora do Departamento de Economia da Universidade Nacional do Sul (UNS), na Argentina, e pesquisadora associada da Iniciativa para Pobreza e Desenvolvimento Humano de Oxford (OPHI, na sigla em inglês), da Universidade de Oxford, no Reino Unido, Maria Emma Santos falou sobre o ODS 1. O Objetivo focado na pobreza especifica a redução, ao menos pela metade, de pessoas vivendo na pobreza em todas as suas dimensões até 2030.

Ela abordou o Índice Multidimensional de Pobreza (MPI, na sigla em inglês), que desenvolveu pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP, na sigla em inglês) e a OPHI, em colaboração com Sabina Alkire, publicado em 2010. Em 2018 ele foi revisado e hoje cobre mais de 100 países, subdivididos em mais de 1000 regiões. Seu foco considera três dimensões da pobreza: saúde, educação e padrões de vida. “Pessoas que são privadas de um destes três indicadores são consideradas pobres. Privação de mais de um indicador aponta pobreza aguda”, explicou Emma.

O trabalho alcançou resultados significativos: na atualização de 2018, mostrou um total de 1 bilhão e 300 milhões de pessoas vivendo na pobreza nos 100 países pesquisados, o que representa ¼ da população total destes países. Deste total, 50% – em torno de 650 milhões de pessoas – vivem em pobreza extrema. As regiões rurais concentram 85% dos pobres, sendo que 2/3 destas pessoas vivem em países de renda média. Os de baixa renda concentram 30% de pobres.

O sul da Ásia e a África subsaariana concentram 83% deste bilhão e 300 milhões de pobres, cuja metade é composta por crianças. A América Latina concentra 40 milhões de pessoas em estado de pobreza, das quais 20,3% estão no México e 20,1% no Brasil.

MPI Global 2018: 1127 regiões subnacionais

Maria Emma explicou os critérios sobre os quais são construídos os indicadores do MPI. O de saúde baseia-se em índices de nutrição e de mortalidade infantil. O de educação, em frequência à escola e anos de escolarização. O indicador de padrão de vida inclui várias referências: qualidade da moradia, eletricidade, água potável, saneamento, combustível para cozinha e equipamentos domésticos básicos.  O cálculo do índice considera a incidência e a intensidade da privação.

Já o levantamento correlato do Banco Mundial, também de 2018, que envolve 119 países, incluindo a Europa, corta alguns dos indicadores utilizados pelo MPI e inclui acesso a trabalho e segurança pessoal. Em vista deste exemplo, Emma destaca os muitos desafios para que se encontre consenso internacional quanto aos indicadores. “São muitas as barreiras e dificuldades para unificar estes dados. O maior desafio é quanto às políticas, porque o crescimento econômico de um país não garante o fim da pobreza multidimensional. Precisamos de unificação.”

 

Pobreza, desigualdade e saúde

Membro titular da Academia Nacional de Medicina (ANM), diretor do Centro de Saúde Global da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) desde 2009 e professor titular da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz, Paulo Buss falou sobre o ODS 3, que trata de saúde e bem-estar. Ele considera esta a dimensão mais importante dos ODS: “População mais saudável gera melhores condições de desenvolvimento”, argumentou.

Ele mostrou uma publicação da Organização Mundial de Saúde (OMS), de cuja elaboração participou, intitulada “Sociedades Justas: Equidade na Saúde e Vida Digna”, que busca demonstrar que pobreza e má saúde são questões estruturais do modelo capitalista, que promove desigualdade e exclusão social.

Fazendo uma análise da conjuntura global, Buss destacou a crise sistêmica e global, iniciada em 2007-2008 nos EUA e União Europeia, que gerou a crise de bancos privados. Estes reagiram com privatização dos lucros e socialização dos prejuízos, o que deu origem a políticas recessivas, com redução de investimentos públicos e orçamentos sociais. “A crise global impactou todos os países, mas de formas diferentes. As desigualdades pré-existentes foram aprofundadas”, ressaltou o médico.

Houve amplificação da pobreza, do desemprego e redução da proteção social. O modo de produção e consumo provocaram poluição e mudanças climáticas, resultando comprometimento ambiental em escala planetária. “A crise é alimentar, energética e ética”, destacou Buss, considerando que as consequências mais trágicas afetam os países mais frágeis, com menor renda. E as consequências sobre os sistemas de saúde foram profundas. “Cresceu muito o percentual de crianças com retardo de crescimento, índice que é grave, porque significa um efeito em longo prazo da desnutrição. A maior mortandade ocorre onde há menos programas de proteção social. Quanto mais pobre o país, maior a distância entre ricos e pobres.”

O médico aponta dados que não deixam dúvidas: ambientes políticos e econômicos desfavoráveis provocam tripla carga de enfermidades. Endemias e epidemias (como Aids, malária e tuberculose), doenças emergentes (como influenza, ebola, chikungunha), reemergentes (como dengue e cólera), resistentes a antimicrobianos existentes e transmitidas por alimentos, convivem com as doenças crônicas não-transmissíveis (como diabetes, hipertensão, enfermidades cardio e cérebro-vasculares, neoplasias, enfermidades mentais) e a ascensão dos índices de violência.

Apesar da contribuição das ciências na descoberta de medicamentos, vacinas, soros, kits para diagnóstico, entre outras inovações, a ganância das empresas farmacêuticas e as regras do comércio internacional, segundo Buss, tornam os insumos para a saúde muito caros e quase inacessíveis aos países pobres – e aos pobres de todos os países. “A regulação é sempre inatingível”, destaca o palestrante.

Buss aponta que pobreza e desigualdades são situações distintas, que requerem políticas públicas também distintas para serem sanadas. “Tão importante quanto erradicar a pobreza é a promoção da equidade e a redução ou eliminação das desigualdades econômicas, sociais e ambientais, isto é, ‘não deixar ninguém para trás’”. E, para tanto, as políticas públicas são essenciais, imprescindíveis e indelegáveis.”

No Brasil, a experiência recente (2002-2015) mostrou redução expressiva da mortalidade infantil, em função da melhoria das condições de vida, propiciada por políticas públicas de aumento real do salário mínimo e expansão crescente do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC). “Os serviços de saúde de atenção primária, denominado Programa de Saúde da Família, fizeram uma grande diferença”, afirmou o especialista.

Em resumo, Buss deixou claro que a meta da Agenda 2030 de “não deixar ninguém para trás” não será atingida por meio da mão invisível do mercado. “Há uma interpenetração muito grande entre os ODSs e quase todos tem a ver com saúde. Água, esgoto, emprego, todos estes componentes resultam em problemas de saúde e requerem políticas intersetoriais. Essas políticas já existem no mundo, já foram construídas. O que falta para que sejam instituídas onde são necessárias é a vontade política”, concluiu.

 

Pobreza e segurança alimentar

Pesquisadora sênior do Laboratório de Ciência, Inovação e Sociedade (LISIS) do Instituto Nacional de Pesquisa em Agricultura da França (INRA), Allison Loconto atua também como  pesquisadora visitante em Comércio Sustentável na Organização de Alimentos e Agricultura das Nações Unidas (FAO, na sigla em inglês). Seu foco foi nos ODSs 2 e 12, referentes à segurança alimentar e a responsabilidade por sua promoção.

Numa iniciativa apoiada pela FAO, Unicef, Fundo Internacional pra o Desenvolvimento Agrícola (IFAD, na sigla em inglês), o Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês) e a Organização Mundial de Saúde (OMS), diversos países se reuniram em 1996 para criar índices de pesquisa sobre insegurança alimentar no mundo. O indicador utilizado foi a prevalência de subnutrição, baseada em calorias ingeridas. A publicação resultante intitula-se “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo”.

Os números em 2017, porém, estavam iguais aos de 1997. “A pequena diminuição que tinha havido nos dez anos anteriores deixou de existir, por influência das mudanças climáticas, conflitos políticos e sociais e a recessão econômica. Desde 2018, o nível de insegurança alimentar está aumentando. Houve, portanto, um retrocesso”, apontou Allison.

A palestrante explicou que seu trabalho está ligado ao ODS 12, dado que busca entender quem é responsável por aumentar a produção e reduzir o consumo, assim como estudar a sustentabilidade dos sistemas. “Estamos estudando e comparando países, do ponto de vista da perda e desperdício de alimentos, desafios nutricionais, obesidade e outros itens que estão sendo incluídos nas métricas. A ingestão de calorias deixou de ser o único parâmetro a ser considerado”, ressaltou Loconto.

 

Autonomia apoiada para pequenos produtores

A redução do problema envolve incentivos à adoção de práticas sustentáveis, que se tornam possíveis quando atores locais desenvolvem regras inovadoras nas interações de mercado, baseadas na reciprocidade das trocas, incluindo a diversidade de conhecimentos.

Loconto apresentou exemplos de sistemas participativos na Bolívia, no Benin e em Trinidade & Tobago, baseados na relação direta entre produtores e consumidores, com mercados locais e mudanças nas regras da produção orgânica, alocando de forma correta as responsabilidades compartilhadas. Os agricultores, consumidores, cooperativados, empresas, funcionários públicos, ONGs e etc. estão inovando juntos. Allison esclareceu que “as pessoas envolvidas estão buscando adaptar práticas sustentáveis a contextos locais, além de criar novos mercados. Ninguém exerce apenas um determinado papel social neste sistema.”

Estes sistemas contam com plataformas de multiplicação de novos atores, treinamento e pesquisa local, com aplicação de conhecimento para desenvolver produtos seguros. Segundo Loconto, “a legitimidade vem de dentro, com apoio da comunidade, que mobiliza seus próprios recursos para criar esses sistemas, gerando empregos para os próprios membros da comunidade. Para tanto, é preciso que haja legislação que ajude – e não atrapalhe.”

As sugestões e recomendações de seus estudos envolvem as seguintes políticas:

  • O reconhecimento e registro de produtores agroecológicos que apresentem as condições exigidas pela lei para o comércio de produtos sustentáveis em mercados já existentes.
  • A revisão de esquemas de subsídio de modo a incluir estes produtores, oferecendo incentivos financeiros para a criação de empreendimentos agrícolas de pequena escala.
  • A reforma de programas de pesquisa e extensão, de forma a incluir a agroecologia e possibilitar colaboração e experimentação mais flexíveis com os produtores e atores privados, de modo participativo.
  • A adaptação dos protocolos de mediação, de acordo com as realidades locais de produção agroecológica, como relações de comércio informais.
  • A recriação de espaços públicos locais, com instalações sanitárias adequadas para receber mercados de produtores, feiras e festivais organizados pela comunidade.
  • O estímulo e promoção de pesquisas participativas sobre os mercados agroecológicos inovadores, buscando melhor entendimento de como eles contribuem para a agricultura sustentável e os sistema de alimentos.

Concluindo, Allison Loconto reafirmou que a soberania do sistema alimentar é muito importante para as comunidades. “São iniciativas  para reduzir a pobreza através da colaboração. A descrença em um sistema facilitador que vai resolver esse problema faz as comunidades assumirem o problema da segurança alimentar. E podemos ajudar.”

 

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