Confira matéria da Agência Fapesp sobre um grupo de pesquisadores da Unesp e USP, incluindo o ex-afiliado da ABC Max Langer [2014-2018], que foram os primeiros a conseguir inferir padrões paleobiogeográficos entre os trilobitas:
O registro fóssil mostra que os trilobitas surgiram há 521 milhões de anos nos oceanos do período Cambriano, quando os continentes ainda eram uma paisagem inóspita à maioria das formas de vida.
Poucos grupos de animais tiveram tamanho sucesso adaptativo como os trilobitas, artrópodes que caminharam pelo solo marinho por 270 milhões de anos até a grande extinção do Permiano, há 252 milhões de anos. Quanto mais recuado no tempo viveu um determinado grupo de animais, mais escassos e raros são seus fósseis, mais difícil é a compreensão sobre o seu modo de vida e mais complicado é para os paleontólogos conseguirem estabelecer relações evolutivas no tempo e no espaço.
Superando as dificuldades inerentes à investigação de animais que viveram há tanto tempo, um grupo de cientistas da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, e da Universidade de São Paulo (USP) obteve sucesso ao conseguir, pela primeira vez, inferir padrões paleobiogeográficos entre os trilobitas. A paleobiogeografia é o ramo da paleontologia que estuda a distribuição de plantas e animais extintos e sua relação com características geográficas antigas.
O trabalho foi desenvolvido por Fábio Augusto Carbonaro, pós-doutorando no laboratório coordenado pelo professor Renato Pirani Ghilardi. Participaram também os professores Max Cardoso Langer [membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências (ABC), entre 2014 e 2018], da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, e Silvio Shigueo Nihei, do Instituto de Biociências, ambas instituições da USP, entre outros.
A pesquisa foi feita a partir da análise das diferenças e semelhanças morfológicas entre trilobitas do gênero Metacryphaeus, com 11 espécies descritas. Esses viveram no período Devoniano, entre 416 milhões e 359 milhões de anos atrás, e habitaram as águas frias onde hoje ficam a Bolívia, o Peru, o Brasil, as ilhas Malvinas e a África do Sul.
Mais especificamente, o gênero Metacryphaeus existiu durante os estágios Lochkoviano e Pragiano. O período Devoniano é subdividido em sete estágios. Os dois mais antigos são o Lochkoviano (419,2 milhões até 410,8 milhões de anos) e o Pragiano (410,8 milhões até 407,6 milhões de anos).
Resultados da pesquisa foram publicados na Scientific Reports, do grupo Nature, e fazem parte do projeto “Paleobiogeografia e rotas migratórias de paleoinvertebrados devonianos do Brasil“, que tem apoio da FAPESP e do CNPq e é coordenado por Ghilardi.
“Ao desaparecerem na extinção do Permiano, há 252 milhões de anos, os trilobitas não deixaram descendentes. Seus parentes vivos mais próximos são os camarões e, de forma bem mais distanciada, as aranhas, os escorpiões, as aranhas-do-mar e também os ácaros”, disse Ghilardi.
O pesquisador explica que fósseis de trilobitas são abundantes e encontrados em todo o mundo. São tão abundantes que acabaram apelidados de baratas do mar. A comparação não é descabida, dado que anatomicamente os trilobitas assemelhavam-se de fato às baratas. A diferença é que não eram insetos e possuíam o corpo articulado, dividido em três partes (ou lobos), daí seu nome.
No hemisfério Norte, o registro de trilobitas é muito rico. Os paleontólogos já descreveram 10 ordens, abarcando mais de 17 mil espécies distintas. As menores tinham apenas 1,5 milímetro, enquanto as maiores espécies atingiam até 70 centímetros de comprimento (40 cm de largura). Há regiões como o Marrocos, por exemplo, onde os trilobitas são preservados com perfeição e requinte, quase como se fossem belos camafeus de priscas eras.
Já no Brasil, no Peru e na Bolívia seus fósseis apresentam um estado de conservação muitas vezes sofrível, limitando-se às impressões que seus exoesqueletos deixaram no lodo do solo marinho.
“Muito embora seu estado de conservação não seja o ideal, há milhares de registros de trilobitas nos sedimentos que formam a Bacia Paraná, na região Sul, e a Bacia Parnaíba, fincada entre as regiões Norte e Nordeste”, disse Ghilardi, que é também presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia.
Segundo ele, tal estado de conservação pode ser uma decorrência das condições geológicas e climáticas aqui reinantes durante a era Paleozoica, quando as porções de terra firme que um dia formariam a América do Sul encontravam-se no Polo Sul – e em muitos momentos inteiramente cobertas de gelo.
Durante o período Devoniano, a América do Sul e a África encontravam-se unidas dentro do supercontinente Gondwana, sendo que o atual território da África do Sul situava-se colado ao Uruguai e à Argentina na altura do Rio da Prata, e os estados do sul do Brasil eram unidos aos territórios das atuais Namíbia e Angola.
Análise parcimoniosa
O trabalho de pesquisa iniciou com a análise de 48 caracteres (as medidas de diversos órgãos anatômicos) encontrados nos fósseis de cerca de 50 espécimes das 11 espécies do gênero Metacryphaeus.
“Tais caracteres servem, em princípio, para estabelecer a filogenia, ou seja, as relações evolutivas mais próximas ou mais distantes entre todas as espécies do universo de análise”, disse Ghilardi.
É a chamada análise parcimoniosa, muito usada para estabelecer relações entre seres vivos dentro de um determinado ecossistema, e que nos últimos anos começa a ser empregada igualmente no estudo de fósseis.
Ghilardi comenta que, em geral, a parcimônia é o princípio de que a explicação mais simples que pode interpretar os dados deve ser a escolhida. Na análise da filogenia, a parcimônia significa que uma hipótese de relacionamentos que requer o menor número de mudanças de caracteres entre as espécies analisadas (como no caso dos trilobitas do gênero Metacryphaeus) é a mais provável de estar correta.
Nihei, do IB-USP, é taxonomista e sistemata – que trata de sistemas de classificação – de insetos. Na pesquisa, sua colaboração foi na biogeografia.
“Métodos de análise biogeográfica são empregados normalmente com grupos viventes, cujas estimativas de idade são fornecidas por filogenias moleculares, ou seja, pelo chamado relógio molecular, que indica a idade provável da divergência entre os ancestrais de uma ou mais espécies. Nesse trabalho com trilobitas, usamos idades da mesma forma, porém fornecidas pelos registros fósseis”, disse.
“O principal ponto do trabalho é o uso dos fósseis em um método que usualmente é utilizado para biogeografias moleculares. Há pouquíssimos casos como o nosso, com fósseis. Creio que nosso estudo abre um novo horizonte para os métodos biogeográficos que requerem um cronograma [um cladograma datado molecularmente], pois esse cronograma pode ser também obtido a partir de táxons exclusivamente fósseis, como os estudados pelos paleontólogos, e não somente cladogramas moleculares de animais viventes”, disse Nihei.
Langer destaca que o aspecto mais importante do trabalho, “e foi por isso que ele foi aceito por uma revista tão importante como a Scientific Reports, é que pela primeira vez se usa análise parcimoniosa para entender a filogenia de um gênero de trilobitas no hemisfério Sul”.
Dispersão gonduânica
Os resultados das análises paleobiogeográficas reforçaram a ideia de que a Bolívia e o Peru formam o lar ancestral dos Metacryphaeus, algo que já era aventado como hipótese.
“Os modelos estimam uma probabilidade de 100% para a Bolívia e o Peru serem a área ancestral do clado Metacryphaeus, assim como para a maioria de seus clados internos”, disse Ghilardi.
A confirmação da hipótese mostra como os modelos parcimônicos têm o poder de sugerir a presença de clados em um determinado momento do passado do qual não se conhecem registros físicos da presença dos mesmos.
No caso de Metacryphaeus, seus registros mais antigos na Bolívia e Peru são do início do Pragiano (410,8 milhões até 407,6 milhões de anos), mas estima-se que o gênero tenha evoluído naquela região no estágio Lochkoviano (419,2 milhões até 410,8 milhões de anos).
Em outras palavras, os modelos parcimônicos sugerem que o gênero Metacryphaeus deve ter se originado na Bolívia e Peru em algum momento antes de 410,8 milhões de anos atrás, porém não anterior a 419,2 milhões de anos – idades muito mais antigas do que aquelas dos fósseis hoje conhecidos.
Segundo Ghilardi, a interpretação dos resultados sugere que a radiação do gênero Metacryphaeus para outras áreas do supercontinente da Gondwana ocidental ocorreu durante episódios transgressivos marinhos nos estágios Lochkoviano e Pragiano, quando o mar inundou porções do antigo supercontinente Gondwana.
“A dispersão dos trilobitas do gênero Metacryphaeus durante o estágio Lochkoviano ocorreu da Bolívia e do Peru para o Brasil – para as bacias sedimentares do Paraná, hoje no sul do País, e do Parnaíba, entre as regiões Norte e Nordeste – e em direção das ilhas Malvinas, enquanto a dispersão durante o estágio seguinte, o Pragiano, se deu na direção da África do Sul”, disse.
Os fósseis de trilobitas da Bacia Paraná vêm sendo continuamente encontrados nas últimas décadas. Já os fósseis da Bacia do Parnaíba foram coletados no fim do século 19 e estavam depositados no Museu Nacional, destruído pelo incêndio em setembro.
“Esses fósseis ainda não foram localizados sob os escombros do edifício, mas tudo leva a crer que não existem mais. Supõe-se que impressões das carapaças no antigo lodo do solo oceânico, mesmo que petrificadas, devem ter se dissolvido com o calor do incêndio”, disse Ghilardi.
O artigo Inferring ancestral range reconstruction based on trilobite records: a study-case on Metacryphaeus (Phacopida, Calmoniidae) (doi: https://doi.org/10.1038/s41598-018-33517-5), de Fábio Augusto Carbonaro, Max Cardoso Langer, Silvio Shigueo Nihei, Gabriel de Souza Ferreira e Renato Pirani Ghilardi, pode ser lido em: https://www.nature.com/articles/s41598-018-33517-5.