É uma conversa silenciosa entre homem e máquina. Waszkiewicz raramente fala alguma coisa. Empacotado em suas roupas grossas e esfoladas de inverno, o velho polaco – um dos perfuradores mais experientes do mundo, com mais de 5 mil metros de gelo perfurado no currículo – controla a broca com a frieza que o ambiente à nossa volta demanda. Estamos a 5 670 metros de altitude, sentados no topo da maior massa de gelo tropical do mundo, a Calota de Gelo Quelccaya, nos Andes peruanos, com 50 quilômetros quadrados de superfície – uma área equivalente a 6 mil campos de futebol. Objetivo: coletar amostras de gelo profundo, contendo informações de milhares de anos sobre o passado climático da Amazônia.
O que uma coisa tem a ver com a outra? Quase toda a neve que cai sobre essa região dos Andes é de origem amazônica, feita de água produzida ou reciclada de alguma forma pela floresta, que é vizinha da cordilheira. Sendo assim, cada camada de gelo que se forma no topo das montanhas peruanas é uma amostra congelada de todas as partículas, moléculas e substâncias que circularam pela atmosfera da Amazônia naquele determinado ano – tal qual os anéis de crescimento de uma árvore, mas com uma riqueza de dados e uma escala temporal muito maiores.
“É o melhor registro do clima passado que existe”, disse o glaciologista brasileiro Jefferson Simões [membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC)], do Centro Polar e Climático, o CPC, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS, que lidera a expedição ao lado de Paul Mayewski, do Instituto de Mudanças Climáticas (o CCI, na sigla em inglês) da Universidade de Maine, nos Estados Unidos. Dois veteranos das regiões polares que há anos esperavam essa oportunidade de testar as botas – e os pulmões – no gelo tropical de Quelccaya.
Eles querem entender como o clima da Amazônia variou ao longo do tempo, como essas oscilações se relacionam com diversos fenômenos climáticos globais, e de que forma atividades humanas – como queimadas, desmatamento e mineração – vêm interferindo nesses processos mais recentemente. “Entender o que aconteceu no passado é essencial para prever o que pode vir por aí”, disse Mayewski, um dos maiores especialistas do mundo em paleoclimatologia. Para Simões, pioneiro da glaciologia no Brasil, a aventura se encaixa ainda num outro projeto, coordenado por ele, que está mapeando e monitorando todas as geleiras que correm para a bacia Amazônica. “São as geleiras da Amazônia”, disse. A floresta alimenta as montanhas com neve, que fica estocada na forma de gelo e acaba retornando para ela na forma de água.
No total, dezessete cientistas participaram da expedição, realizada em setembro, incluindo pesquisadores do Brasil, Estados Unidos, Chile, China e Peru. A piauí acompanhou doze dias da expedição, de 15 a 26 de setembro, a convite de Simões. A pesquisa de campo custou 550 mil reais, financiada em sua maior parte pelo Brasil, com recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, que Simões coordena. O CCI, comandado por Mayewski, entrou com 50 mil dólares.
Quelccaya fica numa região remota da cordilheira Vilcanota, no sul do Peru, mais ou menos no meio do caminho entre as ruínas incas de Machu Picchu e o lago Titicaca, e distante apenas 50 quilômetros da borda da floresta amazônica, ao leste. É onde o vento da Amazônia bate nas montanhas e faz a curva para o sul, carregando umidade equatorial para outras regiões do Brasil. Muitas pesquisas já foram feitas sobre o seu gelo nas últimas décadas, mas nenhuma liderada por brasileiros, e nunca com esse viés amazônico.
O acesso à geleira começa pela cidade de Cusco, a antiga capital do império Inca, conquistada pelos espanhóis no século XVI e dominada em tempos modernos pelo turismo e pelo caos urbano. De lá são 5 horas de estrada, margeando pastagens de alpacas, picos nevados e desfiladeiros vertiginosos, até um ponto no meio do nada onde um grupo de arrieros – como são chamados os tropeiros andinos – nos encontra com cavalos rústicos para iniciar a trilha de 20 quilômetros até a margem do gelo.
Vista de longe, Quelccaya parece uma cobertura de chantilly derramada sobre um bolo de montanhas, com diversas geleiras escorrendo pelas bordas. O topo plano e comprido da calota se confunde com o céu nos dias nublados, cercado por uma paisagem deslumbrante de vales silenciosos, habitados por pumas, vicunhas selvagens e criadores de alpacas, o animal símbolo do Peru. A caminhada não é longa, mas cansativa, por causa da altitude. A sensação é de correr uma maratona respirando por um canudo, por mais devagar que se ande.
O campo-base da expedição é montado a 5 200 metros de altitude, próximo à borda do gelo, sendo que o ponto mais alto do Brasil – o Pico da Neblina – não chega a 3 mil metros. A temperatura gira em torno de zero nessa época do ano, mas o que mais desgasta o corpo é a falta de oxigênio. A vida no acampamento gira em torno de uma grande tenda azul, que serve de refeitório e sala de reuniões, sempre abastecida de chá quente e bolachas pelos anfitriões peruanos. Um luxo, em se tratando de alta montanha.
O ponto de perfuração fica a três quilômetros de distância, cordilheira acima, perto de uma estação meteorológica remota da Appalachian State University, do Canadá. A meta é “furar” – como dizem os cientistas – até 140 metros de gelo, que é a espessura estimada do cume da calota. Dependendo das condições, isso poderia representar algo entre 2 mil e 5 mil anos de registro climático, segundo os cientistas.
Assim como em qualquer laboratório, as amostras da natureza precisam ser mantidas em condições ideais de temperatura. Por isso os cientistas estão numa corrida contra o tempo para colher o gelo de Quelccaya antes que ele desapareça na fornalha do aquecimento global. Um estudo recente, baseado em imagens de satélite e modelagem climática, estima que a calota muito dificilmente resistirá até o fim deste século, com possibilidades de desaparecer por completo já nos próximos trinta anos.
Os sinais de degelo estão por toda parte. O acampamento-base da expedição fica na beira de um lago que não existia até poucos anos atrás, formado pelo derretimento do manto de gelo, que agora recua ladeira acima como um cobertor curto, expondo os pés da montanha. “Quando comecei a vir para cá [em 2008] não dava para ver nada dessas rochas”, contou o nosso guia local, Adrián Ccahuana, apontando para a encosta de pedregulhos que margeia o lago. “E a borda do gelo era muito mais espessa.”
Onde o gelo deu lugar à areia, nossos arrieros (pequeninos, simpáticos e incansáveis como os sherpas do Nepal) jogam bola para relaxar nos fins de tarde, enquanto nós, estrangeiros de terras mais baixas, sofremos para nos adaptar ao ar rarefeito da montanha. Alguns sofrem mais do que os outros, com náuseas e dor de cabeça, mas o cansaço é universal. “É mais difícil trabalhar aqui do que na Antártida”, apesar de a temperatura ser muito mais amena, diz o químico Ronaldo Bernardo, da UFRGS. Ao lado dele, compõem a equipe brasileira as geólogas Flávia Tavares e Franciele Carlos, respectivamente mestranda e pós-doutoranda no CPC da instituição gaúcha.
Nos dias que antecedem a perfuração, acompanho Mayewski e sua equipe numa caminhada de reconhecimento do terreno. As bordas do manto de gelo abrigam diversas cavernas, nas quais é possível vislumbrar as entranhas da geleira. Há água escorrendo por toda parte, e o tempo muda constantemente ao longo do dia. Pergunto a Daniel Dixon, climatologista e engenheiro do grupo, o que ele vê na paisagem: “Uma geleira lutando para sobreviver”, respondeu.
“O gelo daqui vai nos dar pistas sobre o que está acontecendo nos trópicos de uma maneira geral”, completou Mayewski. Aos 72 anos, de cabelos brancos e bagunçados, ele já se aventurou por quase todos os extremos gelados do planeta, e segue com fôlego para deixar muito estudante para trás.
De volta ao campo-base, Simões está pendurado no telefone via satélite, negociando a liberação de quase meia tonelada de equipamentos brasileiros, presos há mais de dez dias na alfândega peruana, em Lima – incluindo a perfuradora, barracas, baterias e geradores, necessários para o início das operações científicas no topo da geleira. “A burocracia é o nosso maior desafio. Muito mais do que o frio ou a altitude”, lamenta o pesquisador, um gaúcho grandalhão, de sotaque arrastado, sempre de caneta no bolso e óculos remendados com fita adesiva.
Os equipamentos só chegam ao acampamento na noite do dia 19 de setembro, no lombo dos cavalos, duas semanas depois de os pesquisadores terem desembarcado em Cusco. O item mais pesado é a perfuradora, modelo FELICS, fabricada na Suíça, com 135 quilos, divididos entre base, mastro, broca e um grande rolo de cabo de aço, que o pessoal da alfândega fez o favor de emaranhar durante a checagem, causando uma dor de cabeça imensa aos pesquisadores.
Quatro dias mais tarde, após uma série de complicações técnicas e meteorológicas, com tudo finalmente testado e montado no topo da geleira, começa enfim a tão esperada perfuração. O trabalho é feito durante a noite, para evitar o calor dentro da barraca durante o dia – quando se trabalha com gelo, qualquer coisa próxima de zero graus é considerada quente.
Na terceira noite, à medida que a perfuradora se aproxima dos 20 metros de profundidade, Mike percebe que o gelo está amolecendo. As notícias que chegam do fundo do poço são pouco animadoras. A broca começa a voltar molhada à superfície, como se tivesse sido mergulhada numa piscina, e com as amostras de gelo dentro dela encharcadas. Isso, quando ela não subia vazia. Cinco metros mais abaixo, e muitas horas de trabalho depois, a equipe desiste da perfuração. “Mais alguns metros e a gente ia bater em água pura”, relatou Bernardo, integrante da equipe de perfuração.
Do lado de fora, a temperatura beira os -10°C, mas a neve está basicamente a 0°C, no limiar entre o sólido e líquido. A água produzida pelo degelo das camadas mais superficiais durante o dia escorre até bater numa camada de gelo mais sólido abaixo, formando um lençol freático no meio da geleira. A equipe já esperava encontrar algo desse tipo em Quelccaya, mas não tão cedo e nem com tanta água. “Ninguém imaginava que estaria tão ruim”, afirmou Bernardo. “Foi uma coisa impressionante; estava tudo completamente encharcado, literalmente pingando.”
Ao contrário do que se poderia imaginar, é muito mais difícil perfurar gelo mole do que gelo duro. A broca é um cilindro oco de alumínio, com lâminas nas bordas, que vão cortando o gelo na forma de um bastão, que os cientistas chamam de “testemunho”. A cada metro de perfuração, essa broca precisa ser içada de volta à superfície, para que o testemunho possa ser retirado, processado e embalado para análise.
O problema com o gelo mole (ou “quente”, como dizem os cientistas) é que ele contém água, e essa água congela nas lâminas da perfuradora, fazendo com que a broca fique “cega” e comece a girar em falso no fundo do poço, como um pneu careca derrapando sobre asfalto molhado. O último testemunho que os pesquisadores conseguiram puxar para cima quase se desfez quando colocado sobre a mesa, de tão encharcado. “São riscos inerentes a qualquer expedição científica”, avaliou Dixon. “Tivemos sorte de conseguir coletar o que coletamos.”
Imagens de radar indicam que ainda há gelo sólido abaixo de 40 metros, na base da calota, mas seria necessário voltar lá com um equipamento diferente para tentar amostrá-lo – mais especificamente, uma perfuradora térmica, que utiliza uma resistência aquecida (como a de um chuveiro elétrico) para derreter as bordas do gelo, em vez de cortá-lo com lâminas. Ainda assim, sem garantia de sucesso. “A geleira está derretendo mais rápido do que imaginávamos”, sentenciou Simões.
Os 25 metros de testemunho coletados devem representar, “na melhor das hipóteses”, uns 40 anos de clima, diz o cientista – dos anos 70 para cá, portanto. A utilidade nesse caso seria “calibrar” a linha do tempo da geleira, relacionando o que se encontra no gelo com eventos conhecidos dessas últimas quatro décadas – por exemplo, com a evolução do desmatamento, monitorado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, desde o fim dos anos 80. Assim, os dados contidos no gelo mais antigo de Quelccaya – quando os cientistas chegarem até ele – serão avaliados com maior precisão: a “régua” calibrada das camadas mais superficiais ajudará a datar as mais profundas. Outra questão pertinente, segundo Simões, seria verificar se poluentes produzidos por queimadas, garimpos e outras atividades humanas são transportados para essas altitudes nos Andes.
Mas talvez nem isso seja possível. As primeiras análises, feitas no CCI de Maine, indicam que as amostras estão “lavadas”, o que significa que o derretimento apagou a estratificação temporal das camadas de neve. “Não tem mais a variação ano a ano. A água passou e embaralhou tudo”, explicou Simões. “Muitas das informações que buscávamos estão perdidas.”
A esperança recai agora sobre as partículas sólidas – por exemplo, geradas por queimadas e mineração – que, por não serem solúveis, talvez tenham resistido à lavagem e permanecido nas suas camadas originais. Além disso, foram colhidas amostras de gelo antigo exposto nas bordas da geleira, que ainda precisam ser datadas, mas podem ter mais de 2 mil anos de idade. E amostras de neve mais recente, colhidas de uma trincheira cavada à mão no topo da calota, para estudo de variáveis relacionadas ao ano de 2018. Muito foi perdido, mas nem tudo.
Jefferson e sua equipe estão a caminho de Maine para acompanhar o trabalho de análise das amostras, a partir de 15 de janeiro. Todo o material coletado na expedição foi enviado para lá, porque não existe laboratório adequado para isso no Brasil – Simões tem o projeto pronto para construir um na UFRGS desde 2008, mas não o dinheiro –, e para evitar a burocracia de trazer as amostras para o Brasil. Por se tratar de água, elas teriam de ser inspecionadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, e ainda passar pelos trâmites de importação da Receita Federal.
Os equipamentos de perfuração, por exemplo, só chegaram ao aeroporto de Porto Alegre na primeira semana de dezembro, dois meses depois de os pesquisadores voltarem para casa. Por sorte, não são feitos de gelo, ou já teriam derretido, como aconteceu com seu projeto de laboratório na UFRGS dez anos atrás. “É mais barato e mais seguro mandar minha equipe fazer as análises em Maine do que tentar fazer isso no Brasil”, indignou-se Simões. No CCI, as amostras de Quelccaya passarão pelas técnicas de análise mais avançadas, desenvolvidas nos últimos anos pela equipe de Mayewski. Ou seja, se houver alguma informação preservada no gelo, lá é o lugar para encontrá-las. Os resultados devem começar a sair no segundo semestre de 2019.
Seja como for, os pesquisadores já planejam um retorno a Quelccaya em 2020, em parceria com um grupo da China, que tem uma perfuradora termal. “Queremos voltar lá e furar mais fundo”, disse Mayewski. Um levantamento com radar, realizado durante a expedição, revelou que a calota de gelo de Quelccaya é mais espessa do que os cientistas imaginavam, chegando a 220 metros de profundidade. A descoberta permitirá um mergulho ainda maior no passado amazônico – pois, quanto mais fundo o gelo, mais finas são as camadas anuais, comprimidas pelo peso. Extraído do fundo da geleira, portanto, um mesmo testemunho de 25 metros de comprimento representa centenas ou alguns milhares de anos, em vez de algumas dezenas. Uma boa notícia para os cientistas, enquanto esse gelo ainda estiver ali.