RIO- O futuro ao alcance do país é o foco da mais robusta análise realizada sobre os avanços, as oportunidades e as deficiências da ciência e da inovação atuais no Brasil. Preparada por 180 eminentes cientistas de todas as áreas do conhecimento e levada adiante pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), a análise é resultado do Projeto de Ciência para o Brasil. É um cenário que vai da Amazônia ao agronegócio, da zika ao câncer e do petróleo ao grafeno. O acadêmico Jérson Lima Silva, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos organizadores do trabalho, recém-lançado em livro, diz que o país tem perdido relevância, mas possui as condições para ser líder.
Por que a ciência ainda não recebeu a devida importância no Brasil?
O maior obstáculo está no nível de escolarização da população, muito abaixo dos países desenvolvidos e mesmo de pares do BRICS. Outro empecilho é que os tomadores de decisão (governo nacional, parlamento, empresários, entre outros) têm pouco acesso ao conhecimento gerado nas universidades e institutos de pesquisa.
Cerca de 25% de nosso PIB vem da agricultura. O quanto ela depende da ciência?
A ciência foi essencial para a agricultura. O marco zero foi na década de 1960, quando a pesquisadora Johanna Döbereinerdescobriu o potencial de bactérias na substituição da adubação nitrogenada. Isso foi crucial para a cultura de soja, e representa uma economia anual de cerca de US$ 2 bilhões. Há muitos desafios no setor agropecuário. Fundamental é o Cerrado, principal região produtora de soja, milho, algodão, café irrigados, açúcar e etanol, além de carne bovina, açúcar e etanol. A complexidade do bioma devido à biodiversidade e à oferta de água requer ciência para aumentar a produtividade e conservar o solo e os recursos hídricos.
E o pré-sal e a produção de energia?
O pré-sal responde por mais da metade do petróleo produzido no Brasil, mas é preciso desenvolver tecnologias para baixar os custos da exploração. Isso é urgente devido às oscilações do preço do petróleo no mercado internacional. Na área de produção de energia em geral, o maior desafio é ampliar a matriz energética de forma sustentável. Fontes renováveis como energia solar e eólica precisam de desenvolvimento. É crucial aumentar a pesquisa na produção de etanol de segunda geração, que utiliza bagaço, palha e folhas de cana-de-açúcar.
Qual a posição da ciência brasileira no mundo?
O Brasil forma cerca de 20 mil doutores por ano, somos o 14 produtor de conhecimento do mundo. Mas estamos longe dos países desenvolvidos. Temos cerca 700 pesquisadores e engenheiros por milhão de habitante, contra 5.000 nos países desenvolvidos. Investíamos 1,2% do PIB em pesquisa em 2014, mas houve uma diminuição tanto dos investimentos públicos quanto privados. O orçamento atual é 30% do de 2010. Em contrapartida, a China ultrapassou os 2% do PIB, Coreia do Sul e Israel investem mais de 4%. Nossa proposta é chegar a 2% do PIB, bem como aumentar de 700 para 3.000 cientistas e engenheiros por milhão de habitante.
Quais os desafios do novo governo para assegurar que o país continue a produzir ciência?
Para ser desenvolvido e justo socialmente, o Brasil precisa ter um projeto de ciência e inovação com pujante financiamento, tanto por parte do governo quanto do setor privado. Um dos problemas é a assimetria do financiamento nos níveis nacional e estadual. A comunidade científica tem consciência de que ajustes fiscais são cruciais, mas essas medidas só terão pleno êxito, se incluírem uma âncora no desenvolvimento tecnológico e na inovação.
E como acelerar a transferência do conhecimento?
O setor industrial investe pouco na área e ainda é insuficiente a relação com as empresas. O Brasil ocupa a 69ª posição no Índice Global de Inovação e a 80ª posição no Índice de Competividade Global. São posições acanhadas para um país que está entre as 10 maiores economias do mundo. Só com maior interseção entre a ciência e o setor produtivo poderemos tornar superavitária a balança comercial brasileira para produtos com alta e média-alta industrialização, como medicamentos e eletrônicos.
E como fazer essa interseção?
O documento da ABC faz propostas concretas. Entre elas a criação de uma contrapartida pública para centros de pesquisa aplicada aproximando a relação com empresas; novas políticas públicas voltadas para a necessidade de competitividade nas empresas – não apenas para aquisição de máquinas; e a adoção do conceito de pesquisa orientada à missão.
Que áreas da ciência são estratégicas?
As novas tecnologias são portadoras do futuro. Entre elas estão ciência dos dados, inteligência artificial e cibersegurança. Também se destacam novos materiais e dispositivos; biologia de sistemas e biotecnologia. Elas terão forte impacto nadenominada Indústria 4.0, uma realidade no mundo desenvolvido.
E que o precisamos desenvolver?
Por exemplo, novas tecnologias de informação e comunicação embarcadas nas máquinas, incluindo automação, robótica, internet das coisas, big data, manufatura avançada (impressão 3D), sensores e operação remota.
Quais as urgências em ciência dos dados e inteligência artificial?
A inteligência artificial terá um grande impacto no aumento de produtividade e na inovação em áreas chaves, como agricultura e de petróleo. Em parceria com empresas, a Embrapa desenvolveu tecnologia baseada em inteligência artificial para análise de solos. Já a colaboração entre universidades e a Petrobras criou soluções para a indústria do petróleo, em áreas como análise de reservatórios, projeto de layout submarino, exploração e produção. Sistemas inteligentes envolvem tópicos como aprendizado de máquina e deep learning. Esses temas serão essenciais para o diagnóstico e a tomada de decisão em vários campos, como medicina e engenharias. Como exemplos podemos citar o diagnóstico médico e carros autônomos.
E a área de novos materiais e dispositivos?
A nanotecnologia tem gerado novos materiais com propriedades superiores às dos materiais convencionais. Um exemplo é o grafeno. Crucial também é a química verde, baseada em matérias-primas de fontes renováveis e que produz materiais não agressivos ao ambiente.
O que podemos esperar da biologia de sistemas e da biotecnologia?
A biologia de sistemas usa modelagem computacional para estudar genes e proteínas. São tecnologias que tornam possível, por exemplo, o diagnóstico simultâneo de doenças infecciosas. A recente descoberta da tecnologia CRISPR-Cas9 permite alterar o DNA de qualquer organismo. Ela permite avanços contra doenças e no desenvolvimento de produtos agropecuários.
Quais as prioridades em saúde?
São muitas. A primeira delas abrange doenças emergentes e negligenciadas. Podemos citar as epidemias recentes de zika, chicungunha, febre amarela e gripe. Também são prioridades as doenças negligenciadas, como a malária, que não interessam à indústria farmacêutica, mas afetam severamente o país. Também fundamental é o estudo das doenças crônicas, como o câncer. O desenvolvimento de fármacos, vacinas e terapias é um processo longo, complexo e requer investimentos de alto risco e longo prazo.
Qual a mensagem para o Brasil?
A filantropa americana Mary Woodard Lasker (1900-1994), diz que “se você pensa que pesquisa é cara; experimente a doença”. Na realidade da pesquisa no Brasil, a expressão pode ser adaptada para “se acha a pesquisa é cara, experimente a doença e o subdesenvolvimento tecnológico”.