A Acadêmica, socióloga e professora da Universidade de São Paulo (USP), Nadya Guimarães, comentou para o Notícias ABC sobre os trabalhos realizados por Denis Mukwege e Nadia Murad, vencedores do Prêmio Nobel da Paz de 2018. Acompanhe o texto na íntegra:

“O Prêmio Nobel da Paz conferido em 2018 sublinha a importância do tema da violência de gênero nas sociedades contemporâneas.  Os laureados – o médico Denis Mukwege e a ativista Nadia Murad –, o foram por seus esforços para confrontar o uso da opressão e da violência sexual como armas de guerra, como instrumentos para a sujeição de grupos e minorias, expropriados dos seus direitos pela via extrema da violação dos corpos de mulheres, muitas delas adolescentes ou crianças.

O médico Denis Mukwege dedicou grande parte de sua vida às vítimas de violência sexual na República Democrática do Congo. Com sua equipe, no Hospital que dirige, tratou milhares de pacientes, vítimas dessas agressões, a maioria delas no contexto de uma longa e devastadora guerra civil. Mas o seu ativismo transcendeu a atuação meramente profissional. Movido pelo lema de que  “justiça é um assunto que importa a todos”, condenou publicamente estupros em massa e reagiu ao silencio cúmplice de governos. Ademais, atuou decididamente para que homens e mulheres, oficiais e soldados, tanto quanto autoridades locais, nacionais e internacionais, todos, enfim, compartilhassem a responsabilidade de informar e combater esse tipo de violência, que há dez anos foi definida como um crime de guerra pela ONU (cf  Resolução 1820  do seu Conselho de Segurança), ecoando o que fora estabelecido, vinte anos atrás, pelo Estatuto que rege o Tribunal Penal Internacional.

A força simbólica dessa premiação não estaria completa se a contraface desse ativismo não estivesse representada na figura da vítima que se insurge,  se liberta e clama por justiça e reparação frente à opinião publica.  Nadia Murad é essa contraface. Sua recusa a aceitar o silencio como forma de conviver com a vergonha dos abusos sexuais, sua coragem para relatar o sofrimento tão logo conseguiu fugir, fizeram-na uma vocalizadora da experiência de outras vítimas. Um exemplo, pelo ativismo; mas, igualmente, uma centelha que incendiou outras mulheres, levando-as a clamar por direitos, reparação e proteção.  Direito, no seu caso, a existir no Iraque enquanto membro da minoria yazidi. Ali, numa remota vila, Nadia Murad foi uma dentre as centenas de vítimas do ataque perpetrado pelo Estado Islâmico, em agosto de 2014, com o objetivo de exterminar a população yazidi.  Extermínio, entretanto, se declinaria de diferentes formas a depender da conjunção de gênero e idade: aos homens e mulheres idosas, a morte física, o massacre;  às mulheres mais jovens, inclusive crianças, a destruição emocional na forma do cativeiro como escravas, submetidas a sucessivos estupros e abusos sexuais.

O ativismo dos dois laureados chama a atenção do mundo para o tema da violência de gênero, na sua forma extrema de arma (e logo, crime) de guerra. Nadia Murad é a testemunha que conta sobre os abusos sexuais perpetrados.  Denis Mukwege é o médico que dedicou sua vida a defender essas vítimas.

Todavia, se a violência de gênero e a privação de direitos aparecem, aqui, no contexto de conflitos militares, configurando o que o Comitê do Nobel não hesitou em reiterar como “crimes de guerra”, por certo ela não se restringe a essas formas extremas e especialmente chocantes pelo caráter coletivo e massivo da devastação que impõe.

Ao colocar no centro da atenção internacional o tema da privação de direitos e da ausência de proteção às mulheres frente a situações de violência extrema, o Comitê do Nobel nos anima a pensar, com a literatura acadêmica e as evidencias por ela coligidas, sobre a desconcertante amplitude do exercício de tais abusos. Eles marcam a experiencia de mulheres em outras partes do mundo, mesmo fora de situações de confronto militar, e/ou de conflitos de natureza étnica ou religiosa. Assim, o uso do corpo das mulheres como forma de sujeitá-las, de privá-las de direitos, tem sido documentado e recorrentemente denunciado, por exemplo, por seu exercício contra migrantes latino-americanas em busca de ingresso (e trabalho) em território norte-americano; submetidas a abusos sexuais por parte de intermediários, eles próprios partícipes das milícias privadas do crime organizado, vêem-se expropriadas de seus parcos recursos e vilipendiadas em sua integridade física. A violência sexual, maiormente dirigida a mulheres, foi também extensamente denunciada pela literatura acadêmica e pelos organismos voltados aos direitos humanos, ao recuperarem a memória das vítimas dos regimes militares em diferentes países da América Latina.

“Um mundo mais pacífico só pode ser alcançado se as mulheres e seus direitos fundamentais e segurança forem reconhecidos e protegidos”,  sinalizou o Comitê do Nobel, quando da premiação de 2018.”