Dando continuidade à sua palestra sobre “Os Desafios da Ciência Brasileira”, cuja primeira parte pode ser lida aqui, o presidente da ABC, Luiz Davidovich, apontou para o contexto da ciência mundial e a importância do Brasil se inserir nele adequadamente.
Os desafios da ciência mundial
Além das questões internas, outra abordagem importante para os desafios que nosso país terá que enfrentar deve ser dada fazendo-se uma prospecção a partir do que está acontecendo em outros países. Davidovich ressaltou que olhar para o mundo é muito importante. “Por exemplo, devemos tomar cuidado em ficar só pensando em gasolina e etanol, porque os veículos elétricos já estão tomando conta do mundo. As empresas que fazem veículos aqui no Brasil são as mesmas que estão fazendo lá fora. E vão trazer isso para cá, porque não interessa a elas diferenciar a produção. Então, temos que estar preparados para isso”, alertou.
A inteligência artificial é outro desafio a ser encarado. “Já estão sendo testados caminhões sem motoristas nos EUA, onde existem 3,5 milhões de caminhoneiros. Isso gera preocupação com o futuro dos empregos”, diz. E argumenta que as ciências sociais têm que entrar fortemente nessa questão, em combinação com outras ciências, para pensar a organização da sociedade em um mundo digitalizado, pensar a organização social em uma economia 4.0, com indústria 4.0, com internet das coisas.
Outro aspecto abordado por ele diz respeito à pecuária. “Por conta da criação de gado, o Brasil está desmatando a Amazônia. A carne brasileira, comprada principalmente pela China, traz riqueza para o país. Porém, Davidovich salienta que vários outros países estão desenvolvendo carne artificial. “Com esse sistema, não é preciso matar o boi. Pega-se células de boi ou de qualquer animal e reproduzem-se essas células; no caso do frango, pode-se até escolher carne clara ou escura.” Ele mostrou propaganda de uma empresa do vale do Silício, dizendo: “Anunciando um marco histórico em trazer carne real, sem o animal, para a mesa”.
Davidovich relatou que, recentemente, a China comprou de Israel por 300 milhões de dólares a tecnologia para fazer carne sintética, reproduzida a partir da célula do animal. “Israel tem três empresas de carne celular, por razões óbvias: eles não têm extensão territorial para pecuária.” Essa tecnologia, segundo o palestrante, tem diversas vantagens. Reduz a poluição, pois os gases emitidos pelo gado são altamente poluentes; quem usa essa tecnologia torna-se independente, não precisando mais comprar carne de outros países; energeticamente é mais econômico, pois o boi no pasto consome 21 calorias para cada quilo de carne e o processo de síntese consome sete calorias por quilo de carne; gera independência também em relação à soja, que é basicamente usada para alimentar os animais.
Com relação a soja, Davidovich destaca um artigo que apresenta um estudo sobre as terras da África do Sul propícias para a produção de soja que mostra o crescimento da área plantada em relação ao resto do mundo. “A soja africana certamente fica mais barata para a China que a soja brasileira, até por uma questão de frete, sem contar que a China está comprando terras na África. Isso vai afetar o Brasil no ano que vem? Não. Daqui a dez anos? Talvez. Mas temos que olhar para o futuro e pensar nessas coisas, pois outros países estão pensando. A China está pensando, a Coreia do Sul está pensando, as empresas norte-americanas estão pensando nisso.”
Se tudo continuar como está, o Brasil, em algum momento, será afetado pelo sucesso da soja africana. E Davidovich diz que a situação é de dar calafrios. “A predominância das commodities na balança comercial do Brasil é prejudicial ao país, pois ainda que haja muita inovação na agricultura, não há comparação com o valor agregado que tem um telefone celular ou uma carne sintética. Nós temos que acompanhar o que está acontecendo lá fora e progredir.”
A ciência é feita por pessoas
E para progredir, é fundamental que se tenha recursos humanos qualificados. O presidente da ABC apresentou gráficos mostrando que o número de pesquisadores por milhão de habitantes no Brasil é da ordem de 700. A Argentina tem 50% a mais. A Coreia do Sul tem mais de 5.000 pesquisadores por milhão de habitante. “A China tem menos de mil, mas lá há um bilhão e meio de habitantes, então esse ‘menos de mil’ por milhão de habitantes significa muito mais pesquisadores que no Brasil.”
E será que esta situação é fruto da política científica? Não. Davidovich afirma que isso é fruto da política educacional. “Nós estamos comparando o número de pesquisadores com o total da população do Brasil, 200 milhões de habitantes Só que desse total, são poucos os que participam do mercado brasileiro, que tem acesso à educação de qualidade. A política educacional do Brasil é tal que estamos desperdiçando milhões de cérebros no interior do país e nas comunidades, nos morros, nas periferias das grandes cidades. Não estamos aproveitando a nossa população.”
De fato, mais da metade da população brasileira não concluiu o ensino médio e uma proporção pequena concluiu o ensino superior. “Esse é um problema para a ciência brasileira e a raiz disso está na qualidade da educação básica. Nos países avançados e atualmente na China também, a educação básica é considerada como um meio para eliminar a diferença de berço das crianças. Aqui no Brasil, pelo contrário, a educação básica reforça essa diferença.”
Olhando para o ensino superior, Davidovich apresentou um gráfico mostrando que 75% do total de matriculas são em instituições privadas. “Claro que entre estas há algumas, como PUC ou Mackenzie, que são de alta qualidade e não têm objetivo de lucro. Mas a grande maioria tem objetivo de lucro e baixa qualidade”, diz o presidente. Para conferir a informação, segundo ele, basta olhar a titulação dos professores: há apenas alguns mestres, porque doutores custam mais caro, então o número é mínimo. A grande maioria dos formados está na área de ciências humanas e sociais, especialmente no curso de direito. Isso interessa às universidades particulares, segundo o presidente da ABC, porque é um público mais barato de formar. São cursos que não requerem laboratórios, insumos nem alta tecnologia. E o resultado disso, de acordo com o palestrante, é que o Brasil é um dos países com mais advogados do mundo. E isso não se reflete na qualidade do sistema judiciário brasileiro.
Com relação às universidades públicas, onde a qualidade dos professores é bastante superior, dado que os concursos são raros e muito competitivos, os números mostram o acentuado declínio dos recursos de investimento. Davidovich destaca que é importante analisar as informações com cuidado. “Esses dados são interessantes até em virtude do que aconteceu no Museu Nacional, tendo em vista editoriais que estão saindo em alguns jornais, responsabilizando a universidade e o mau uso dos recursos recebidos. Acontece que, nas universidades federais a folha de pagamento de salários e de aposentadorias não é controlada por elas, mas pelo Tesouro. E mais de 50% dos parcos recursos recebidos são destinados ao pagamento dos aposentados. Então, o recurso para investimentos vem caindo, e isso implica em desgaste dos prédios e falta de conservação, fatores que podem levar a incêndios.”
A solução não é privatizar, mas mudar a cultura das empresas
Davidovich observou que até em campanhas eleitorais e nos jornais têm surgido sugestões no sentido de aumentar o investimento privado nas instituições federais. “Alguns falam até em privatizá-las”, alerta o presidente. Ele então apresentou gráficos que mostram o pequeno papel da indústria no financiamento de universidades norte-americanas. “Ora, dizer que recursos da indústria é que devem ser usados para resolver a crise orçamentária das universidades públicas é balela. Nos EUA o que ocorre de fato é que as grandes indústrias colocam pressão no congresso norte-americano para financiar pesquisa básica e aplicada nas universidades públicas. E sabem por que? Porque para as grandes empresas essa é a pesquisa de maior risco, eles preferem ficar com o desenvolvimento de produtos, usando cada vez mais os resultados gerados nas universidades.”
E para gerar o desenvolvimento, as empresas contratam pesquisadores. Na Coreia do Sul e EUA, por exemplo, a maior parte dos cientistas trabalha na indústria. Já no Brasil, é muito pequeno o percentual de pesquisadores em empresas, eles ainda estão concentrados nas universidades. Por isso, segundo Davidovich, quando olhamos a relação entre investimento, pesquisa e desenvolvimento (P&D), vemos que no Brasil a maior parte do investimento vem do governo, enquanto que na China, por exemplo a relação é inversa. “Temos problemas, portanto, no investimento das empresas em P&D. Por isso exportamos produtos não industrializados, commodities. O Brasil, na contramão do mundo, está se desindustrializando. Muda o governo, mudam as composições políticas, mas esse processo de desindustrialização continua.”
E a desindustrialização se reflete diretamente no Índice Global de Inovação. “No período de 2011 a 2017, baixou 22 casas – foi de 47º lugar para 69º.” Esse resultado pífio, segundo Davidovich, também está relacionado com os recursos destinados pelo Governo para ciência, tecnologia e inovação (CT&I). Para compreender os números, no entanto, Davidovich ressalta que é preciso primeiro entender o “economês”. “Estes economistas são muito criativos, ao menos no que diz respeito à invenção de novos nomes para coisas já conhecidas. Há o ‘limite de empenho’, o ‘contingenciamento’ e a ‘reserva de contingência’.”
Os números reais da CT&I no Brasil
Simplificando, Davidovich explica que os recursos que constavam no orçamento não eram integralmente repassados para a pasta de ciência e tecnologia. “O Congresso aprovava o orçamento e os ministérios do Planejamento ou da Fazenda ‘contingenciava’, ou seja, separava uma grande parte para pagar dívida pública. Aí a comunidade cientifica se manifestou fortemente e o STF [Supremo Tribunal Federal] proibiu o contingenciamento. Aí os economistas mudaram a expressão para ‘reserva de contingência’: ‘contingenciamento’ é proibido, mas ‘reserva de contingência’ pode.”
Assim, após cálculos matemáticos relativamente simples, o palestrante chegou ao seguinte resultado: retirados os recursos para a área de Comunicação, o orçamento de 2018 para ciência e tecnologia, o chamado “custeio e capital”, que é o dinheiro para pesquisa, que compra insumos e equipamentos para laboratórios, corresponde a cerca de pouco mais de 1/3 do que tínhamos em 2010. “Isso explica a crise que estamos atravessando, a falta de insumos, jovens querendo sair do país, etc. Nós esperamos que essa fase dure pouco tempo. Já passamos por outras crises e as superamos, então tenho esperança.” E Davidovich afirma que sua esperança não é simplesmente poética. “Pelas riquezas naturais do país, a riqueza de laboratórios e o grande número de grupos de pesquisa extremamente competentes que temos, estamos preparados para atravessar esse deserto.”
O retorno da pesquisa científica para um país
Por outro lado, uma publicação de 2015 da União Europeia mostra que o valor total gerado pela pesquisa pública é entre três e oito vezes o valor do investimento. A taxa de retorno da maior parte dos projetos fica entre 20 e 50%. E a pesquisa afirma, ainda, que entre 20 e 75% das inovações não poderiam ter sido desenvolvidas sem a contribuição da pesquisa pública desenvolvida até sete anos antes.
“Isso foi calculado na União Europeia e é verdade aqui também, no Brasil. Portanto, cortar recursos da área de CT&I em fase de crise é o oposto do que fazem os países desenvolvidos. Não se pode fazer cortes lineares no orçamento de um país nessa hora, é preciso investir em algumas áreas que podem ajudar a tirar o país da situação de crise. E CT&I são as principais áreas de investimentos dos países nas fases de crise. Isso aconteceu recentemente nos EUA, na China, na Rússia e até na Índia. É uma confissão de incompetência de um Governo não saber estabelecer prioridades para o país”, alertou Davidovich.
E nos EUA, apesar do governo Trump, que enviou para o Congresso norte-americano um orçamento com corte severo na ciência, essa prática foi reforçada. Em uma ação bipartidária, que uniu republicanos e democratas, o corte orçamentário na ciência e tecnologia proposto por Trump foi anulado e o orçamento para área ainda foi aumentado em 20 milhões de dólares. “E eles fizeram isso por quê? Porque atrás deles tem uma pressão muito forte, não só da sociedade em geral, mas do PIB norte-americano, que pressiona o Congresso a não fazer cortes em CT&I porque senão as grandes empresas dos EUA afundam na competição internacional.”
Tudo começa pela curiosidade e liberdade de pesquisa
Para encerrar, Davidovich fez questão de destacar a importância da ciência básica. “Falei das fantásticas aplicações da ciência brasileira, mas não quero transmitir a vocês a impressão de que eu acho que ciência boa é só a ciência aplicada.” O físico ressaltou que para chegar nas aplicações, é preciso passar por um processo de livre descoberta. E referiu-se ao surgimento da sua área de pesquisa, a física quântica.
“No começo do século XX, houve um grupo de jovens homens e mulheres que, por sua curiosidade em relação à natureza, desenvolveu um novo olhar sobre o universo, que deu origem à física quântica”, apontou Davidovich. O que os movia, segundo o palestrante, eram a curiosidade e a paixão pelo conhecimento. “Eles não tinham a menor ideia das possíveis aplicações daquilo que estavam fazendo. Escreviam cartas uns para os outros, falando das maravilhas que estavam descobrindo, e era isso.”
Cem anos depois, o trabalho de Max Planck, feito em 1900, deu início a essa grande revolução do conhecimento. No ano 2000, um artigo da Scientific American mostrou que um terço do PIB norte-americano estava baseado em dispositivos inventados graças a física quântica. Entre eles está o laser; os aparelhos de ressonância magnética, que permitem ver o cérebro em funcionamento; os leitores de código de barras; os relógios atômicos, que são a base do sistema da GPS que orienta os satélites em torno da Terra. “Tudo isso partiu da obra de jovens pesquisadores que não tinham a menor ideia de como poderiam ser aplicadas as suas descobertas”, afirmou Davidovich.
O presidente da ABC encerrou a palestra reafirmando que “devido a uma sutil peculiaridade da evolução da espécie humana, a paixão pelo conhecimento serve à humanidade, revoluciona o cotidiano das pessoas, afeta a organização social, os modos e costumes”. E agradeceu pela atenção da plateia.