Mayana Zatz2

O vírus da zika chamou a atenção do mundo quando se descobriu que ele era responsável pelo nascimento de crianças com microcefalia e outras malformações associadas, a síndrome da zika congênita. Milhares de bebês cujas mães foram infectadas pelo vírus da zika durante a gestação nasceram com essa síndrome. Para entender melhor o que causava a síndrome, fomos ao Nordeste onde estava havendo a maior incidência de bebês afetados: Recife, João Pessoa e Natal, principalmente. Entrevistamos quase 100 mães que tiveram filhos afetados. A maioria relatou que não tinham tido nenhum sintoma ou sinais muito leves de infecção pelo vírus: um pouco de febre e eczema por um ou dois dias. Era evidente que o vírus tinha um tropismo preferencial para o cérebro em formação do feto. Não tinha muito interesse nas mães.

Por que só alguns bebês nascidos de mães infectadas tiveram a síndrome?

Mas ao tempo chamou-nos a atenção que a maioria das mães infectadas tiveram bebês normais. Porque só alguns eram afetados e outros não? O mais surpreendente foi observado em gêmeos gerados durante a epidemia. Conseguimos identificar 9 pares: dois pares eram de gêmeas monozigóticas (idênticas) e 7 pares eram de gêmeos dizigóticos (fraternos). As gêmeas monozigóticas eram igualmente afetadas mas 6 dentre os gêmeos dizigóticos eram discordantes, isto é, um afetado e outro normal. Isso falava a favor de uma susceptibilidade genética aumentando o risco nos gêmeos afetados, o que foi comprovado na nossa pesquisa publicada em fevereiro (Caires et al., Nature communication).

Como o virus zika se comportava em contato com as células que dão origem aos neurônios?

Para tentar descobrir geramos células-tronco neuroprogenitoras (NPC), células que dão origem aos neurônios de 3 pares de gêmeos fraternos discordantes, onde um era afetado e o outro não. Infectamos essas células no laboratório com o vírus da zika, nas mesmas condições. Os resultados foram surpreendentes. O vírus destruía preferencialmente as NPC derivadas dos gêmeos afetados e também se replicava significativamente mais . Conseguimos replicar no laboratório o que havia acontecido na natureza. Provamos que a infecção não ocorria ao acaso, isto é, dependia de fatores genéticos, de acordo com a nossa hipótese.

Como surgiu a ideia de estudar os efeitos do zika vírus em câncer?

Enquanto estávamos envolvidos em entender melhor porque o zika vírus gosta das NPCs, me chamou a atenção que cientistas envolvidos em pesquisas com câncer estavam estudando os efeitos oncolíticos (destruidores) de diferentes vírus em tumores.

Como no nosso centro (CEPID- Centro de pesquisas em genoma humano e células-tronco), o Prof. Keith Okamoto vem desenvolvendo uma pesquisa importante em câncer fui perguntar se não poderíamos testar os efeitos do zika vírus em linhagens de câncer. Ele aceitou imediatamente. Juntamos nossa expertise com o zika vírus e células NPCs, do grupo dele em câncer e do Butantan na virologia do vírus da zika e iniciamos essa nova pesquisa.

Como foi desenvolvida a pesquisa?

Em primeiro lugar queríamos saber qual era o efeito do vírus da zika quando em contato com linhagens de tumores in vitro, ou seja no laboratório. Foram infectadas 6 linhagens de diferentes tumores, 3 de origem neuronal e 3 de diferentes origens: câncer de mama, de colo de intestino e de próstata. Os primeiros resultados nos deixaram empolgados: o vírus zika infectava e destruía rapidamente as linhagens de tumores de origem neuronal mas não os outros tumores como de mama ou próstata. Isso explicava porque o vírus zika pode permanecer até 9 meses no sêmen, em um convívio pacífico.

Quais foram os próximos passos?

Como vimos que o vírus destruía as linhagens de tumores com origem neuronal, tumores do sistema nervoso central que tem características de células-tronco embrionárias, esses tumores foram injetados em camundongos “nude”, isto é camundongos que não tem sistema imune. Esses camundongos com tumores não sobrevivem mais do que 2 semanas. Depois de estabelecido o tumor os camundongos foram injetados com o vírus. Tínhamos também um grupo controle de camundongos sem tumor, que foram injetados com o vírus da zika.

Quais foram os resultados?

Os resultados nos deixaram entusiasmados. Na grande maioria dos casos os tumores regrediram e em 1/3 dos casos desapareceram por completo. Em alguns casos também observamos o desaparecimento de metástases. Os melhores resultados foram obtidos com os tumores de origem neuronal embrionária que mais se pareciam com as células neuroprogenitoras dos bebês que desenvolveram a síndrome da zika congênita. O mais surpreendente foi comparar os 3 grupos: camundongos com tumor morriam antes de 2 semanas e aqueles injetados só com o zika também morreram em cerca de 2 semanas. Mas o terceiro grupo, com tumor injetado com o vírus sobreviveu quase 3 meses. O trabalho acaba de ser publicado e foi capa da prestigiosa revista Cancer Research. (Kaid et al., câncer research, 2018).

Quais serão os próximos passos?

Estamos superempolgados e esperamos poder testar em breve essa estratégia em pacientes. Há males que vêm para o bem. O fato de termos tido essa epidemia de infecção pelo zika vírus mostrou que cerca de 80% das pessoas infectadas pelo zika vírus não tem sintoma nenhuma, uma informação importante em relação a segurança. O obstáculo agora é poder cultivar o virus em condições laboratoriais que permitam seu uso terapêutico, nossa próxima batalha. Meu maior sonho agora é ver um tumor maligno desaparecer da cabeça de um paciente.