No primeiro dia de abril desse ano, a Professora Ruth Sonntag Nussenzweig, de 89 anos, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da National Academy for Sciences dos Estados Unidos, faleceu por embolia pulmonar na cidade de Nova Iorque, onde residiu e trabalhou a maior parte de sua vida. Apesar da sua mobilidade comprometida como consequência de uma queda, ela continuou engajada em problemas da malária, publicando recentemente um trabalho sobre a vacina na qual trabalhou com colegas de São Paulo.
Nascida em Viena, na Áustria, Ruth veio para o Brasil em 1939, aos 11 anos, com seus pais Eugenia e Baruch Sonntag – ambos médicos – e seu irmão mais novo (que viria a falecer em um trágico acidente anos depois, trabalhando num Kibutz, em Israel). Sua família havia migrado para o Brasil fugindo do regime totalitário na Alemanha, à qual a Áustria havia sido anexada.
Ruth estudou e passou sua juventude na cidade de São Paulo, tendo concluído, em 1953, o curso médico na Universidade de São Paulo (USP). Durante a graduação, foi bolsista no Laboratório de Bioquímica da Universidade da França, em Paris. Foi na USP que ela conheceu Victor Nussenzweig. O paulista, de origem judaica-polonesa, se tornaria seu parceiro na ciência e na vida. Ela e Vitor iniciaram pesquisas, ainda como estudantes, no Departamento de Parasitologia, com o Professor Samuel Pessoa. Ele já havia publicado vários trabalhos importantes sobre a doença de Chagas, abordando tanto seu diagnóstico parasitológico como sua prevenção e demonstrado que a violeta genciana incubada com sangue infectado com Trypanosoma cruzi destruía os parasitas. Essa descoberta foi aplicada na profilaxia (práticas de prevenção) da doença, causando grande impacto como medida profilática da transmissão do parasito por transfusão de sangue, sendo usada por décadas em áreas onde a doença era endêmica no Brasil. Ruth se tornaria docente do mesmo departamento após a conclusão do curso.
Voltando de seu estágio na França, já na chegada ao Brasil, em 1964, Ruth e Victor encontraram seu antigo departamento esvaziado pelo regime militar que havia se instalado no país. Decidiram, então, deixar o Brasil e se transferiram para a Universidade de Nova Iorque (NYU), onde Ruth foi bolsista assistente do Departamento de Patologia da Escola de Medicina.
Pesquisa e carreira
A partir de 1965, Ruth se tornou professora assistente no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da NYU. Já em posse do seu doutorado pela USP, em 1978, feito com base nas pesquisas feitas na NYU, Ruth se tornou Professora Titular, em 1982, e líder do Departamento de Parasitologia Molecular na Escola de Medicina da NYU. Lá, exerceu a função com energia e dedicação. Foi a primeira mulher na função de líder de grupo e assim permaneceu por quase 20 anos. Tornou-se uma figura de destaque e prestígio internacional pelas publicações sobre a vacina antimalárica realizadas na NYU, atraindo diversos pesquisadores de renome internacional para o grupo. Seu trabalho pioneiro, iniciado nos anos 60, foi feito na malária experimental de roedores, usando formas esporozoítas -encontradas na saliva dos mosquitos infectados- para vacinar os animais, resultando na sua proteção total espécie e estágio específica. Ou seja, a proteção era apenas contra os esporozoítas dos mosquitos.
O protocolo de vacinação logo foi reproduzido, com sucesso, por outros pesquisadores americanos em voluntários humanos, com imunização pela picada sucessiva dos mosquitos irradiados infectados com as espécies P. falciparum e P. vivax, causadores da malária humana. Anos mais tarde, outro cientista americano, Steve Hoffman, vacinou, também com sucesso, grupos de voluntários humanos adultos inoculados com esporozoítas do P. falciparum dissecados de mosquitos previamente inativados pela irradiação. O processo era feito na sua empresa, Sanaria, onde produzia, infectava e dissecava os mosquitos para isolamento dos esporozoítas. Por se tratar de um processo dispendioso para se usar em larga escala, sua viabilidade permaneceu incerta.
Uma vacina sem os parasitos dos mosquitos se tornou realidade após ter sido possível sintetizar os peptídeos da proteína circumesporozoita do P. falciparum, em um trabalho feito em parceria com Victor Nussenzweig, à época, professor de Imunologia do Departamento de Patologia da NYU. O trabalho foi feito em parceria com outros colaboradores, na Universidade de Baltimore. Foram vacinados 30 voluntários, alunos da Faculdade de Medicina, nos quais a resposta imune foi discreta, como divulgado pelos pesquisadores, em 1987. Havia se passado quase 20 anos da publicação inicial da vacina feita com sucesso em roedores, na NYU.
O aparente fracasso com a vacinação dos voluntários, no entanto, não desanimou Ruth, apesar das críticas ferozes que sofreu de diversos grupos científicos, inclusive na mídia internacional. Nos trabalhos seguintes, Ruth procurava entender os mecanismos envolvidos na proteção induzida. Produziu reagentes importantes em parceria com os colaboradores na NYU. Dentre ele, o primeiro anticorpo monoclonal contra uma proteína do parasito, a caracterização da proteína majoritária da superfícies dos esporozoítas, a proteína CS, posteriormente também produzida através das técnicas de clonagem molecular e por engenharia genética por outros pesquisadores.
Muitos reagentes obtidos na NYU foram usados em estudos epidemiológicos importantes sobre a resposta imune de habitantes de áreas hiperendêmicas. Foram úteis na identificação das espécies causadoras de malária através de testes indiretos com anticorpos monoclonais feitos em mosquitos naturalmente infectados. No entanto, o primeiro reagente a ser usado em testes clínicos em populações vacinadas contra malária foi um antígeno recombinante denominado RTS-S, produzido pela indústria Glaxo Smith Klein. Antes de iniciar os trabalhos de campo com essa vacina recombinante RTS-S, o líder da pesquisa na GSK propôs parceria ao casal Nussenzweig, no entanto eles a recusaram porque preferiam continuar na academia e na pesquisa básica.
A vacina da GSK, administrada junto com um adjuvante, se mostrou parcialmente eficaz nos protocolos de avaliação no campo, mas incapaz de impedir a infecção dos indivíduos expostos à transmissão pela picada de mosquitos. No entanto, como a vacina foi capaz de evitar milhares de óbitos entre as crianças vacinadas expostas a transmissão, a OMS aprovou seu uso em três outros países do continente africano (Gana, Maláui, Quênia). Infelizmente, a malária continua causando milhares de mortes entre crianças nas áreas hiperendêmicas da África, além de muitos óbitos de adultos não imunes infectados em viagens às áreas endêmicas e não diagnosticados e tratados com os fármacos específicos.
Ruth foi eleita membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Academia Nacional de Ciências do Estados Unidos (NAS), em 2013. Na segunda, foi a única mulher de nacionalidade brasileira. Teve quase 250 trabalhos publicados em livros e revistais de impacto internacional como Science, Nature e PNAS. Ruth ainda atuou como consultora e membro de comitês científicos diversos como o comitê internacional da OMS, a Pew Foundation e a Academia Real de Medicina da Bélgica. Recebeu diversas medalhas e muitos prêmios internacionais como Erlich Prize, na Alemanha; a Medalha de Ouro da Sabin Vaccine e medalhas concedidas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Junto com Victor e com To Youyou, vencedora do Nobel de Medicina em 2015, recebeu o Prêmio da Fundação Warren Alpert, da Harvard, no valor de 500 mil dólares em 2017. Foi ganhadora ainda da Medalha Clara Southmayd Ludlow, entregue pela American Society of Tropical Medicine and Hygiene, em 2017.
Mensagem pessoal
Como marca muito importante de seu legado, assinalo a enorme contribuição da Ruth na formação de inúmeros pesquisadores de renome internacional ao longo de décadas. A maioria deles, trabalhando na vacina anti-esporozoítas contra malária, inicialmente na NYU. Ruth sempre acreditou na vacina contra malária, mas se mantendo ciente da necessidade de técnicas mais eficazes e acessíveis para melhorar sua eficácia.
Minha afeição e respeito pela Ruth se iniciaram desde nosso primeiro encontro, em fevereiro de 1972, numa manhã de inverno rigoroso, depois de uma nevasca na cidade de Nova Iorque. Ela fora me resgatar na área reservada aos passageiros no aeroporto internacional JFK. Eu trazia em mãos um inusitado companheiro de viagem por ela encomendado: um pequeno macaco (Saimiri sciureus) infectado com malária. Ele havia sido capturado nos arredores de São Paulo pelo grande especialista em malária de símios, o médico epidemiologista Leonidas Deane, seu velho amigo da USP e meu antigo professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Viajamos lado a lado no voo internacional, o macaquinho e eu, depois de ter enfrentado problemas ao tentar embarcar no aeroporto do Galeão em uma era em que o terrorismo era uma palavra quase desconhecida. Os problemas finalmente foram resolvidos e eu pude embarcar, depois de uma hora de negociação entre os comissários do voo e o oficial de saúde internacional da Organização Mundial da Saúde (OMS) que havia nos acompanhado até o aeroporto. Ele, médico epidemiologista, com seu passaporte azul, conseguiu, com dificuldades, convencer o pessoal da companhia aérea da importância vital do pequeno animal para o futuro da vacina contra malária humana. Argumentou que, sem ele, eu não poderia embarcar. Tampouco eu teria conseguido passar pela alfândega de Nova Iorque se não fosse pela a presença providencial de Ruth. E foi assim nosso primeiro encontro.
Considero uma grande sorte ter trabalhado com ela, o que fiz com prazer nos anos seguintes na NYU. Ficava encantada com seu entusiasmo e disponibilidade para nos ajudar. Havia técnicos, mas apenas três estudantes de doutorado no seu laboratório, e eu mesma, como primeira brasileira bolsista pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Ruth parecia incansável e sempre presente, sendo muito criativa e disponível, acumulando ainda a função de esposa, dona de casa e mãe de três filhos então adolescentes. Era gentil, sensível e muito generosa. Convicta da sua missão científica, ela parecia desconhecer limites ou barreiras, muitas vezes consideradas intransponíveis por outros. Ao precisar de mosquitos infectados com Plasmodium falciparum, ela foi até a Holanda para os buscar, pessoalmente, no único laboratório que cultivava e infectava mosquitos, transportando eles em sua bagagem de mão. Ela sempre tinha urgência e parecia ignorar a palavra impossível.
Ruth se manteve firme no seu ideal de melhorar a saúde e a vida no mundo, atenta aos avanços científicos até seus últimos meses de vida, se interessando especialmente pelo P. viva, parasito causador da malária humana e bastante negligenciado. Apesar da sua baixa mobilidade física e de estar contida numa cadeira de rodas por longos meses, ela acompanhava as publicações em revistas científicas, se interessando em especial pelo cultivo. Ruth queria muito retornar ao Brasil, seu país de coração, onde manteve admiradores, colaborações e uns poucos velhos amigos com os quais reclamava sempre de saudades. Ficou profundamente abalada quando faleceu nossa grande amiga comum, sua maior amiga e confidente, Judith Kloetzel, ex-professora da USP. Na minha última visita ao casal Nussenzweig, em Nova Iorque, no seu belo apartamento no Village, que era visita obrigatória nessas viagens, Ruth se queixava por não realizar seu sonho. Lá, conversamos muito sobre meu trabalho na área endêmica de malária no Brasil com estudantes de doutorado e grupos de Porto Velho, em Rondônia.
O sonho da Ruth de retornar ao Brasil certamente poderá prosseguir através do trabalho daqueles empenhados na ciência, chama viva entre diversos dos seus ex discípulos, inclusive eu mesma, profundamente agradecida e pesarosa. Um dos filhos da Ruth, Michel, cientista de Harvard, é membro da ABC. Os outros dois são também pesquisadores, Sonia na área de sociologia na Universidade Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FespSP) e André, no Instituto Nacional do Câncer do EUA. A eles, ao meu amigo e professor Victor, e aos seus 6 netos, expresso meus sincero e profundo pesar pela perda.
Pesquisadora em Malária e bolsista do CNPq no Instituto René Rachou (Fiocruz/MG) e professora aposentada pela UFMG