luzia_edit.jpgAo longo dos últimos 11 mil anos, Luzia — uma mulher de olhos grandes e rosto largo — teve tempo para se acostumar a lugares isolados. De início, ocupou uma gruta em uma cidadezinha mineira. Hoje, protege-se da luz, do calor e dos olhares curiosos em uma caixa almofadada, guardada em uma sala do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

Luzia, o ser humano mais antigo já encontrado no Brasil, ganhou fama em 4 de abril de 1998, quando o bioantropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo (USP), apresentou, a uma plateia de cientistas, as análises que fizera de um crânio feminino achado no município de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Na ocasião, seus ossos eram os mais antigos já identificados em toda a América. E Luzia representava uma revolução na forma como os cientistas pensavam o povoamento do continente.

Desde então, 20 anos se passaram. Hoje, o destino de Luzia desaponta um pouco o pai da descoberta. Apenas o busto que reconstitui suas possíveis feições está em exposição.

— O crânio, não — lamenta Neves, — Se uma criança brasileira quiser, ela não tem como ver o maior símbolo da pré-história nacional.

Seus 20 anos de celebridade também ameaçam passar em branco. Não há mostras comemorativas no horizonte:

— Eu mesmo quase me esqueci da data — diz o pesquisador.

Crânio encontrado em 1975

Luzia teve de ser afastada dos olhos do público por uma questão de segurança – e não por displicência do museu. A instituição não conseguiu informar quando o esqueleto foi tirado da mostra, mas afirma que foi a forma encontrada pela curadoria de evitar que as possíveis trepidações, provocadas pelos passos dos visitantes do museu, danificassem o crânio.

— Luzia é muito antiga e, em alguns pontos, está bastante fragmentada — diz o bioantropólogo Murilo Batista, pesquisador do Museu Nacional.

Os pesquisadores que quiserem examiná-la devem procurar o laboratório de antropologia biológica, uma sala climatizada, onde ela ocupa uma caixa em uma gaveta, na companhia de diversos outros crânios. Nenhum tão antigo quanto ela.

O engavetamento atual não é seu primeiro. Quando Neves pôs as mãos no crânio, no início dos anos 1990, ele estava há mais de 20 anos esquecido nos arquivos do museu. Fora encontrado em 1975, mas ninguém lhe dera grande importância.

— Já se sabia que ela era muito antiga — diz André Prous, bioantropólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). – Mas os pesquisadores de então não suspeitaram que ela podia ter uma relevância maior para o contexto de povoamento da América.

Características de Luzia surpreenderam

Quando examinou Luzia, Neves estava às voltas com uma teoria na qual trabalhava desde os anos 1980. Durante uma viagem a Noruega, ele entrara em contato com os crânios que o naturalista dinamarquês Peter Lund coletara em Lagoa Santa ao longo do século XIX. Ficou surpreso ao examinar suas características morfológicas: aqueles brasileiros pré-históricos tinham traços negroides, semelhantes aos das populações originárias da África e da Austrália.

A constatação contrariava as expectativas. Segundo a teoria então em voga, as Américas haviam sido povoadas por viajantes vindos da Ásia, e que exibiam traços mongoloides: semelhantes aos dos atuais chineses, ou dos atuais índios americanos. Há cerca de 11 mil anos, de acordo com essa teoria, esses primeiros colonizadores cruzaram o estreito de Bering, entre a Rússia e o Alasca, e dali se espalharam pelo resto do continente. Esses aventureiros foram apelidados de “povo de Clóvis”.

Neves propôs uma alternativa: para ele, a população de Lagoa Santa fazia parte de uma leva anterior. Que cruzara o estreito antes do “povo de Clóvis”, numa época em que a fisionomia dos humanos ainda não se diferenciara — e lembrava suas origens africanas.

Brasileira mais antiga morreu com 20 anos

A hipótese de Neves foi ignorada por anos. Até a chegada de Luzia. Ela também tinha traços negroides. Pelas análises do cientista, morrera jovem, com cerca de 20 anos. E morrera há muito tempo: 11 mil anos, mais ou menos. Luzia reforçava a teoria do pesquisador. Para chegar ao sul do continente há tanto tempo, seus parentes teriam de ter entrado na América antes do “povo de Clóvis”.

— A Luzia era muito charmosa — diz Neves. — Os americanos já não tinham como ignorar que havia um louco no Brasil propondo um novo modelo.

Rapidamente, Luzia virou também uma celebridade internacional. Uma equipe da Universidade de Manchester, no Reino Unido, reconstituiu suas possíveis feições. No ano seguinte, o rosto de Luzia, a primeira americana, já estampava as páginas de jornais e revistas do mundo todo:

— Eu perdi completamente o controle sobre a minha criatura. Nunca imaginei que ela ganharia o destaque que ganhou.

Ícone da pré-história brasileira

A importância científica de Luzia foi rapidamente reconhecida. Mas, para Neves, seu maior mérito não foi o de dar amparo a uma teoria. Para ele, Luzia diminui a distância entre a ciência e as pessoas comuns, frequentemente alheias a discussões acadêmicas.

— Antes de Luzia, a gente não tinha um ícone da pré-história brasileira. Se você vai para a França, todas as crianças sentem orgulho do homem de cro-magnon (o primeiro europeu). E toda as crianças alemãs sabem que o homem de Neandertal foi descoberto na Alemanha. Já no Brasil, nós não tínhamos um símbolo. E esses ícones facilitam muito a relação entre o cientista e o público em geral.

Luzia foi incorporada ao imaginário dos brasileiros da época. E deu estímulo ao interesse pela arqueologia nacional.

— Tinha 14 anos quando surgiram as notícias sobre Luzia — conta Batista, o bioantropólogo do Museu Nacional. — Na época, eu nem sabia que esse campo de trabalho existia. A Luzia chamou nossa atenção para essa área.

Silêncio nos 20 anos

Em parte por esse sucesso pregresso é que o silêncio em relação aos seus 20 anos incomoda Neves. Na USP, onde deu aulas até novembro passado, o pesquisador, que acabou de se aposentar, disse que tentou por anos criar uma mostra permanente sobre pré-história brasileira, com a presença do busto de Luzia no acervo. A ideia nunca foi autorizada pela universidade. As atividades de divulgação científica não são muito valorizadas na academia, ele explica.

Prous, da UFMG, também se diz incomodado:

— Estou desapontado. Há anos que proponho às autoridades da universidade uma grande exposição de pré-história, na qual uma reprodução do crânio de Luzia teria, obviamente, seu lugar.

Francês, Prous fez parte do grupo de Neves que apresentou Luzia ao mundo. O tratamento dado a Luzia contrasta com a atenção que esses símbolos recebem fora do país. No dia 23 de março, a descoberta do homem de cro-magnon completou 150 anos. Foi comemorada com uma exposição interativa na França aberta em novembro passado e que segue até maio.

As celebrações por Luzia esbarram no momento difícil que vive a ciência brasileira e todas as instituições envolvidas em seu fomento e divulgação. Recém-empossado diretor do Museu Nacional, o paleontólogo [ e membro titular da Academia Brasileira de Ciências] Alexander Wilhelm Armin Kellner destaca que, ao menos no caso dela, ainda há uma mostra dedicada ao fóssil, o que não acontece com muitos das dezenas de outros “tesouros” no acervo da instituição.

— Vejo com bons olhos quando pesquisadores ficam preocupados com a exposição de suas descobertas para demonstração do conhecimento científico ao público, mas no caso específico de Luzia, mesmo que o fóssil original do crânio não esteja à mostra, felizmente temos uma exposição dedicada a ela, com sua reconstrução — conta. — Claro que esta exposição poderia e deveria ser muito melhor, mais condizente com a importância deste achado. Mas para isso faltam verbas. Adoraria fazer uma parceria com Neves neste projeto, e desde já ele está convidado para isso. Ainda está em tempo.

Segundo Kellner, para uma exposição “minimamente digna” do crânio de Luzia, com a adaptação de um canto da sala onde já está seu busto, seriam necessários cerca de R$ 100 mil. Já um projeto maior, com mais detalhes sobre a evolução humana, a ocupação das Américas e onde e quando Luzia se encaixaria nesta história, demandaria aproximadamente R$ 1 milhão.

— Estes valores variam dependendo do escopo e da área que a exposição ocuparia — acrescenta. — Mas o que ocorre hoje no Brasil é que não temos uma valorização de instituições do tipo museus, sobretudo os de história natural. Por isso mesmo queremos usar o bicentenário do Museu Nacional (completado este ano) para chamar a atenção da sociedade para uma mudança desta visão. Não temos só a Luzia como um tesouro. Estamos cuidando de um acervo maravilhoso para as futuras gerações e também sofremos com a frustração de não poder levar tudo isso diretamente para o público. Mas para isso precisamos que a sociedade brasileira, governo e iniciativa privada, se associem ao museu, para termos as verbas não só para fazer uma exposição digna da Luzia como dessas dezenas de outros exemplares raríssimos e únicos de nosso acervo.

Ainda de acordo com Kellner, só com essa mobilização da sociedade seria possível levar á frente seu ambicioso projeto de renovação do Museu Nacional. Nele, as áreas administrativas da instituição seriam transferidas para prédios a serem construídos em um terreno que pede que seja cedido pela União ao lado da Quinta da Boa Vista, com todo palácio passando a servir exclusivamente como área de exposição.

— A cessão deste terreno seria por si só já um grande presente do governo federal pelos 200 anos do Museu Nacional — considera. — Para sermos um museu de qualidade internacional, no nível de um Smithsonian, já temos o principal, que é o acervo. Nos falta é a infraestrutura.

Kellner estima que, com o terreno em mãos, seriam necessários ainda cerca de R$ 300 milhões para uma reforma e modernização completa do palácio, com a montagem no local de exposições com um “viés moderno, interativo, interessante e rico” comparáveis ao da citada instituição americana.

— É inconcebível qualquer país que valorize sua cultura deixar um prédio histórico como o Museu Nacional é para o Brasil chegar na situação em que ele está — finaliza.