RIO – As mulheres são maioria na população brasileira, há 27 anos são majoritárias entre os que cursam ensino superior e representam 49% das bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a principal agência de fomento à pesquisa no Brasil. Mas, ao longo da carreira, vão sendo “expulsas” do universo acadêmico, no que é conhecido como efeito tesoura. Os números são flagrantes dessa exclusão: nas bolsas de iniciação científica, 59% são mulheres; já nas de produtividade, as mais prestigiadas, com financiamento maior, a parcela feminina cai para 35,5%. Dentro deste grupo, ainda há as bolsas 1A, as mais altas, que só contemplam 24,6% de mulheres.
Não há apenas uma explicação para esse afastamento conforme a carreira avança, mas um conjunto: desestímulo nas escolas, na família e na sociedade; divisão desigual dos cuidados com filhos e casa, sobrecarregando a mulher; predomínio de homens na gestão dos financiadores e dos coletivos que reúnem cientistas; e machismo dentro das instituições. Ainda hoje, universitárias escutam de professores e professoras frases do tipo “Tá achando difícil? Então vai fazer balé” ou “Vocês meninas são mais lentas, só você não entendeu, então não vou explicar de novo”, que foram coletadas na campanha #esseemeuprofessor, feita pelo Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2016, dentro do programa Meninas na Ciência:
— Replicamos uma campanha feita na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Em 48 horas, recebemos 200 frases — conta a física Carolina Brito, professora da universidade que coordena o programa. — Recebi frases que ouvi quando estava no início da faculdade.
Na Academia Brasileira de Ciências, que tem um processo de indicação e votação interno, só 14% são do sexo feminino. Nunca houve mulher presidente nos seus 102 anos de existência. Houve uma vice-presidente, nos anos 1960, Johanna Döbereiner, que desenvolveu um método de adubação para soja que aumentou a competitividade do grão.
O CNPq nunca teve uma presidente em 66 anos de existência. Esse é um dos problemas apontados pelas pesquisadoras para a baixa representatividade feminina nas ciências. As instâncias de poder estão nas mãos dos homens:
— Fui criticada quando comecei meu primeiro mandato como reitora e escolhi 70% de mulheres para a diretoria e pró-reitorias. Perguntavam-me: “por que tantas mulheres? Está fazendo de propósito? Está se vingando agora? Isso é uma política?” “Sim e não”, eu respondia. Dei oportunidade e visibilidade para as mulheres que estavam aí, que têm capacidade, talento, mas não estavam sendo chamadas para ocupar os postos. Se fossem todos homens, não estariam fazendo essa pergunta — comenta Soraya Soubhi Smaili, primeira reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Nas universidades federais brasileiras, há 28,3% de reitoras. São 19 entre os 63 reitores. Na Academia Brasileira de Medicina, apesar de as mulheres serem maioria entre os formandos, em torno de 55%, há apenas cinco delas entre os 115 membros, o que representa 4,3%.
Carolina ressalta que, ao olhar os números gerais, as mulheres são as que mais se formam:
— Além da segregação por área, o percentual de mulheres cai conforme a carreira avança. Em diretorias de institutos, bolsas de produtividade, de prestígio, há muito mais homens. Na física, entre as formadas, 30% são mulheres. Em mestrado e doutorado, esse número cai para 20%. Já entre professoras, são 15% e, na Academia Brasileira de Ciências, apenas 5%. É o efeito tesoura que varre as mulheres para fora da carreira.
Segundo ela, foi feita uma pesquisa em 2005 nos comitês do CNPq que selecionam os profissionais com mais prestígio para as bolsas de produtividade:
Para concorrer às bolsas de produtividade, o pesquisador precisa ser doutor há determinado tempo. Há quatro níveis, de A a D. As 1A são as mais altas em remuneração e concedidas a pesquisadores “que tenham mostrado excelência continuada na produção científica e na formação de recursos humanos, e que liderem grupos de pesquisa consolidados”.
Marcelo Morales, presidente substituto do CNPq, diz que não vê um viés de gênero na concessão de bolsas. Afirma que a presença menor das mulheres no topo reflete o passado. E se diz otimista em relação a um equilíbrio de gênero na concessão de bolsas: a parcela feminina na iniciação científica está no mesmo nível que a dos homens.
Mas o CNPq é masculino. Segundo levantamento de 2013, nos comitês de assessoramento, que decidem quem recebe bolsa de produtividade, 70% são homens, mesmo em carreiras onde a presença feminina é maior, como ciências sociais e biológicas.
— É histórico que a participação feminina foi negligenciada, mas acredito que isso possa ser revertido. Acredito que alcançaremos o equilíbrio em menos de dez anos, com participação até maior feminina, pelos dados que vemos na iniciação científica. Fui membro de comitê de assessoramento e não vi discriminação na concessão de bolsas — diz Morales, que destaca que, em algumas áreas, há equilíbrio de gênero. — Na Enfermagem, o predomínio é feminino. Em biofísica, imunologia e medicina, os comitês são equilibrados. Entre líderes de grupos de pesquisa, as mulheres são 46,6%.
ATRASO DE DEZ ANOS NA CARREIRA
Outro motivo para a expulsão das mulheres é a dificuldade de conciliar o cuidado dos filhos e da casa com o trabalho acadêmico. Pelos números do IBGE, a mulher destina 20 horas ao serviço doméstico por semana, o dobro da dedicação dos homens. Por causa disso, a professora de Biociências da UFRGS Fernanda Staniscuask resolveu fazer uma pesquisa para medir o quanto a maternidade atrasa ou expulsa a mulher da academia. Já foram entrevistadas mil mulheres, e mais da metade delas são as únicas cuidadoras dos filhos. O objetivo é reunir esses dados e conseguir bolsas para pesquisadoras que acabaram de ter filhos:
— Como elas se afastam para ter filhos, ficam sem publicar e não conseguem bolsas de pesquisa. Sem recursos, não se consegue fazer pesquisa.
A maternidade é citada por Fernanda como um dos motivos para o atraso de dez anos na carreira feminina na ciência em relação aos homens:
— Nas bolsas de produtividade do CNPq, os homens chegam entre 45 e 49 anos, enquanto as mulheres chegam dez anos depois, entre 55 e 59 anos.
O levantamento também mostrou que uma parcela das mulheres opta por não ter filhos ou ter apenas um para conseguir seguir na carreira: cerca de 25% delas não têm filhos.
— A maternidade ocorre no início da carreira da mulher, com cerca de 32 anos, quando ela está florescendo no meio cientifico — comenta Fernanda.
Na matemática, as mulheres são raras. No Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), com reconhecimento internacional, há uma mulher entre 50 professores permanentes. Carolina Araújo estuda geometria algébrica. Por meio de equações, estuda a curvatura das formas:
— Do ponto de vista profissional, não sinto estranhamento, porque eu já me acostumei a esse ambiente masculinizado, aprendi a lidar com isso. Minha mãe é engenheira. Eu tenho uma casca grossa. Mas, do ponto vista social, causa-me desconforto. Sinto que muitas mulheres poderiam seguir essa carreira, mas não prosseguem por não se sentirem confortáveis. Existe uma sensação de não pertencimento afastando grandes talentos dessa área.
Para Carolina, o desequilíbrio prejudica a ciência:
— Os talentos estão igualmente distribuídos. Quanto mais diversificado o grupo de pesquisa, mais eficiente ele é.
Marcelo Viana, diretor do Impa [e membro titular da Academia Brasileira de Ciências], reconhece que a situação não é desejável, mas afirma que há pouca oferta de mulheres cientistas na matemática:
— Atualmente, há uma professora. Já houve duas e já ficamos períodos sem qualquer mulher no quadro permanente. Para professoras temporárias, o quadro é um pouco melhor, há 15% de mulheres inscritas e conseguimos contratar 25% de mulheres. Entre os alunos, há 25% de mulheres inscritas.
Viana conta que, no ano que vem, o Impa deve instituir a seleção às cegas, sem identificação de gênero, para ver se melhora a participação:
— Não há qualquer razão natural para a mulher não estudar matemática. A questão cultural pesa muito nessa escolha. A filha de um amigo disse que queria fazer engenharia, mas o pai a desencorajou, dizendo que ela não conseguiria se impor entre os operários. Há um desestímulo.
A vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Vanderlan da Silva Balzani, recentemente publicou o artigo intitulado “Mulheres na ciência: por que ainda somos tão poucas?” Ela, que também é professora titular do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que cada dia há mais mulheres trabalhando em várias áreas, mas, quando chega no topo, como no Prêmio Nobel, o número de homens é muito maior.
No artigo, ela lembra que uma mulher, a polonesa Marie Curie, foi a única pessoa até hoje a ganhar dois Prêmio Nobel em áreas distintas: o primeiro em 1903, na física, e o segundo em 1911, na química, conduzindo pesquisas sobre radioatividade:
“O exemplo de Marie Curie deve ter inspirado milhares de jovens a buscarem a carreira científica, entre elas a autora deste texto. Mas quando se toma a referida premiação como medida dos resultados desse estímulo, eles podem ser considerados ainda muito modestos. Nos 90 anos que se seguiram àquela Conferência de Solvay (1927), somando as áreas de física, química e medicina, somente 16 prêmios Nobel foram concedidos a mulheres, em um total de 320 premiações.”
Mas Vanderlan é otimista. Crê que as novas gerações vão vencer os obstáculos culturais que afastam a mulher da ciência:
— Quando chego para pegar meus netos na escola, vejo meninas e meninos brincando juntos de boneca, carrinho. Na minha época, as meninas não eram estimuladas a gostar de ciência.
O professor Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, diz que o percentual de mulheres é similar ao encontrado em outros países, mas afirma que está fazendo um trabalho político para que os membros indiquem mulheres para a academia:
— Entre os pesquisadores mais jovens, até 40 anos, a parcela de mulheres sobe para 21,4%. Na última eleição, dos 15 novos membros, cinco foram mulheres. Estamos melhorando.
NA ECONOMIA, POUCAS PROFESSORAS TITULARES
A economista Monica de Bolle, professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, fez um levantamento nos departamentos de economia de três grandes universidades privadas e uma pública do Brasil. Constatou que, entre os 80 acadêmicos do quadro permanente, apenas seis eram mulheres:
— Tem uma coisa muito emblemática. Quando se olha as turmas de graduação e de pós-graduação, elas são balanceadas. Por que são tão poucas entre as titulares? É de arrepiar.
Maria Tereza Leme Fleury, que foi a segunda mulher a dirigir a Faculdade de Economia e Administração da USP e também comandou a Escola de Administração da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), diz que se exige mais das mulheres para chegar no topo da carreira. Segundo ela, as organizações precisam estar preparadas para receber as mulheres nos cargos de gestão:
— É preciso ter muita competência técnica, mobilização e liderança, que precisam ser desenvolvidas nessas mulheres. Elas têm que ser melhores que os homens. Há um aprendizado que vai sendo construído conforme se assume cargos.
Maria Tereza diz que o tempo do assédio e das piadas ficou para trás:
— Na minha geração sim, tinha muito. As reuniões eram cheias de piadas e brincadeiras, eu tinha que brigar, reclamar. Mas sinto que o ambiente das organizações está mudando.