A sessão intitulada “Singularidades da biodiversidade brasileira: ecologia e conservação”, parte do Simpósio Preparatório Brasil/França sobre Biodiversidade, promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) entre 19 e 21 de setembro, foi conduzida pela bióloga Camila Ribas. Coordenadora de Biodiversidade e do Programa de Coleções Científicas Biológicas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Camila também atua como curadora da Coleção de Recursos Genéticos Animais.
Ela destacou na sua introdução que as prioridades de pesquisa não devem ignorar os impactos potenciais ao ambiente. “Os pesquisadores têm que se antecipar para procurar reduzir os impactos sobre a biodiversidade, têm que interferir nos processos decisórios referentes a desmatamento e construção de barragens”. Ela explicou que depois de destruído o ecossistema, não há possibilidade de “compensação”, pois a biogeografia da Amazônia é heterogênea e amplamente desconhecida.
Camila apresentou os temas que os palestrantes abordariam a seguir: o uso sustentável da biodiversidade, os processos biogeoquímicos, a diversidade vegetal e a genética da conservação.
Conservação da biodiversidade Amazônica: uso sustentável e proteção das espécies
A primeira apresentação foi do pesquisador e diretor geral do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM-OS/MCT), Helder Lima de Queiroz. Ele reiterou que a diversidade biológica da Amazônia é desconhecida. “O que sabemos é que de 1999 até hoje, 2.200 espécies foram descritas, sendo que desde 2013 é descoberta uma espécie nova a cada dois dias”, afirmou. Mas alertou que em termos de flora, 2.478 espécies já são consideradas ameaçadas, assim como 1.173 espécies da fauna da região.
“O desafio da conservação é muito grande. Temos que definir prioridades, então estamos focando nas florestas alagáveis”, explicou o biólogo. Estas florestas podem ser de três tipo: igapós (águas pretas e claras), várzeas (águas brancas sazonais e estuarinas) e os manguezais (na zona costeira). Mas as várzeas predominam, correspondendo a 400.000 km2. E listou alguns bons motivos para conservar essas florestas alagáveis. “Elas são as regiões com maior concentração de habitantes, dão origem à maior biomassa de peixes consumida e comercializada na região, ao maior volume de madeira consumida na região e de maior sequestro de CO2”, informou, além de corresponderem ao ecossistema de maior vulnerabilidade do bioma, que provê muitos e importantes serviços ecossistêmicos.
“Só de peixes, são mais de 2.000 espécies, mas menos de 200 são utilizadas. A região tem a maior concentração de pirarucus, o maior peixe de escamas de água doce, que pode chegar a três metros de comprimento”, relatou Queiroz. Ele acrescentou que essa foi uma espécie comercial importante por 300 anos, mas chegou ameaçada de extinção ao final do século XX. “No entanto, com um trabalho intensivo das populações e de especialistas no manejo da pesca, a espécie se recuperou e hoje voltou a ser abundante”, apontou Queiroz. “Ele acrescentou que três países vizinhos já estão usando esta metodologia.
No Instituto Mamirauá, a produção científica é intensa. Lá se faz pesquisa sobre a comunidade de peixes e sua biodiversidade, sobre o meio ambiente onde vive a espécie manejada e suas características biológicas, assim como sobre a dinâmica populacional e a estrutura genética da espécie de interesse. “Aprendemos com os pescadores a metodologia tradicional da gestão da pesca e compartilhamos com eles metodologias de contagem e de gestão participativa”, esclareceu o cientista. Além disso, trabalham junto aos pescadores as relações da pesca com os mercados local e regional, assim como os impactos socioeconômicos do manejo das espécies. “Isso interessa a eles, porque envolve sua renda familiar e sua qualidade de vida”, acentuou.
Helder Queiroz sinalizou os próximos passos da atuação dos cientistas na região. “Agora precisamos investir em pesquisas para melhorar a qualidade sanitária do pescado e isso vai envolver vários parceiros, em cooperação científica”.
Além da ameaça aos peixes, há mamíferos também sob pressão. Helder exemplificou com o caso dos macacos-de-cheiro, que em função do aumento da temperatura e da acidificação dos solos e corpos d’água, entre outros fatores, se tornaram uma espécie ameaçada, com a menor área de distribuição geográfica conhecida no Neotrópico. “Eles só existem num recorte de 870 km2”, destacou Queiroz. O padrão de alagamento é a grande ameaça, em função das mudanças climáticas.
Queiroz estuda o Saimiri vanzolini, variedade de macaco-de-cheiro cujo habitat será alagado. “Observamos sua distribuição geográfica, genética e filogeografia, além da morfologia e histologia reprodutiva das fêmeas. De posse deste conhecimento, podemos construir um banco de germoplasma e pensar em fazer a fertilização in vitro (FIV) para que a espécie sobreviva e possa repopular outros ambientes”, explicou. Este procedimento, de acordo com o pesquisador, já foi validado em macacos-prego.
Helder encerrou ressaltando a importância das parcerias com diversas instituições, como o Museu Goeldi (MPEG), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Centro Nacional de Primatas (CENP), as universidades Federal do Pará (UFPA), Federal do Amazonas (UFAM), Federal Rural da Amazônia (UFRA), Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Federal de Minas Gerais (UFMG), Federal de Santa Catarina (UFSC), Estadual de Santa Catarina (UESC), da Califórnia (UCLA), do Estado de Nova Iorque (SUNY), da Cidade de Nova Iorque (CUNY), de St. Andrews (Escócia), de Montreal (Canadá), de Utrecht (Holanda).
“Todos os pesquisadores e instituições envolvidos na cooperação científica nacional ou internacional têm sido fundamentais para o sucesso destes programas de pesquisa para conservação da biodiversidade amazônica. Sozinhos, somos poucos. Precisamos de cooperação para o estudo de espécies-chave da biodiversidade amazônica”, alertou.
* Helder Lima de Queiroz (Instituto Mamirauá) é também membro de programas de pós-graduação no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e na Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra os quadros da Plataforma Intergovernamental e da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES e BPBES). Tem experiência em conservação e uso sustentável da biodiversidade, aplicando resultados de pesquisas em subáreas de ecologia, com ênfase em peixes e mamíferos. Atua também em ecologia de florestas alagadas e na conservação da biodiversidade amazônica.
Diversidade vegetal na Amazônia: padrões, processos e ameaças
A pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Flávia Regina Capellotto Costa começou destacando as grandes áreas com lacunas de conhecimento botânico. “A estimativa é de 16 mil espécies de árvores. Mas isso não significa que todas as espécies foram coletadas. Temos nos herbários em torno de 12 mil, faltam ainda quatro mil”, informou. Mas a bióloga alertou para o grande desacordo entre botânicos e ecólogos sobre este número. “Os botânicos dizem que o número é bem maior porque há várias espécies ‘escondidas’. As que são raras têm poucas coletas, são as mais desconhecidas e as mais ameaçadas. As espécies bem coletadas são apenas as que têm tamanho populacional grande”, explicou.
E coletar, apenas, não resolve. Segundo Flávia, há grande dificuldade em identificar as espécies. “Falta pessoal treinado, tecnologias avançadas e recursos. Por conta destes, o ritmo de coleta de novas espécies despencou nos últimos anos, então boa parte da diversidade vegetal da região ainda está escondida.” Ela diz que novas tecnologias ajudam muito na identificação, como a espectrometria no infravermelho (NIR), mas que para estudos de evolução ainda é necessária coleta de DNA.
As maiores ameaças à conservação das árvores no leste da região amazônica, em sua análise, são as mudanças do uso da terra, concentradas no Arco do Desmatamento. “Hoje, 25% das espécies estão ameaçadas. Se não fizermos nada, em 2050 teremos 50% em risco de extinção”, alertou. Na parte sul da Amazônia, a causa das ameaças são as secas extremas. “Mas houve aumento de mortalidade de árvores por toda a bacia Amazônica”, apontou a pesquisadora. Já na região central, as tempestades de vento estão aumentando e mudando a vegetação. “ Os padrões de diversidade e distribuição de espécies ainda não são bem entendidos para permitir tomadas de decisão adequadas. Mas, certamente, as maiores ameaças estão onde há mais lacunas de conhecimento”, concluiu.
* Flávia Regina Capellotto Costa (Inpa) é coordenadora do sítio 1 do Projeto Ecológico de Longa Duração (PELD), tem experiência na área de ecologia, com ênfase em ecologia vegetal e aplicada. Atua principalmente nos seguintes temas: Amazônia, distribuição de espécies, biodiversidade, dinâmica de florestas e ecologia funcional.
Relações estreitas entre o funcionamento dos ecossistemas e a biodiversidade
Professor titular do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA), no campus de Piracicaba da Universidade de São Paulo (USP), o Acadêmico Luiz Antônio Martinelli abordou a integração entre biodiversidade, processos ecológicos e processos biogeoquímicos. “Nossa comunidade, de biogeoquímicos e ecólogos, às vezes trabalha isolada da comunidade de pesquisa em biodiversidade. E é extremamente profícuo quando essas comunidades se juntam.”
Seu interesse está no entendimento de como a biodiversidade define processos ecológicos e como esses processos ecológicos vão definir serviços ambientais. Segundo Martinelli, “a biodiversidade influencia muito esses processos e serviços. Essas conexões é que tem que ser muito mais investigadas em nosso país.”
Ele apresentou alguns casos do impacto para a humanidade da perda de biodiversidade. “Nos trópicos temos tantos organismos diferentes, que mesmo que se tire um, vem outro e cumpre a mesma função”, explicou. “Como é que estes organismos se transformam? Quando o organismo se adapta ele gasta energia, energia esta que é desviada da capacidade reprodutiva. Isso é que precisa ser estudado”, apontou Martinelli.
Um exemplo de peixes que se alimentavam de determinados nutrientes oriundos das plantas da mata ripária na beira do rio. Com a retirada desta mata, a alimentação dos peixes mudou. “E ainda não sabemos as consequências desta nova alimentação na sua reprodução e na composição aquática destes ribeirões, por conta das novas taxas de excreção de carbono, nitrogênio e fósforo causadas pelo processo de alimentação ao novo alimento.”
O Acadêmico mostrou ainda um trabalho Brito e Sazima (2012), um exemplo interessante do efeito da variação de altitude. Eles saíram de uma restinga, passaram por uma floresta de terras baixas, sub montanha e montanha. “Foram encontradas proporções diferentes de material reprodutivo, originário da queda de flores e sementes: a quantidade vai diminuindo à medida que a altura vai aumentando”, explicou.
Uma das hipóteses cogitadas pelos pesquisadores é que as plantas dedicam menos carbono para reprodução e mais para a estrutura, pois precisam de folhas mais grossas para evitar perda de água. Outra hipótese é relativa à polinização. Eles observaram que um determinado tipo de abelha (Tibouchina pulchra) frequentava dez vezes mais as folhas das terras baixas do que as das terras altas. “Se esse comportamento puder ser generalizado para outras espécies, então a explicação pode ser o fato de haver menos polinizadores.”
Já numa floresta temperada, com poucas espécies, pode se regular vários processos ecológicos exercendo a variação. “Conforme aumenta o número de espécies, aumentam os estoques de carbono no solo, o que é bastante importante nesses tempos bicudos de mudanças climáticas”, apontou.
*Luiz Antônio Martinelli (CENA-USP) tem experiência na área de ecologia, com ênfase em dinâmica de ecossistemas tropicais utilizando isótopos estáveis como traçadores dos ciclos do carbono, nitrogênio e água.
Desafios da genética da conservação na região neotropical
O professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fabrício Rodrigues dos Santos, abordou a genética da conservação aplicada ao estudo da biodiversidade. “Já trabalhamos há muitos séculos com a diversidade aparente, morfológica, fenotípica – a que a gente vê e consegue medir. A diversidade genética é críptica, isto é, está escondida na natureza. Ela nos permite entender processos de curto, médio e longo prazo que não conseguiríamos ver de outra maneira”, explicou.
Santos desenvolve vários tipos de pesquisa, dentre as quais estudos sobre aves e sapos em ilhas de altitude, na serra do Espinhaço. Estes ambientes têm populações adaptadas ao frio, que não sobrevivem em zonas baixa e por isso vivem isoladas das outras. “Isso leva à formação do que a gente chama de espécies endêmicas, que só ocorrem naquele lugar. Também significa que, com o aquecimento global, essas populações vão ter área ainda mais reduzida, porque elas dependem do clima frio”, explicou Santos. Ele e sua equipe buscam entender como estas espécies se portaram no passado para prever como vão se portar no futuro. “Temos capacidade de fazer reconstruções de cenários ambientais de vários milhões de anos atrás e a partir disso fazemos previsões. No momento, estas previsões são catastróficas, de fato, do ponto de vista da genética da conservação teremos sérios problemas em todos os ecossistemas do Brasil”, alertou.
Além disso, os estudos genéticos permitem identificar algumas espécies sem sacrificar indivíduos. “Pela morfologia é mais difícil, precisamos ter licença ambiental para capturar e sacrificar, eventualmente, algum animal. Utilizando o DNA, podemos usar seu pelo ou até fezes”, relatou Santos.
De acordo com o palestrante, a genética incorporada à biodiversidade serve para valorizar a história natural, o contexto no qual cada uma daquelas espécies apareceu, pode explicar porque é que na Amazônia há tamanha heterogeneidade em diferentes áreas, porque as áreas de altitude são ricas em espécies totalmente diferentes das vizinhas e assim por diante. “A genética serve também para atribuir um valor biotecnológico a esse patrimônio genético do Brasil.”
*Fabrício Rodrigues dos Santos é professor e pesquisador de Genética e Evolução na UFMG, orientador nos programas de Pós-graduação em Genética, Zoologia e em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre. Atua principalmente na área de história natural e evolução biológica utilizando o DNA e análises de genética populacional, filogeografia e filogenia aplicadas à biodiversidade brasileira e também à história da espécie humana. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Genética (2014-2016) e é atualmente diretor do Centro de Coleções Taxonômicas da UFMG e membro da Academia Ibero-Americana de Biologia Evolutiva (AIBE).