Para presidente da ABC, educação superior no Brasil precisa de reforma profunda
A reforma na educação superior do Brasil é inadiável. Os currículos estão obsoletos, e a comunidade acadêmica, numa visão conservadora, mantém o mesmo formato herdado de 1969. A opinião foi construída pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), após reflexões sobre o desenvolvimento da ciência e da educação no Brasil, durante a palestra “O Valor da Ciência”, proferida no auditório do campus Juazeiro do Norte, da Universidade Federal do Cariri (UFCA), na manhã desta quarta-feira, 13. O evento científico foi uma edição especial do projeto Hora da Ciência, promovido pelo Núcleo de Divulgação Científica da Pró-reitoria de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação (PRPI).
No auditório com público diverso, formado pela comunidade acadêmica e representantes de outras instituições de ensino superior da região, além de professores e estudantes do ensino médio, Davidovich, que também tem experiência na área de Física, com ênfase em Óptica Quântica e Informação Quântica, fez uma trajetória sobre o início do desenvolvimento da ciência no Brasil, o surgimento das primeiras universidades, abordou as principais repercussões da ciência no país, os desafios para o futuro e a importância da ciência básica. Ao final do evento, conversou com a equipe da Diretoria de Comunicação (DCOM) da UFCA sobre ciência, educação superior e os desafios para o Brasil. Confira a entrevista:
DCOM/UFCA – O desenvolvimento da ciência e da educação no Brasil é recente. Mesmo assim, já conseguimos desenvolver bem algumas áreas. Quais foram as principais repercussões da ciência no Brasil?
Luiz Davidovich – Teve grandes repercussões, por exemplo, na agricultura. Foi um trabalho iniciado pela Johanna Dobereiner num laboratório da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que depois foi desenvolvido pela Embrapa e levou ao aumento da produtividade da soja. Além disso, a ideia da Johanna, que era introduzir nitrogênio no solo por meio de bactérias, fez com que o Brasil não precisasse mais importar fertilizantes nitrogenados. Isso implica, neste ano, numa economia de 15 bilhões de reais. É um retorno muito superior ao que o que foi investido no laboratório da Johanna Dobereiner. A agricultura é um grande exemplo dos benefícios produzidos pela ciência brasileira para o país, mas há outros exemplos. Até poucos anos atrás, quando se falava no pré-sal, diziam “ah, é uma aventura”, “isso não vai dar certo”, “isso é uma maluquice”, “vai ficar muito caro”. No entanto, graças à ciência brasileira, desenvolvida em vários laboratórios de universidades brasileiras em cooperação com o Centro de Pesquisas da Petrobras, hoje em dia, o petróleo do pré-sal corresponde à 50% da produção nacional. Aviões da Embraer estão presentes em vários países. Epidemias emergentes estão sendo enfrentadas e entendidas pela ciência brasileira. Esse foi o caso da epidemia recente de zika. Foi aqui no Brasil que se descobriu a relação entre o zika e a microcefalia. A Embraco [Empresa Brasileira de Compressores] se tornou a maior empresa de compressores no mundo e foi desenvolvida graças à cooperação com o Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Santa Catarina. É uma gama muito variada de exemplos de sucesso da ciência brasileira, nas áreas de agricultura, saúde, petróleo, tecnologia.
DCOM/UFCA – O senhor acha que essas áreas foram as que se desenvolveram melhor no Brasil? Quais são as áreas que ainda precisam se desenvolver?
Luiz Davidovich – Essa são áreas que tiveram sucesso, mas eu não mencionei, por exemplo, cosméticos que usam a biodiversidade da Amazônia e competem internacionalmente. Tem muitos exemplos de sucesso da ciência brasileira, mas ainda temos desafios importantes a vencer. Um dos grandes desafios é explorar de forma sustentável a biodiversidade brasileira, a que está nos biomas nacionais: Amazônia, Cerrado, Semiárido, Mata Atlântica, Mar Costeiro. É uma riqueza fantástica. Na minha palestra dei exemplo de um produto, a bergenina, que é extraída de um fruto da Amazônia e que serve de base para medicamentos anti-inflamatórios. A bergenina está sendo vendida a mil reais o miligrama. Compare isso com o preço de um grama de ouro, que é cento e vinte cinco reais. Um grama de bergenina é um milhão de reais. Isso mostra a riqueza da biodiversidade nacional, que tem que ser abordada, se não quem vai ter patente com isso são os estrangeiros, não seremos nós. Costumo dizer que é o equivalente nacional ao homem na Lua nos Estados Unidos, que gerou um grande esforço de mobilização na sociedade. Aqui nosso ser humano na Lua, para mim, é a biodiversidade brasileira. É isso que está esperando pra ser conquistada, de forma sustentável, sem destruir a floresta, as matas e o cerrado.
DCOM/UFCA – O senhor falou na mobilização da sociedade nos EUA. Na sua opinião, por que, aqui no Brasil, a ciência ainda não conseguiu mostrar sua importância de uma maneira que a própria sociedade se mobilize em prol dessa causa? A gente tem visto um cenário de desmonte das instituições, de corte de recursos. O que falta para o engajamento da sociedade e que essa luta não fique restrita aos grupos científicos?
Luiz Davidovich – Tem uma pequisa recente feita pelo CGEE [Centro de Gestão e Estudos Estratégicos], em Brasília, sobre o entendimento da população brasileira em relação à ciência. E um alto percentual, talvez 80% das pessoas entrevistadas, dizem que a ciência é muito importante para o Brasil. Quando perguntadas se deve-se aumentar o investimento em ciência no Brasil, mesmo que seja feito a custa de outros programas, a resposta da grande maioria é sim. Então, acho que existe um respeito pela ciência, uma compreensão difusa de que ciência é fundamental para o Brasil. No entanto, quando você pede para as pessoas mencionarem o nome de um cientista brasileiro, não sabem dizer. Isso mostra que não é uma compreensão profunda e que precisa ser mais aprofundada.
Acho também que uma coisa é a sociedade em geral. Outra coisa é o Governo. Nem sempre o Governo está em sintonia com a sociedade em geral. Por exemplo, um Governo que se preocupe com a situação do mercado financeiro, que esteja muito sintonizado com o mercado financeiro pode achar que ciência não é importante. Pode achar que indústria também não seja muito importante para o País. Por isso, acho que a ampliação e o apoio à ciência e inovação tecnológica está ligada a uma transformação de política que é mais geral. Isso implica em muita coisa. Implica em reduzir a desigualdade do país, de modo que a gente possa aproveitar mais os cérebros que estão desperdiçados. Implica em política industrial adequada. Implica em querer um protagonismo internacional baseado no conhecimento, que é o grande poder no mundo de hoje. E não é baseado em venda de ativos pra equilibrar o orçamento. É uma mudança de orientação política. É um plano de estado para o País. Fica difícil de discutir essa questão só do ponto de vista da ciência. Não se trata só da ciência. Trata-se de pensar num novo Brasil, de ter um projeto nacional.
DCOM/UFCA – O senhor acha que essa falta de uma política de estado de desenvolvimento da ciência e da educação e de várias outras áreas que repercutem nisso é um dos entraves para que a gente não tenha conseguido avançar mais como Israel, por exemplo, que tem uma organização bem recente e já avançou bem mais, como o senhor falou na palestra?
Luiz Davidovich – Acho que existem vários elementos e um dos elementos importantes é a desigualdade. Isso é um traço importante da sociedade brasileira que tem que ser eliminado para que o Brasil possa progredir. Existem outros traços culturais também. Você tem que ter uma formação muito boa em educação básica e educação superior, que existe lá em Israel. Você tem que ter um comprometimento das pessoas com a sociedade, com o país muito alto. E tem que ter certos traços culturais. Por exemplo, países que se destacam em inovação não têm medo do erro, da falha. Um indivíduo que abre uma empresa e vem à falência tem muito mais chances de fazer uma empresa que não dê falência do que alguém que nunca fez nada. O erro é considerado parte do processo de inovação. E acho que nós temos que desenvolver essa cultura aqui no Brasil também.
DCOM/UFCA – Boa parte do conhecimento científico produzido no Brasil vem da educação superior, em especial da educação superior pública. Quais são os principais desafios para o futuro da ciência, em especial na educação superior no Brasil?
Luiz Davidovich – Eu acho que a educação superior tem que passar por uma reforma profunda no País. Nosso sistema universitário vem de 1969, essa atual organização da universidade por departamentos. É muito tempo sem que haja mudanças profundas. Já temos exemplos ótimos de universidades que estão fazendo currículos contemporâneos, como é o caso da Universidade Federal do ABC e a Universidade Federal do Sul da Bahia, que procuram fazer currículos mais interdisciplinares, com mais liberdade para o estudante, com mais percursos do que cursos. Percursos que dependem da vocação e do interesse de cada estudante, orientado pelos professores. Mas, em geral, os nossos currículos são obsoletos. Os cursos são demasiadamente especializados. O estudante já entra na universidade sendo especializado numa carreira desde o início. O primeiro período da universidade deveria ser o período para tomar contato com o conhecimento. Momento de adquirir conhecimento amplo. E depois se especializa. Deveria ser uma formação por ciclos. Há muito tempo estamos batalhando por isso no Brasil sem sucesso. E o conservadorismo vem do Governo? Não. Vem da nossa própria comunidade que reage a essas mudanças.
A diversificação do ensino superior também é importante. Nem tudo tem que ser universidade. Não é assim em outros países. Tem universidades, tem institutos tecnológicos, tem colégios universitários, que podem estar ligados à universidade. Tem muita coisa pra discutir e progredir na educação superior. Acho que estamos atrasados nisso. A Universidade de Harvard, a cada 15 anos, muda completamente o seu programa e aqui estamos com a mesma estrutura desde 1969. São 48 anos. Daria pra fazer três grandes revoluções na educação superior e não fizemos. Existe esse conservadorismo no Brasil que atrasa o País. Uma parte está no Governo, mas parte dele está na própria comunidade acadêmica que paradoxalmente é conservadora. Não deveria ser, porque a gente cria ciência, a gente cria inovação, mas, na estrutura, a gente é muito conservador.
Agora, um desafio maior para o Brasil está com a educação básica, começando com a educação fundamental e até antes disso com a aprendizagem infantil. Em outros países, a educação básica serve para equilibrar os estudantes, no sentindo de remover as diferenças que vêm do berço em que nasceram. No Brasil, pelo contrário, a educação básica reforça essas diferenças. Tem a escola para comunidades, para a classe média. O Brasil precisa rever isso. Ter um ensino de qualidade é uma questão essencial republicana, da democracia, da constituição de um país. Para mim, um dos maiores desafios do Brasil, se não for o maior, é com a educação básica. Dar uma educação que dê uma igualdade de oportunidades para todos os brasileiros e brasileiras.