Em entrevista para a Revista Fapesp, a física e Acadêmica, homenageada em congresso mundial de química, fala sobre sua pesquisa, iniciada na década de 1960, em estruturas moleculares por meio de difração de raios X. Confira abaixo o texto na íntegra e, aqui, o link para a matéria original.
Yvonne Primerano Mascarenhas colocou os pés pela primeira vez em São Carlos em fevereiro de 1956, com o primeiro filho no colo e a segunda filha na barriga. Para quem vinha do Rio de Janeiro com a família, era uma aventura chegar à pequena cidade do interior paulista. Gastavam-se 24 horas a bordo de dois trens diferentes – a estrada asfaltada terminava em Rio Claro, a 65 quilômetros de São Carlos. Paulista de Pederneiras, Yvonne tinha concluído duas graduações, uma em química e outra em física, poucos anos antes na Universidade do Brasil, atual Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela e o então marido, o físico carioca Sérgio Mascarenhas de Oliveira, tinham sido contratados como professores do nascente campus da Universidade de São Paulo (USP) na cidade, que na época tinha apenas uma escola de engenharia.
Ao longo das décadas seguintes, Yvonne e o marido teriam um papel crucial na criação do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP) e na transformação do campus da cidade em um dos mais importantes polos de pesquisa da América Latina. Combinando seus interesses em química e física, ela se tornou a matriarca da cristalografia no país, ensinando gerações de alunos a investigar a estrutura dos mais variados tipos de moléculas. A cristalografia consiste no uso da difração de raios X para determinar tanto a estrutura molecular de uma substância quanto sua estrutura cristalina, que se refere ao empacotamento das moléculas no cristal. Por meio dessa técnica, um feixe de raios X incide sobre o cristal e gera outros feixes; os valores dos desvios desses feixes indicam as posições dos átomos da molécula.
Aos 86 anos, com quatro filhos, 10 netos e sete bisnetos, ela continua publicando artigos científicos. Um dos recentes trata de uma substância extraída das folhas do jaborandi com ação contra o verme causador da esquistossomose. Outro trata da caracterização de uma proteína isolada da bactéria Bacillus thurigiensis que poderia ser usada como inseticida.
Em julho, Yvonne foi uma das 12 cientistas a receber o prêmio oferecido pela União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac) a mulheres com realizações de impacto na pesquisa em química ou engenharia química. Ela recebeu Pesquisa FAPESP em seu laboratório da USP em São Carlos poucos dias antes de viajar para São Paulo para receber o prêmio na abertura do 46º Congresso Mundial de Química da Iupac.
Qual o significado desse seu primeiro prêmio internacional?
Foi interessante porque, embora eu trabalhe num instituto de física, minha atividade é interdisciplinar. Lido muito com os químicos e a química foi a minha primeira graduação. Minha relação com a química começou quando eu estava com 14 ou 15 anos e fazia o curso clássico [na época, uma das variantes do atual ensino médio] num colégio particular muito bom, o Mello e Souza, no Rio de Janeiro. Nessa época meu grande amor era pelas letras. Eu pensava em fazer letras clássicas e planejava aprender grego assim que chegasse à faculdade. Os alunos do clássico tinham disciplinas como latim, literatura portuguesa e brasileira, francês etc. e também aprendiam o essencial de física, química e matemática. Foi então que cursei a disciplina de química com um professor jovem, médico de formação, Albert Ebert [1916-2016]. Foi ele que despertou meu interesse sobretudo pela química orgânica.
O que chamou sua atenção?
Foi a possibilidade de estudar os compostos que formam todas as substâncias, inclusive os seres vivos, e a maneira muito lógica como o professor Ebert apresentava tudo isso. Com ele, vi diante de mim um universo de aplicações, uma ciência extremamente importante. Logo que me formei, Ebert me ajudou a arrumar um emprego no Liceu Franco-Brasileiro, no Rio. Anos depois ele se tornou diretor da Faculdade de Educação da UFRJ.
Quando a senhora estava na graduação, em 1953, foi desvendada e publicada a estrutura da molécula de DNA com base no trabalho de cristalografia de uma química britânica, Rosalind Franklin. Como esse fato chegou até vocês? Teria sido uma inspiração para se tornar cristalógrafa?
Minha introdução à cristalografia ocorreu de um jeito mais simples. No curso de química, a disciplina de cristalografia era dada por professores do curso de história natural, mineralogistas que usavam apenas técnicas ópticas, com luz visível, para analisar e classificar os minerais. Por sorte, Elisiário Távora tinha começado a lecionar um ano antes na UFRJ, depois de fazer o doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) com um grande cristalógrafo, Martin Buerger. Távora chegou com as ideias fresquinhas da cristalografia moderna e aí sim realmente vi a potencialidade da área, com o uso de técnicas como a difração de raios X. No início eu sabia muito pouco de biologia e bioquímica; a físico-química é que me impressionava, tanto que fui fazer graduação em física porque achei que precisava disso para me inteirar melhor dessa área. Naquela época era muito difícil obter a estrutura de moléculas com difração de raios X, mas essa possibilidade ficou na minha cabeça como algo que valia a pena tentar. Quando eu e Sérgio viemos para São Carlos, em 1956, encontramos um bom laboratório de ensino de física, com equipamentos de origem alemã, e um aparelho de raios X médico no porão. Sérgio conseguiu trocá-lo por outro, mais adequado aos nossos objetivos, e começamos a fazer experimentos para obter a orientação de monocristais. Depois, em 1959, fui com Sérgio, que já era professor catedrático, para a Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, e fiz um estágio de pesquisa em cristalografia. Foi lá que comecei a usar técnicas de análise usando monocristais e aprendi a interpretar os difratogramas [diagramas de difração de raios X em cristais] e a usar computadores, que ainda eram muito simples e enormes. Usávamos cartões perfurados para inserir os dados experimentais e realizar uma parte do cálculo com os programas disponíveis nessa época, depois outra parte com outros cartões, e assim por diante. Cada cartão tinha uma perfuração na última coluna para indicar que precisávamos somar o resultado com o do próximo cartão.
Por que os monocristais são importantes?
Para conhecer a estrutura de uma molécula, temos de obter um monocristal a partir de uma solução. Um monocristal bom possui uma forma geométrica de acordo com a sua simetria e é transparente, mas deve ser pequeno. Cada vez mais, é possível usar cristais menores, com até centésimos de milímetro, à medida que melhoram as fontes e detectores de raios X.
A interpretação das imagens de cristalografia parece ter um quê de intuitiva ou até artística. Essa impressão está certa?
Não é nem artística nem intuitiva. Temos uma porção de informações a partir da difração dos raios X pelos elétrons do material. No início a determinação de estruturas era feita pelo método de tentativa e erro, propondo-se um modelo para a estrutura e calculando as intensidades dos feixes difratados; se concordassem com os dados experimentais se estabelecia a veracidade do modelo. Depois foram criados vários métodos para o tratamento dos dados experimentais. O primeiro era o método do átomo pesado. Um átomo relativamente mais pesado de uma molécula vai dominar a difração e dar um pico no mapa de densidade eletrônica, calculado a partir das intensidades dos feixes difratados, e isso é uma pista sobre a estrutura molecular. A partir daí se consegue calcular os mapas de densidade eletrônica e atribuir os picos que vão sendo obtidos a átomos leves, como oxigênio e carbono. É óbvio que esse processo só começou a funcionar com eficiência com a ajuda de computadores; antes todos os cálculos eram feitos à mão com máquina de calcular. Hoje o maior problema é obter um bom cristal. Vale a regra GI = GO, ou seja, garbage in, garbage out [“se entra lixo, sai lixo”]. Com bons cristais e bons programas para obter a estrutura a partir de dados experimentais de difração de raios X, é cada vez mais fácil estudar moléculas pequenas, com até 200 átomos, sem contar hidrogênios. Para macromoléculas como as proteínas, ainda existe o problema de como purificar, obter monocristais e inserir átomos pesados; às vezes, levam-se anos tentando todo esse processo, o que é indispensável para determinar a estrutura molecular. Por sorte, hoje existem equipamentos automáticos que ajudam muito a preparar soluções variando simultaneamente vários parâmetros, tais como a acidez, a viscosidade e o solvente.
Um bom cristal também é esteticamente atraente?
Sem dúvida é! Eu os observo ao microscópio e considero bons os que não têm defeito. Às vezes, o cristal tem forma externa bonita, mas defeitos que complicam a análise, ou então é geminado, o que também atrapalha. Uma estrutura desejável é a que aparece quando a distribuição das celas unitárias [as unidades cristalográficas com forma e simetria definidas que compõem o cristal] é a mais perfeita possível. Defeitos sempre existirão, mas a prova final de que o cristal é bom vem quando usamos o feixe de raios X e obtemos dados que permitem determinar, sem sombra de dúvida, uma cela unitária com simetria definida. Há cristais de quartzo e outros materiais com muitas geminações em formatos maravilhosos, mas que não servem para a análise da estrutura molecular nem para aplicações tecnológicas.
Quais são seus trabalhos mais importantes?
As estruturas que eu estudei foram importantes para os químicos ou físicos, com quem sempre colaborei. Lembro de uma colaboração com Otto Gottlieb [químico tcheco radicado no Brasil, 1920-2011], que trabalhava com compostos obtidos de plantas no Instituto de Química da USP e na UFRJ (ver Pesquisa FAPESP no 43). Ele estudava as substâncias da planta Aniba gardineri e não conseguia esclarecer o mecanismo de dimerização [formação de uma estrutura dupla, pela união de duas unidades similares] de uma de suas moléculas, a 5,6-dehidrocavaína. Gostei muito de fazer esse trabalho, porque Otto ficou feliz quando viu o resultado. Ele tinha muito interesse nas plantas da família Lauraceae, que apresentam uma grande diversidade de usos medicinais e industriais. O primeiro trabalho que fiz nos Estados Unidos foi a determinação da estrutura molecular de um barbiturato, o ácido violúrico. A determinação de sua estrutura apresentou um resultado inédito na área de ligações de hidrogênio, devido ao fato de uma molécula de água de cristalização apresentar uma ligação bifurcada, isto é, um de seu hidrogênios faz ligação com dois átomos diferentes da molécula de ácido violúrico. Por essa razão o artigo publicado teve um número razoável de citações. Esse é a meu ver mais um exemplo de um achado científico proporcionado pela boa sorte! Outro trabalho que considero importante foi a determinação da estrutura da oxitocina, hormônio de grande importância biológica, durante uma visita ao Departamento de Cristalografia do Birbeck College, em Londres, em colaboração com Sir Tom Blundell. Passei a me interessar na caracterização de materiais semicristalinos ao participar do INCT [Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia] em polímeros condutores, coordenado por Roberto Mendonça Faria, aqui do IFSC. Durante o doutoramento de meu aluno Edgar Sanches, conseguimos esclarecer vários detalhes da polianilina, tanto sob sua forma condutora como isolante. Meu interesse por produtos naturais ressurgiu quando coordenei para a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] o projeto Avanços, Benefícios e Riscos da Nanotecnologia Aplicada à Saúde no âmbito da rede NanoBiotec que versou, em parte, sobre substâncias de origem natural com ação farmacológica. Uma das plantas estudadas foi o jaborandi. Um dos componentes extraídos de suas folhas já está em uso medicinal, para tratamento de problemas oftálmicos. Entretanto, o resíduo da extração, constituído por outros componentes da planta diluídos em solventes orgânicos, não deveria ser simplesmente jogado no ambiente. Veio daí a ideia de analisar todos os compostos do extrato em busca de outras substâncias com propriedades interessantes. Esse era o tema de um grupo de pesquisa do campus de Delta do Parnaíba da Universidade Federal do Piauí, onde realizamos um dos nossos workshops. Incidentalmente notei que os pesquisadores desse grupo estavam entregando amostras de um desses componentes do resíduo para Ana Maria da Costa Ferreira, professora do Instituto de Química da USP, e perguntei: “Vocês sabem a estrutura dessa molécula?”. Então eles disseram: “A gente adoraria saber, mas não temos monocristal aí dentro”. Olhando o pó dentro do vidro, vi partículas brilhando, o que significava que havia cristais ali, sim. Eles permitiram que eu trouxesse para São Carlos uma amostra dessa substância, que atua sobre o verme Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose. Usando os monocristais que de fato existiam no pó, determinamos sua estrutura. Como a forma natural dela não é o ideal para a administração como fármaco, por ser insolúvel em água, Ana Maria sintetizou vários derivados dessa substância, complexando-a com zinco e cobre, o que a torna mais solúvel em água. As estruturas moleculares desses complexos também foram determinadas em nosso grupo. A partir, em grande parte, do grupo de cristalografia de nosso instituto, formaram-se muitos mestres e doutores, que, por sua vez, orientaram seus próprios alunos. Existem hoje cerca de 100 pesquisadores com sólida formação em cristalografia estrutural em várias universidades e centros de pesquisa no Brasil.
Seu prêmio no congresso da Iupac era dirigido para mulheres cientistas. Como vê as dificuldades de participação das mulheres no mundo da pesquisa?
As universidades mais tradicionais do mundo negavam o ingresso das mulheres até meados do século XX. Na Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ, esse tipo de barreira não existia, embora houvesse um número reduzido de mulheres nos cursos de ciências exatas; havia mais no curso de química do que no de física. Ainda hoje, por razões a meu ver históricas e culturais, os homens é que ocupam os cargos de liderança e decisão, e a sociedade é feita de maneira a conservar o poder nas mãos dos grupos dominantes. Uma amiga minha ficou muito revoltada quando os integrantes de uma banca de um concurso que ela estava prestando, longe daqui, perguntaram como ela resolveria o fato de o marido dela já ser professor em São Carlos. É o tipo de coisa que ninguém perguntaria a um candidato homem. Costumo dizer que a luta pelos direitos das mulheres, em tese, já foi vencida. A questão é aprender a exercer esses direitos. Na política e no governo, a maioria de nossos representantes são homens. Em quem as mulheres votam? Em geral em homens, como o resultado das eleições revela claramente.