O químico Pierre Mothé acha que o país perdeu década de ouro e já cogita hipótese de trabalhar fora. Foto: Fernando Lemos
Cinco anos atrás, o químico Pierre Mothé Esteves estava otimista quanto aos rumos da ciência brasileira. O professor da UFRJ considerava que o país vivia “uma década de ouro” e seria até mesmo um potencial destino para colegas estrangeiros, devido à qualidade dos trabalhos desenvolvidos aqui. Com o passar do tempo, o cientista mudou de opinião. Irritado com a queda de recursos para a produção de conhecimento, agora, é Esteves quem cogita fazer as malas e se mudar para fora do Brasil.
Grande parte dos pesquisadores compartilha da inquietação de Esteves. Eles lamentam o cenário nacional da ciência, duramente afetado pela crise financeira dos cofres públicos, que começou a se agravar em 2015. O otimismo vivido no início da década deu lugar a críticas e consternação.
Em dezembro de 2011, O GLOBO entrevistou 112 profissionais da área, quase unânimes em sua satisfação com os programas de incentivo à pesquisa. No segundo semestre do ano passado, o jornal procurou cem membros da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Entre os sinais do descontentamento está a vontade de deixar o país – 23 cogitam essa hipótese, seis já foram embora e a maioria dos demais alega que só permanece no Brasil devido a questões familiares, financeiras ou falta de contato com instituições estrangeiras. Para 76 dos entrevistados, o apoio e o reconhecimento dos governos às pesquisas ficou pior em comparação com o início da década. Apenas seis deles dizem receber recursos públicos suficientes. Para 64 participantes, os obstáculos para conseguir insumos essenciais atrasa ou mesmo inviabiliza os trabalhos. Somente oito não sentem esta dificuldade.
Já andei olhando posições acadêmicas em outros países – diz o químico Esteves. – Fico preocupado com o fato de ter que mendigar para sobreviver cientificamente. Não vou perder minhas melhores ideias por conta de patriotismo. Não dá para ficar apanhando para sempre em casa, enquanto somos muito bem-vindos em outros cantos do mundo.
Permanência no país é uma “teimosia”
O discurso do professor e pesquisador da UFRJ é diferente, porém, da convicção de alguns cientistas que, embora reconheçam as muitas dificuldades, defendem a permanência no Brasil.
Não estou bem aqui, fazer pesquisa é quase uma teimosia no Brasil – reconhece o professor Gustavo Batista Menezes, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. – Mas, desde que voltei do exterior, em 2009, decidi fazer de tudo para criar condições de estudo e tentar alavancar o país. Estamos conseguindo.
Com a crise econômica, os laboratórios brasileiros perderam força. Dos 100 entrevistados, 62 avaliam que o país está captando menos talentos internacionais do que em 2011. Para 21, esta realidade permanece inalterada. Apenas 13 acham que a ciência nacional está mais atraente para os de fora. Quatro não opinaram.
No levantamento, O GLOBO ouviu cientistas renomados, como o físico Paulo Artaxo Netto, professor da USP e um dos pesquisadores brasileiros de maior influência no mundo, segundo a Thomson Reuters; o matemático Artur Ávila, único brasileiro a receber a Medalha Fields, considerada o Nobel da área; e os neurocientistas Jorge Moll, Suzana Herculano-Houzel e Stevens Rehen.
Este é um momento de crise para a ciência brasileira. Nos últimos anos, perdemos uma grande oportunidade de acelerar nosso desenvolvimento científico. Agora a questão é não andar para trás – comenta Ávila, que é diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França e pesquisador do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio. – Há alguns anos, o Brasil se mostrava como uma possibilidade real de destino para estrangeiros buscando alternativas a um mercado saturado nos países com mais tradição na área. Alguns realmente vieram, mas essa dinâmica foi interrompida, e mesmo revertida recentemente. No momento precisamos lutar para não perder talentos.
Desde 2015, pesquisadores veteranos e cientistas iniciantes convivem com atrasos de pagamento, ameaças e cortes efetivos de verba. Esta realidade é observada tanto em órgãos federais, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), quanto estaduais, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj). Segundo a Academia Brasileira de Ciência (ABC), o orçamento para 2017 aprovado pelo Congresso prevê um corte da verba destinada a bolsas do CNPq, de R$ 1,3 bilhão para R$ 1,1 bilhão. E, mesmo assim, condicionado à arrecadação.
Recursos são essenciais para pesquisas, e muitos acreditam que os impactos dessas reduções serão sentidos mais adiante. Três em cada quatro cientistas procurados pelo jornal consideram que a área perdeu respaldo e reconhecimento por parte do poder público. Mas, para 47 deles, o nível de relevância da produção científica no país se manteve, em comparação com o início da década. Para 35, o Brasil até melhorou nesse sentido, enquanto 11 veem queda de produtividade.
A união dos ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) com o das Comunicações, em maio de 2016, irritou a comunidade acadêmica. Entre os 100 consultados, 84 se posicionaram de forma contrária à fusão. O professor Mirco Solé, do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia), porém, não concorda com esta maioria:
Parece consenso a necessidade de diminuir o número de ministérios. Mas é aqui que entra um reflexo da hipocrisia: “Tem que cortar, mas não o meu!”- comenta ele.
O interesse da iniciativa privada em ciência, tecnologia e inovação também é encarado com ceticismo. Dos entrevistados, 19 avaliam que há mais empenho das empresas pelo desenvolvimento científico, enquanto 28 dizem que as companhias estão mais distantes dos laboratórios. Para 42, o interesse – ou a falta dele – é semelhante. Segundo o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), metade dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil vem da iniciativa privada. Em países como China, EUA e Coreia do Sul, o percentual passa de 60%.
A indústria brasileira parece não entender a inovação como uma necessidade imposta inclusive pelo mercado. Há, no geral, uma visão provinciana. Não se vê benefícios de contratar cientistas – lamenta Rafael Roesler, professor do Departamento de Farmacologia da UFRGS.
Vamos trabalhar por melhorias, diz ministro
Para a ABC, o esvaziamento dos cofres ficou evidente no fim do ano passado, em uma alteração da Lei Orçamentária Anual aprovada pelo Congresso. A medida criou uma nova fonte de financiamento que pode retirar até R$ 1,7 bilhão da verba que seria destinada a ciência, tecnologia e inovação. O titular do MCTIC, Gilberto Kassab, avalia que o Legislativo cometeu um “equívoco”, mas que a decisão não comprometerá o orçamento da pasta para este ano.
O governo tem a prerrogativa de fazer um planejamento com seus recursos, e haverá um remanejamento das fontes retiradas para a ciência – assegura. – Sem recursos para abrigar os cientistas, certamente podemos perdê-los (para o exterior). Mas a comunidade científica está plenamente consciente de sua prioridade. Há muita vinculação entre a ciência e o desenvolvimento econômico. Vamos trabalhar por uma melhoria no setor.
Leia aqui a matéria original no site do jornal O Globo e aqui, o pdf da matéria impressa.
Veja ainda a matéria publicada em 09/01 no mesmo jornal, redigida também por Renato Grandelle, intitulada “Para pensar no futuro“.