“Durante a infância sempre fui muito curiosa, ávida por novidades, e, dessa forma, me interessava mais por matérias mais investigativas, como aquelas que envolviam experimentos em laboratório ou com atividades práticas bem diversas, como física e biologia, que sempre foram as mais atrativas. “

A descrição acima não poderia ser de outra profissional, se não de uma pesquisadora. Marcia Kauer SantAnna, gaúcha de Porto Alegre, levou essa curiosidade da infância para a medicina, e hoje é uma dos novos membros afiliados da Academia Brasileira de Ciências (ABC) para o período 2016-2020, graças às suas pesquisas sobre as alterações biológicas do transtorno bipolar.

Enxergando por outros olhos

Mas o contato mais efetivo de Marcia com a ciência surgiu na 5ª série do ensino fundamental, quando participou de um estudo sobre a anatomia, dissecando olhos de peixes, bois e porcos para uma feira de ciências na escola. “Foi uma experiência gratificante e talvez tenha contribuído, entre outros fatores, para escolha da medicina mais adiante.

Durante a faculdade de medicina, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), começou a participar da iniciação científica no segundo semestre no grupo de pesquisa do Acadêmico Ivan Izquierdo. “Certamente essa experiência foi determinante para que a curiosidade já presente pudesse se traduzir em uma iniciação científica de fato, que foi fundamental no desenvolvimento da minha carreira”, conta a pesquisadora.

Participando de estudos sobre os mecanismos da memória, sob orientação do Prof. Izquierdo, Kauer começou a se interessar pela área de psiquiatria dentro da medicina. “Durante a segunda metade da faculdade, os trabalhos de pesquisa em conjunto com área clínica e com o Prof. Flávio Kapczinski ajudaram a definir a escolha pela psiquiatria e também pela pesquisa”, relembra.

Após a iniciação científica e a residência em psiquiatria, a nova afiliada conseguiu entrar diretamente no doutorado. Na UFRGS, conseguiu bolsa na pós-graduação em bioquímica com estágio doutoral no exterior, que realizou no Centro de Transtornos de Humor da Universidade de British Columbia, em Vancouver, no Canadá. “Este período permitiu o aprimoramento dos meus estudos na área do transtorno do humor, elevando a qualidade das publicações e a relevância do material produzido”, reconhece a médica. Ainda, os prêmios internacionais e verbas de pesquisas obtidas neste período contribuíram para atingir uma produtividade competitiva para obter uma posição acadêmica como professora adjunta do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRGS no seu retorno ao Brasil.

Atualmente, Marcia Kauer se dedica a estudar as alterações biológicas do transtorno bipolar. “O estudo de marcadores biológicos neste transtorno já contribuiu para desenvolvimento de novas opções terapêuticas e para o entendimento de como a doença evolui”, explica Marcia. Outra contribuição importante, segundo a cientista, tem sido a percepção de que os pacientes mais recentes são diferentes daqueles que sofrem da doença há muitos anos. “Isso ajuda a direcionar o tratamento para a fase específica da doença e aumenta a chance de acerto e boa resposta”, acrescenta. “Além disso, essa compreensão de que a doença progride ao longo dos anos aumenta a relevância do tratamento desde cedo e a manutenção adequada para evitar esta piora. “

Os estudos desenvolvidos pelo grupo de Marcia Kouer também têm revelado que as pessoas que sofrem de transtorno bipolar são mais vulneráveis ao estresse, o que pode gerar recomendações de mudanças de estilo de vida para pacientes, além de talvez explicar os motivos da progressão da doença com o passar dos anos.

Ciência para um mundo melhor

A área da psiquiatria e das alterações do humor ainda tem sua fisiopatologia pouco conhecida e é carente de intervenções clínicas mais eficazes, de modo a evitar sofrimento aos pacientes. “Essa possibilidade da descoberta científica criativa e inovadora traduzir-se em um real avanço do conhecimento e consequente alívio do sofrimento ou melhora da qualidade de vida de pacientes e famílias é muito atraente e desafiadora para mim”, declarou Marcia.

Quanto ao título de membro afiliado da ABC, Marcia diz que representa uma grande honra, um reconhecimento à sua dedicação à carreira científica e, principalmente, um estímulo importante para continuar e ampliar a troca com pares, desenvolver ainda mais sua linha de pesquisa e a interação com a comunidade. “Entendo que a atuação junto à Academia transcende a atuação na linha de pesquisa individual, propiciando colaborações e interações que culminem no avanço do conhecimento e inovação, assim como a atuação no cenário político-institucional.”