Apesar da bem-sucedida trajetória de expansão e descentralização observada desde a década de 90, o país corre o risco de não cumprir suas metas para a formação de mestres e doutores nos próximos anos. O corte de verbas por parte do governo federal já começa a se refletir com mais força nos centros de pesquisa das universidades, de acordo com o relato de dirigentes, especialistas e alunos da pós-graduação ouvidos pelo Valor.

O alerta preocupa porque os recursos tiveram papel fundamental para viabilizar o bom desempenho observado nas últimas décadas. Entre 1996 e 2015, quando a titulação de doutores cresceu mais de 400%, a verba destinada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para bolsas e fomento à pesquisa mais que quadruplicou – de R$ 534,5 milhões para R$ 2,4 bilhões. Em 2016 até junho, o investimento acumulado é de R$ 1 bilhão, de acordo com o CNPq.

Relatos de redução no número de bolsas já aparecem em Estados como a Paraíba, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte, onde a titulação de mestres e doutores cresceu mais que a média nacional desde os anos 90, época em que a região Sudeste era a única opção nacional para se cursar um mestrado ou doutorado.

Na Universidade Federal da Paraíba, cerca de 50 bolsas de mestrado e doutorado foram suspensas em 2016, afirma Isac Almeida de Medeiros, pró-reitor de pós-graduação e pesquisa, que se diz preocupado. “Tivemos aumento de bolsas até 2014. Em 2015 não houve cortes nem alta. Mas este ano ainda há cerca de 4 mil bolsas que precisam ser retomadas pelas instituições brasileiras”, diz.

Glaucius Oliva, que foi presidente do CNPq entre 2011 e 2015, prevê que se o governo continuar a cortar bolsas e programas de apoio à infraestrutura necessária à pesquisa acadêmica o Brasil não cumprirá o objetivo de elevar, até 2020, de 16 mil para 25 mil os doutores titulados anualmente no Brasil. A meta está prevista no Plano Nacional de Educação, criado em 2014, e no Plano Nacional de Pós-Graduação, de 2011.

“Até o ano passado, o crescimento estava no ritmo necessário [para cumprir a meta]. Só que, com o corte de bolsas e recursos que se avizinha com o ajuste fiscal, isso pode ser reverter facilmente”, diz Oliva, que acompanhou de perto os “anos dourados” da expansão dos programas de pós-graduação. O acadêmico afirma que só no programa de física da USP de São Carlos, onde é professor titular, houve redução de 15% nas bolsas do programa este ano. É a primeira vez que as bolsas encolhem. “Se perdemos bolsas, teremos menos alunos saindo da pós-graduação nos próximos anos”, diz.

Em março, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) bloqueou o acesso de estudantes a 7 mil bolsas em todo o país. À época, o argumento da Capes foi de que as bolsas estavam “ociosas” após o mês de março, e seriam analisadas para a “recomposição gradual”.

Medeiros, da Federal da Paraíba, explica que as bolsas não estavam desocupadas, mas apenas em processo de transferência dos alunos que defenderam suas teses de doutorado, em março, para os novos alunos que chegariam aos programas nos próximos meses. “Estamos ainda esperando que a Capes retorne mais de 50 bolsas para nós”, afirma.

Oliva, ex-CNPQ, destaca que, mesmo nessa época de transição, o recurso das bolsas é essencial para o custeio dos programas. “Nesses meses de transição das bolsas de uma turma para a outra, como os programas de pós-graduação tinham autonomia, eles costumavam usar os recursos pra fazer os investimentos necessários até que os novos alunos ingressassem”, afirma o pesquisador, que destaca que a decisão de fazer um doutorado é muito sensível à perda de recursos. “São programas de dedicação exclusiva. Se você diz a um jovem de 25 anos que ele não tem bolsa para doutorado, a tendência é que ele volte para o mercado de trabalho”, afirma Oliva.

Medeiros, da UFPB, reclama também da recente interrupção de programas de apoio à melhoria da infraestrutura dos cursos de pós-graduação, como o Pró-Equipamentos, descontinuado em 2014. “Não tivemos em 2014, nem 2015”. “Conversamos com o presidente da Capes e ele disse que fará todo o possível para retomar o programa”, diz o pró-reitor, que destaca o Pró-Equipamentos foi fundamental para o crescimento da pós-graduação na Paraíba.

Dados levantados pelo CNPq a pedido do Valor, mostram que, a exemplo das vagas, a concessão de recursos para a pós-graduação no país entre 1996 e 2015 também cresceu em ritmo acelerado. Os recursos no período cresceram 643% na região Norte, 546% na região Nordeste, 470% no Centro-Oeste, 222% no Sudeste e 345% na média nacional. Entre 1996 e 2014, último dado disponível, o número de doutores formados no país cresceu impressionantes 486%.

Luiz Soares de Oliveira, analista pesquisador da Fundação de Economia e Estatística (FEE) do Rio Grande do Sul, destaca que o “boom” de mestres e doutores observado nas últimas décadas foi liderado pelas universidades federais. Só no Rio Grande do Sul, são sete universidades e três institutos federais. “A pós-graduação no Brasil é concentrada nas universidades federais. Tem universidades particulares que têm produção significativas, mas estão distantes no ranking das federais”, afirma Oliveira. Entre 1996 e 2014, os programas de pós-graduação de instituições privadas elevaram sua participação de 7,3% para 10,6% das formações de doutorado, de acordo com dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). A fatia das federais, no mesmo período, subiu de 37% para 56,1%.

Já as instituições estaduais perderam participação no doutorado nacional, caindo de 55,7% para 33,2%. As exceções, destaca Oliveira, são as universidades paulistas. “USP e Unicamp são as duas que mais formam mestres e doutores no Brasil. Mas o Estado de São Paulo se beneficia de uma lei criada na década de 50, que determina que uma cota do ICMS seja destinada às universidades estaduais”, diz.

Dados do FEE-RS apontam que, entre 2003 a 2010, o número de campi de instituições federais em todo o país aumentou de 148 para 274.

Entre as medidas que contribuíram para o aumento no número de doutores, Oliveira destaca a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, que exigia que um terço do corpo docente das universidades tivesse mestrado ou doutorado, e estimulou a demanda por mais cursos.

“O Rio Grande do Sul também foi beneficiado por todo esse arcabouço”, diz o pesquisador.

Outra política importante, na visão de Oliveira, foi o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), de 2007, que abriu novas universidades e campi pelo país e demandou a contratação de professores titulados. “Todo esse conjunto de medidas, desde a LDB, foi o marco jurídico que criou as condições para que a pós-graduação se disseminasse para além do eixo Rio-SP”, afirma Oliveira.

Rubens Maribondo, pró-reitor de pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, diz que a partir dessa época as universidades passaram a contratar o contingente de mestres e doutores formados no Sudeste e no exterior, as duas opções existentes para os acadêmicos brasileiros à época. “Até então, não havia professores com título de doutor no Nordeste”, afirma. “Quando esses professores voltaram do doutorado e começavam a trabalhar, já não estavam satisfeitos em dar aula só na graduação”, diz Maribondo. “A partir daí, a UFRN começou a contratar pensando em fortalecer na pós-graduação”, afirma. Hoje, a UFRN tem 122 cursos de pós-graduação e 41 doutorados, com destaque para as pesquisas em engenharia.

Glaucius Oliva, ex-CNPq, destaca também a relevância dos Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia, criados em 1999 para serem fontes complementares
no desenvolvimento de setores estratégicos, e que se tornaram os principais instrumentos de financiamento de projetos de pesquisa e inovação. “A lei que criou os fundos setoriais destinava 30% dos recursos para serem aplicados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Isso catapultou o investimento de recursos além do Sudeste”. Oliva estima que, na época em concluiu seu doutorado em Londres, em 1988, outros 5 mil pós-graduandos brasileiros estavam no exterior com bolsas da Capes.

Mesmo em outros tempos de crise econômica, diz Maribondo, os recursos da pós-graduação foram protegidos em detrimento de outras áreas, como opção estratégica da UFRN. “Entendemos que isso é o que vai fazer com que a universidade não pare de crescer”, diz. No ano passado, quando os repasses federais já estavam em queda, a área se manteve protegida no orçamento. “No ano passado elevamos o orçamento da pós-graduação em 10%, e cortamos custeio. Este ano, criamos um fundo de R$ 1 milhão para financiar ações de excelência na pós, voltado para a internacionalização”, diz o pró-reitor. “Um dos focos, inclusive, é fortalecer a pós-graduação nas universidades do interior”, afirma. Além da UFRN, em Natal, o Estado tem a Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), em Mossoró, e institutos federais em Caicó.

Para Oliva, a interrupção de programas de pós por falta de recursos não acontecerá sem deixar graves sequelas de longo prazo. Diferentemente de outras áreas em que pode se congelar as obras e retomar quando houver recursos, a pesquisa científica depende da continuidade dos trabalhos.

“Você pode parar as obras de uma estrada. Daqui a dois anos, quando tiver recursos, você retoma”, diz. “Mas quando você forma uma equipe de pesquisa, dali a três anos ela está toda desfeita. Demora cinco, dez anos para começar a montar equipe de novo. Cortar investimentos de infraestrutura é uma coisa. Cortar em ciência, tecnologia e inovação, é um tiro no pé”, diz Oliva.

Procurada pela reportagem, a Capes afirma que o cumprimento das metas do PNE referentes à formação de mestres e doutores não depende exclusivamente da Capes, visto que outras agências também atuam com diversos outros programas de fomento voltados a este propósito. “A Capes está acompanhando por diversos meios, inclusive via Comissão de Acompanhamento do PNPG, a evolução dos indicadores relativos às metas e, até o momento, não há evidências de que as metas não serão cumpridas”.