No ano 2000, 190 países se comprometeram a atingir oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) até 2015. Dois deles eram relevantes para a área de saúde global: reduzir a mortalidade de crianças menores de cinco anos em dois terços e a mortalidade materna em três quartos. O prazo terminou no ano passado, chegou-se ao resultado: não se conseguiu cumprir os objetivos.
A análise desses resultados foi feita pelo Acadêmico Cesar Victora, professor de epidemiologia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em uma sessão sobre saúde global na décima edição da Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências, realizada de 4 a 6 de maio no Museu do Amanhã, Rio de Janeiro. Victora, que estuda a saúde de mães e crianças, monitorou, com um grupo de trabalho, o desenvolvimento dos ODM relacionados a esse tema ao longo dos últimos anos. “Isso resultou em um countdown para 2015, uma iniciativa multi-institucional que envolveu Academias, a Organização das Nações Unidas (ONU), ONGs, sociedades profissionais etc.”
Paulo Buss (Fiocruz), Maria Inês Schmidt (UFRGS), Mauricio Barreto (UFBA) e Cesar Victora (UFPel), em sessão sobre saúde global na Reunião Magna 2016
Victora explicou que, apesar de os objetivos não terem sido alcançados, o progresso foi enorme. Nos anos 1990, de cada 1.000 crianças que nasciam, 91 morriam, um nível inaceitável, segundo o Acadêmico. Em 25 anos, esse índice caiu 53%, para 43 mortes. O objetivo era a queda de dois terços, ou seja, 67%, então o objetivo não foi alcançado. “Mas, em termos absolutos, a queda foi enorme: caiu de 12,7 milhões de mortes no mundo para 5,9 milhões.” Ainda assim, em países da Escandinávia e no Japão, por exemplo, esse índice é de três a quatro mortes por 1.000 crianças, dez vezes menor que a média mundial. “Essas crianças morrem na África e no sul da Ásia. Na América Latina, reduziu-se bastante.”
Também houve mudanças nas causas dessas mortes. Em 1990 elas se davam principalmente por pneumonia, diarreia e malária. Hoje, as causas neonatais, no primeiro mês de vida, são as complicações do nascimento prematuro. “É mais difícil resolver isso do que mortes por essas doenças, que requerem medidas mais simples”, informou Victora.
A mortalidade materna também caiu muito, mas é um evento mais raro. Em 1990, a taxa era de 400 mortes por 100 mil mães, e reduziu-se em 43%, para pouco mais de 200 – bem abaixo do Objetivo do Milênio de 75%. Essas mortes também prevalecem na África e no sul da Ásia. “Então, a maioria dos países falhou em atingir essas metas. A maior parte dos que conseguiram era de países de renda média, como Brasil e México. Algumas metas foram, de fato, muito ambiciosas, mas tivemos progresso insuficiente em termos de redução da desigualdade, pobreza, corrupção.”
Além disso, mais da metade das intervenções disponíveis não alcançam uma em cada três crianças, especialmente aquelas que requerem acesso a um serviço de saúde. “As desigualdades são fortes não apenas entre países, mas dentro dos países também, o que impede o acesso dos mais pobres às intervenções essenciais”, destacou o Acadêmico.
O cenário brasileiro
O Brasil teve uma das reduções mais altas do mundo em mortalidade infantil, caindo de quase 50 por 1.000 para 13 por 1.000. Isso se deve a alguns fatores. Em relação a métodos anticoncepcionais, em 1986, os pobres tinham uma cobertura de 15% e os ricos de 75%. Com o tempo, a dos pobres foi aumentando e hoje é quase igual à dos ricos. Outra boa notícia é que o número de partos em hospital também aumentou.
O país também praticamente erradicou a subnutrição. Hoje, todos os brasileiros têm menos de 10% de déficit de crescimento – na metade dos anos 70, os mais pobres tinham esse índice em 60%. “Isso é muito importante porque, à medida que o indivíduo está bem nutrido, cresce não apenas a estatura, mas também o cérebro.” No entanto, no caso da mortalidade materna, apesar de baixar o número, o Brasil não conseguiu atingir a meta. “Temos um milhão de abortos ilegais por ano e uma altíssima taxa de cesariana que, quando desnecessária, pode trazer problemas.”
Victora afirmou que o país está vivendo uma epidemia de nascimentos prematuros. “Em 1982, 27,7% dos partos eram cesarianas, e hoje são 63,7%. Isso está relacionado ao aumento da prematuridade, pois muitos partos são marcados para antes da hora. Hoje temos cerca de 20% de prematuridade no Brasil e passamos a ter a prematuridade como principal causa de morte de crianças no mundo.”

A falta de controle de problemas relacionados à saúde global
O Acadêmico Mauricio Barreto, professor de epidemiologia em saúde coletiva na Universidade Federal da Bahia (UFBA), falou sobre a influência de problemas estruturais, como a desigualdade, na saúde global. “Os problemas de saúde se perpetuam, surgem novos e outros ficam, saem de uma área do globo e vão para outra. Há muitos fatores envolvidos.”
Barreto citou como exemplo as doenças infecciosas. “Acharam que era problema resolvido, mas vemos a persistência de problemas clássicos como tuberculose, com incidência altíssima em áreas como o sul da África, e o surgimento de outros, como dengue e zika, muito presentes no hemisfério Sul.” Ele citou também as doenças negligenciadas, que persistem e estão muito ligadas a condições de pobreza, e afirmou que a violência é subestimada no campo da saúde. “No Brasil, a alta taxa de violência reduz a expectativa de vida e está ligada a jovens.”
O palestrante enfatizou a dificuldade de gerenciar problemas relacionados à saúde, como o cigarro. Este causa 6 milhões de mortes por ano e, ainda assim, as pessoas não conseguem controlar o hábito de fumar. “Somos totalmente incapazes de exercer esse controle. Há indicativos de que o hábito de fumar está aumentando em vez de diminuir. A indústria do fumo tem a habilidade de levar seus mercados para outros lugares para impedir que decresça o consumo.”
Outro problema desse gênero é a resistência antimicrobiana, com o surgimento de bactérias multirresistentes. “A Inglaterra vive uma epidemia de gonorreia resistente. É uma forma severa, sem tratamento porque os antibióticos não controlam. Foi causada por uma série de usos mal feitos dos antibióticos existentes.”
A complexidade em se gerenciar determinantes sociais na área da saúde está ligada às políticas sociais e condições de saúde. Segundo Barreto, os maiores gargalos são a dificuldade de integração entre as diferentes áreas do conhecimento, financiamento e questão regulatória. “Uma parte muito pequena do financiamento global na saúde fica nos países mais pobres, apenas 10% dos recursos para pesquisa. Além disso, a pesquisa em saúde é a mais regulada depois da área nuclear.”
Doenças crônicas não transmissíveis
Professora de epidemiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Acadêmica Maria Inês Schmidt apresentou um panorama das doenças crônicas não transmissíveis e como as nações as enfrentam. Segundo a palestrante, o declínio das deficiências nutricionais está sendo substituído pelo aumento do sobrepeso e obesidade, uma epidemia atualmente preocupante. “O
século XX mostrou que essas doenças crônicas se transforaram em um dos maiores problemas de saúde pública.”
Das 58 milhões de mortes em 2005, 60 a 70% foram causadas pelas doenças crônicas não transmissíveis, como mostra o gráfico ao lado. São doenças cardiovasculares, respiratórias, diabetes, câncer e outras, que têm um impacto muito grande na qualidade de vida. “Além disso, há os impactos econômicos: estudos mostram que elas podem até mesmo ameaçar o desenvolvimento das nações por causa de seu custo excessivo”, ressaltou Schmidt.
A meta da ONU é, até 2025, reduzir em 25% a mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis. Visa-se, também, reduzir em pelo menos 10% o consumo excessivo de álcool, em 30% o consumo do sal, em 30% o uso de tabaco por pessoas com mais de 15 anos e frear o aumento da incidência de diabetes e obesidade. O desafio é grande: “Em países de baixa renda, o acesso a insulina é difícil. É preciso aumentar o acesso aos tratamentos e medicamentos essenciais.”
A obesidade é mais alta em países desenvolvidos como Estados Unidos, Canadá e Austrália e incide menos em países da África, mas Maria Inês alertou que isso vai mudar rapidamente, porque já é o que se observa em países de baixa renda. A prevalência de obesidade na mulher é mais alta, mas no sobrepeso os homens as estão alcançando. “O tratamento da obesidade tem pouco efeito e os novos casos continuam surgindo. A única forma efetiva de lidar com o problema é prevenir o ganho excessivo de peso, e isso tem que começar cedo, na infância e adolescência.” O cenário não é otimista: dificilmente vamos alcançar as metas da obesidade para 2025, informou a professora.
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
Paulo Buss, diretor do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz, analisou os desafios de governos, sociedade civil e do mundo científico na implementação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2015-2030, que sucederam os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Buss comentou a influência da globalização sobre a saúde, citando o exemplo do vírus zika, que viveu um surto na Polinésia Francesa e entrou no Brasil provavelmente em 2013, na Copa das Confederações. A seleção do Taiti participou da competição e ficou alocada em Pernambuco. Para saber mais, leia a matéria da sessão sobre zika.
“A globalização é um fato econômico, cultural e social. Então, discutir a Agenda 2030 dos ODS envolve levar em conta qualquer país e localidade”, afirmou. Dessa vez, são 17 objetivos a serem alcançados pelas nações dentro de 15 anos. Eles incluem erradicar a pobreza, promover a segurança alimentar e agricultura sustentável, a igualdade de gênero, implantar medidas urgentes para combater as mudanças climáticas e seus impactos e preservar os oceanos. Algumas das metas dos ODS relacionadas à saúde são acabar com a epidemia da AIDS, garantir acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e reduzir pela metade o número de mortes e lesões causadas por acidentes de tráfego.
Os custos são altos: para eliminar a fome até 2025, por exemplo, são necessários 50.2 bilhões de dólares anualmente. Já para o acesso universal à saúde, são 37 bilhões de dólares, e 42 bilhões para se atingir a educação primária universal e expandir o acesso à educação secundária. “De onde virá esse recurso?”, questionou Buss.
Ele propôs, por fim, que se organize, dentro da ABC, um comitê que possa acompanhar o desenvolvimento da Agenda 2030, de modo que pesquisadores monitorem suas respectivas áreas dentro dos ODS – saúde, educação, mudanças climáticas e outras.