Um maratonista boêmio que ama uísque e charutos. Uma fotógrafa de paisagens, tempestades e bumbuns. Um aventureiro de trilhas arqueológicas que tem samba no pé e nasceu em Liechtenstein. Uma cozinheira que sabe a química das misturas e conhece uma receita infalível de veneno. Um avô coruja que quase caiu nas mãos do Dops e é viciado em Ovomaltine. E um tocador de cajón que teve uma banda de reggae com nome pré-histórico.
Quem lê as descrições acima pode pensar que os perfis correspondem à glamurosa atividade profissional de cada um. A verdade é que revelam apenas o lado B de algumas das mentes mais destacadas do saber científico do Rio e do Brasil. São eles: os físicos Carlos Aragão e Luiz Davidovich; o neurocientista Stevens Rehen; a meteorologista Claudine Dereczink; o paleontólogo Alexander Kellner; e a bióloga Sandra Azevedo.
Autores de trabalhos importantes publicados nas mais prestigiadas revistas especializadas, os seis personagens desta reportagem comandam pesquisas com aplicações práticas nos mais diversos campos do conhecimento e da tecnologia.
Nos perfis, feitos especialmente durante as comemorações do centenário da Academia Brasileira de Ciência (ABC), a grande descoberta é de que, diferentemente do estereótipo, os sábios são gente como a gente, até mesmo em suas nerdices. Afinal de contas, como diz o ditado, de cientista e louco todo mundo tem um pouco…
2016: Uma odisseia no espaço da família
Em 1969, o carioca Luiz Davidovich, após quatro anos de Física na PUC e prestes a iniciar o mestrado, foi expulso da universidade por participar ativamente do movimento estudantil. Enquadrado no decreto 447, que levou centenas de professores e alunos à clandestinidade ou às masmorras do regime, ele já tinha ficha no Dops e seu nome fora mencionado em interrogatórios. Graças à ajuda de um padre jesuíta, que conhecia o adido científico da embaixada americana, ele conseguiu uma entrevista. Impressionado com o currículo, o diplomata expediu um visto na hora e o aconselhou a embarcar imediatamente para Rochester, onde cursaria um doutorado.
– Fui salvo, mas tive amigos presos, torturados e um colega morto na Base Aérea do Galeão – recorda, com o ar grave, o recém-empossado presidente da Academia Brasileira de Ciências, que celebra seu centenário este mês.
Trinta e sete anos após o início do exílio, hoje com 70 anos redondos, ele é uma das cabeças top na rota para a criação do computador quântico, hoje uma quimera experimental que custa 15 milhões de dólares (o D-Wave), mas que, quando chegar a seu formato definitivo, promete revolucionar o raciocínio digital e a inteligencia artificial, levando-os a velocidades intergalácticas.
Primeiro autor, em 1993, de um artigo sobre teletransporte quântico (algo semelhante à máquina de Star Trek, mas só para partículas infinitesimais) seis meses antes de a IBM formular proposta semelhante, ele é dos mais influentes colaboradores do francês Serge Haroche, Nobel de física em 2012.
– Quando me falaram de uma reportagem sobre o lado humano do cientista, eu disse: mas isso não existe! Ainda menino, enchi a casa de uma fumaça altamente tóxica quando brincava com um laboratório portátil!
Para quem guarda segredos quânticos e já testemunhou teleportação de partículas, é preciso ultrapassar a metade da conversa até revelar-se um coração mole que elege como suprassumo da vida passar duas horas com os seis netos, oriundos de dois casamentos.
– Eu diria que meu lazer se resume a um esporte chamado “levantamento de netos”. Para conseguir este feito, fui forçado a entrar numa academia de ginástica e fazer alguma aeróbica. Já fui ideologicamente contrário à atividade esportiva, que tem algo de fascista. Aconselhado por médicos, eu andava regularmente na Lagoa: uma vez por ano. Agora, chego a duas ou três vezes por semana.
Confrontada com a informação de que os feitos extracurriculares de seu marido se resumem ao título de vovô, sua mulher, Solange Cantanhede, psicanalista e terapeuta em bioenergética, contesta com veemência:
– Esse aí faz um risoto como poucos.
Luiz, que fez lá seus anos de análise e dá pitacos no trabalho de Solange, não é bobo: assume seus dotes. O de camarão, aliás, não deve nada a ninguém, reconhece, e fecharia a concorrência.
Aprendeu a cozinhar no exterior, em pleno perrengue do exílio. Fruto do desespero: os TV dinners, congelados horrorosos, com gosto de polímero, deram lugar a receitas de coq au vin e bourguignon, estudadas com esmero científico. Chegou ao ponto de fazer o próprio pão.
Solange, que só recentemente descobriu que os buracos negros são muitos, e não apenas um, e que dorme nas palestras do marido, intervém novamente – Davi, como é chamado, gosta de dançar ieieiê e é inteirado em salão.
Verdade, ele reassume. É amante de Beatles e Bach, e tem ideias para equações durante filmes de Tarantino e Woody Allen. Depois, quando Solange deixa a sala, mais solto, ele revela o inconfessável: enquanto a mulher faz compras na padaria tradicional, ele foge e dá uma passada numa padaria francesa e come croissant escondido. Nos momentos mais clandestinos, devora o milk-shake de Ovomaltine de um local que prefere deixar em segredo, o que é bom para um workaholic que aprecia vinhos com moderação. Assim caminha a Ciência. Ou, conforme for, a Humanidade.
Partículas rebeldes, uísque e maratonas
Descrever o que Carlos Alberto Aragão de Carvalho faz é tão difícil quanto unificar a Física Quântica com a Teoria da Relatividade Geral, sonho de todo físico. Mas ele não se faz de rogado e explica que, recentemente, vem conseguindo progressos em unificar a loucura das partículas com outra relatividade, a especial. Se o leitor continua a não entender nada, digamos que Aragão é especialista em metamateriais, “coisas” em escala mínima que se comportam loucamente, mais que o normal no mundo quântico, onde tudo é louco.
Para observar as devassas, ele conta com a ajuda de aceleradores Síncrotron, espécie meio maldita frente aos grandes aceleradores, mas os únicos capazes de excitar as partículas nada elementares, que, na prática, servem para criar mantos de invisibilidade e lentes perfeitas.
Aragão provavelmente daria gargalhadas da explicação acima. Concordaria e discordaria ao mesmo tempo, como é comum no próprio universo quântico. Isso porque o carioca que jogava futebol quando garoto na
s ruas da cidade, que já rodou o mundo, teve funções na esfera do Estado e dirigiu o CNPq, até pode dar, à primeira vista, uma impressão de formalidade. Mas a outra face é a de um consumado boêmio, amante de uísques (como aperitivo), vinhos (acompanhando a refeição) e, um pouco menos, cerveja (às sextas-feiras, com amigos).
s ruas da cidade, que já rodou o mundo, teve funções na esfera do Estado e dirigiu o CNPq, até pode dar, à primeira vista, uma impressão de formalidade. Mas a outra face é a de um consumado boêmio, amante de uísques (como aperitivo), vinhos (acompanhando a refeição) e, um pouco menos, cerveja (às sextas-feiras, com amigos).
– Ontem, por exemplo, saí para comemorar dois trabalhos meus publicados em revistas importantes no mesmo dia! Estava radiante – ele diz, num involuntário trocadilho com a natureza de seus trabalhos, que lidam com radiação eletromagnética, a incomum, claro.
Como todo boêmio, Aragão é um grande papo. Irrequieto, peripatético, convida o repórter para uma visita à cozinha, onde Lu, a chef semanal, prepara caixinhas de rosbife, carne moída, massas, saladas, arroz, feijão e frango para serem congelados e degustados ao longo da semana. Ele oferece café expresso de máquina, mas o assunto continua na esfera dos gorós.
– Meu sogro era um exímio preparador de uísque. Um copo fininho e longo. Punha gelo, punha o uísque. Tinha uma mão forte. Chacoalhava aquele negócio. Vinha suado com o nível de diluição que era a perfeição.
Que o leitor não dê a esta introdução conotações erradas. Aragão é um esportista altamente dedicado. Corre em média 30 quilômetros por semana, integrado que está a um grupo organizado, o que o permite participar de duas meias maratonas por ano. Ele explica:
– É na corrida, e só na corrida, que consigo, de fato, esvaziar a cabeça, pois, na boemia com os amigos, e com nossas respectivas mulheres, a cabeça ferve de ideias, debates e descobertas em todas as áreas de conhecimento. A corrida é o foco e o vazio.
Ex-fumante inveterado de cigarros, atual fumador de charutos, tem dois filhos, é casado com Kenya da Hora Aragão, e acabou de se aposentar, o que significa que terá tempo de sobra para trabalhar menos com física teórica e mais com física experimental, no acelerador de terceira geração que está ajudando a desenvolver em Campinas.
– Mas se você perguntar do que gosto mesmo, eu diria que gosto de gente. Venho de uma família de lado nordestino, uma avó matriarca que criou os filhos quase sozinha. Sou acostumado a uma casa cheia, com os mais diversos níveis sociais e econômicos desfilando com a maior naturalidade e uma dificuldade financeira subjacente – recorda.
Esse amor à diversidade, por sinal, tem tudo a ver com a festa das partículas, em seu rodopiar elegantemente entrópico.
– Para mim, toda essa parte profissional, a Física e tudo, está muito misturada com o desfrutar das coisas. A profissão me leva a viajar muito, interagir com gente de todos os cantos. É algo natural. É quase como um bônus.
A aflição está presente e ocorre de ter que fazer equações em pleno voo.
– Como dizem, “no pain, no gain”. Mas, depois do segundo uísque, os números se embaralham…
Da Antártica ao Irã, em busca de dragões
Ele é professor universitário, se embrenha em lugares inóspitos em busca de relíquias históricas e usa chapéu de couro. Não, ele não é o Indiana Jones. Ou melhor, ele é uma versão mais verdadeira do anti-herói hollywoodiano. O paleontólogo Alexander Kellner escreve livros; dá aula para alunos de pós-graduação da UFRJ; faz pesquisas e organiza exposições no Museu Nacional, em São Cristóvão; e, é claro, faz o que todo mundo espera de um paleontólogo: caminha quilômetros a fio na esperança de encontrar algum vestígio de dinossauro perdido por aí.
Sua última cruzada, completada no começo deste ano, aconteceu na Antártica e rendeu descobertas ultrassecretas, que serão reveladas em breve. A jornada total durou 71 dias, 43 deles acampados em barracas que pouco protegiam os estudiosos das congelantes temperaturas polares. Como líder da expedição, Kellner faz questão de ser o último a comer o santo miojo de cada dia e, quase sempre, espera todo mundo ir para cama para se recolher. Nenhum sacrifício, porém, se compara ao torturante vento da Antártica, uma agonia que priva os cientistas de noites e noites de sono.
– Esta expedição requer muito de você. É desgastante, mas eu tenho que dar exemplo. Fizemos alguns achados em condições superextremas dessa vez. Agora quero conseguir verba para organizar uma exposição interativa, com uma câmara que simula as baixas temperaturas da Antártica – planeja o cientista, que trouxe três toneladas de material de navio para o Brasil.
No rol dos feitos conseguidos por Kellner estão a descoberta dos primeiros dinossauros do Irã (“País com as pessoas mais hospitaleiras”) e achados incríveis em inúmeras viagens à China. Esperto, ele aprendeu a falar uma dúzia de frases cruciais para a sua sobrevivência. A mais importante delas – dita em chinês, com sotaque caprichado e de peito estufado – é “Eu não quero coentro”, tempero que lhe provoca mais arrepios do que as criaturas gigantes da pré-história.
Separado (mas com namorada nova), o cientista perdeu a batalha para escolher o nome de seus dois filhos, os hoje crescidos e advogados Alexandre e Guilherme. Em compensação, batizou mais de 60 criaturas que encontrou, entre dinossauros e bichos jurássicos. Um deles foi nomeado no Jobi (ele é habitué de pés-sujos e limpos), com direito a votação dos beberrões presentes no bar. Graças à fama de cabeça-dura, seu colega paleontólogo aceitou ignorar a decisão da maioria e acatar a sugestão de Kellner de Tapejara imperator, “um bichão com uma crista enorme”. Desde então, as votações em bar para nomear dinossauros foram proibidas em um acordo tácito entre os cavalheiros.
Nascido em Liechtenstein, o sexto menor país do mundo, e criado no Rio desde os 4 anos, seus xodós, no entanto, sempre foram os pterossauros, que, durante a infância, eram interpretados na cabecinha de Kellner como dragões voadores. A história dessa paixão começou com o desenho dos anos 1970 “Os Herculoides”, protagonizado por Zok, um dragão alado que emitia raios pelos olhos e pela cauda. Alexander ficou obcecado até entrar na faculdade de Geologia e se deparar com os ossinhos de um pterossauro.
– Pensei: “Pronto, encontrei o meu dragão!” – empolga-se Kellner. – Os dinossauros são raros, mas os pterossauros são raríssimos. Eles não viviam em terrenos propícios para a fossilização.
Quando não está em seu laboratório, Kellner gosta de fazer trilhas, caminha oito quilômetros por dia na Praia de Copacabana, é tricolor doente e gosta tanto de escola de samba que já se vestiu até de flor num desfile da Imperatriz Leopoldinense – será essa uma evidência do seu sangue europeu? Seu gosto musical é dos mais diversos: vai de R.E.M. a Charlie Brown Jr (“Meu filho me apresentou outro dia. Já ouviu as letras?”).
– Também adoro cinema, principalmente os filmes do Almodóvar. Só não gostei do último “Jurassic Park”. Onde já se viu botar um T-Rex para brigar com um velociraptor? É impossível! Se eu tivesse 10 anos, aplaudiria. Com 50, fico olhando – sentencia o paleontólogo, que, apesar de tudo, mantém um Barney de papelão em seu laboratório.