A cada 15 dias, o acadêmico Jailson Bittencourt de Andrade, 64, tem uma ação certa: pegar um barco e navegar pela Baía de Todos-os-Santos. A reentrância costeira, porta de entrada na história do Brasil, é seu objeto de estudo desde 2008, quando fundou um grupo multidisciplinar para mapear a área. Com 50 pesquisadores, apoio de seis universidades baianas e ações previstas até 2038, o grupo debruça-se sobre aspectos físicos, biológicos e culturais, com atenção especial ao nível de poluição crescente da área. “As pessoas falam da Baía de Todos-os-Santos como algo à parte, outro território. Mas o que acontece aqui influencia a vida de três milhões de pessoas”, diz, apontando para um imenso mapa da baía e dos municípios adjacentes, pendurado em sua sala, na UFBA, onde autua como professor no Instituto de Química há 30 anos. Desde fevereiro deste ano, Bittencourt pôs mais uma atividade em sua agenda de pesquisador e educador, ao assumir a Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O cargo o liga diretamente às políticas de desenvolvimento científico do país, num momento de cortes orçamentários anunciados pelo governo federal. Nesta entrevista, Bittencourt fala sobre as ações do MCTI para garantir mais recursos, sobre as condições ambientais da Baía de Todos-os-Santos e a omissão dos governos na gestão da área.
Há cinco anos, o grupo de pesquisadores coordenado pelo senhor detectou que peixes e frutos do mar apanhados em áreas da Baía de Todos-os-Santos concentravam metais em níveis superiores aos aceitos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Algo mudou desde então?
Não. Mas, primeiro, é importante ressaltar que não são todas as áreas contaminadas. As áreas de Aratu, Itapagi, Suba e Maré são as afetadas. São áreas que estão próximas à Refinaria Landulpho Alves, ao terminal marítimo da Petrobras. E onde se concentra o movimento de navios. A situação mais crítica é a de Ilha de Maré. Os mariscos e frutos do mar permanecem contaminados com metais. Muitos desses metais são elementos químicos que, em concentrações bem baixas, são essenciais para a saúde, mas, em níveis altos, podem ser tóxicos. Os pescadores e os catadores de mariscos, que consomem frutos do mar quase todos os dias, estão vulneráveis.
Na opinião do senhor, as condições ambientais na área tendem a piorar?
Sim, se ações junto às empresas que poluem a região não forem tomadas, vai piorar. Temos que lembrar que o Centro Industrial de Aratu e o Polo Industrial de Camaçari margeiam toda essa área da baía. Há uma poluição atmosférica e marítima, seja via navios ou esgoto doméstico. O Ministério Público do Estado da Bahia tem uma divisão chamada Núcleo Baía de Todos-os-Santos, que, volta e meia, aperta as empresas. Mas essa é uma iniciativa isolada e que vem do Judiciário, não da administração pública.
Zonas portuárias despoluídas existem em muitas partes do mundo. O que estamos fazendo de errado?
As atividades de controle não são continuadas. Um programa do passado, chamado Bahia Azul, por exemplo, cuidava das emissões de esgoto. Isso criou um diferencial entre a Baía de Todos-os-Santos e a Baía de Guanabara. Guanabara é três vezes menor, mas o que recebe de esgoto não tratado é um escândalo. O Bahia Azul cuidava dos afluentes que chegavam à Baía de Todos-os-Santos. Mas, há duas semanas, peguei um barco e saí navegando pela enseada de Tainheiros (sudeste da baía). A área está completamente escura. Cheguei a ver um saco plástico com um cachorro morto. E toda a região adjacente está da mesma forma. Esgoto sem tratamento tem sido despejado sem nenhuma cerimônia.

Corremos o risco de chegar ao nível de poluição de Guanabara?
A Baía de Todos-os-Santos tem a vantagem de ser maior, ter a presença de uma corrente marítima mais forte, que “limpa” a área. Seria necessário muita incompetência e desrespeito para chegar a esse nível. No momento, diria que temos um paraíso comparado ao que é a Guanabara. Mas não há como garantir que continuaremos a ter no futuro.
Os estudos desenvolvidos pelo senhor e pela sua equipe foram entregues ao poder público?
Sim, os resultados são sempre disponibilizados. Teve uma época em que até discutimos com a Secretaria de Planejamento como fazer um curso para os gestores públicos que atuam nos municípios que margeiam a baía. Até porque sinto falta, por parte desses gestores, de uma compreensão maior sobre o que é a baía. Mas a ideia foi descontinuada. A administração ainda é muito tímida. Em vários portos do mundo, os navios, quando chegam, não usam seus motores. Ou são rebocados ou têm um motor elétrico alternativo para entrar. Isso porque o diesel usado é de péssima qualidade, com teores de enxofre altíssimos. Mas muitos navios que chegam à Baía de Todos-os-Santos usam seus motores. Mesmo quando estão parados, esperando descarregar. Somado a isso, muitos navios não têm cuidado com o descarte da água de lastro (água do mar captada pelo navio para garantir a segurança operacional e estabilidade). Não é raro ver cargueiros despejando essa água na baía. Isso é extremamente perigoso para a fauna marinha, pois a água de lastro, quando jogada ao mar de uma localidade muito distante de onde foi coletada, traz micro-organismos exóticos às populações de animais locais, além de vírus, bactérias, algas. Essa atitude causa um desequilíbrio no ecossistema. Eu não sou contra a presença de navios na baía. Mas é preciso uma atenção mais refinada na gestão da área. O poder público é muito negligente neste aspecto.
O senhor também conduziu uma avaliação da qualidade do ar na baía. Que resultados encontrou?
Nós instalamos estações medidoras de poluentes em três pontos: na rodoviária da Lapa, no Porto de Aratu e em Bananeira, uma vila de pescadores na Ilha de Maré. O resultado, de certo modo, nos surpreendeu. O ar da rodoviária era o mais poluído, como já imaginávamos. Mas não se esperava que o ar em Bananeira pudesse ser quase tão ruim quanto o do Porto de Aratu, distante cinco quilômetros. Em algumas horas do dia, é como se os moradores de Bananeira estivessem dentro do porto.

Poluição de transporte marítimo é mais perigosa que de transporte rodoviário?
A depender da área, sim. Os navios mercantes utilizam essencialmente como combustível um óleo pesado, que é subproduto do petróleo e que emite grandes quantidades de óxidos de enxofre. Esse poluente é muito tóxico para a saúde humana. Um estudo publicado pela Universidade de Rostock, na Alemanha estabeleceu uma ligação entre os gases dos cargueiros e doenças pulmonares e cardiovasculares graves.
Além das competências dos municípios, outras instituições federais e estaduais têm responsabilidades sobre a Baía de Todos-os-Santos. Há burocracia na gestão da área?
No caso de licenças para investimentos na baía, essa burocracia existe. Em nível federal, há ministérios da Marinha (Capit
ania dos Portos), Transportes (Codeba), Fazenda (Receita), Cultura (Iphan), Saúde (Anvisa), Meio Ambiente (Ibama), Planejamento (Patrimônio da União). Em nível estadual, as secretarias de Turismo, Meio Ambiente (Inema), Infraestrutura (Agerba), Infraestrutura Hídrica (Embasa), Agricultura (Bahiapesca). E por aí vai. No entanto, não defendo a criação de um órgão para administrar a área, uma prefeitura da baía, como muitos defendem. Isso só acrescentaria mais burocracia. A administração da baía é um desses casos em que a solução passa por uma revisão de procedimentos, como melhorar o tempo de resposta e distribuir melhor as funções de cada órgão já envolvido.
A avaliação da Nature, em 2014, colocou o Brasil na 50ª posição entre 53 países, num ranking sobre a relevância das pesquisas em curso. Por que o gasto brasileiro com ciência é tão pouco eficiente?
A avaliação da revista levou em conta a publicação de artigos em revistas de renome. É uma forma de avaliar, mas é restrita. Agora, sim, concordo que a ciência brasileira é pouco eficiente quando levamos em conta as demandas, o tamanho e o potencial do país. Nossa ciência ainda se comunica pouco com a sociedade, na forma de resultados. Um ponto central para isso acontecer é o baixo volume de recursos da iniciativa privada. Há um preconceito, no meio acadêmico, de que as universidades devem ser puras – se colaborar com o setor empresarial, não será uma atitude ética. E isso é um entrave. A burocracia para manejar um projeto vinculado a uma empresa é uma loucura. E a empresa tem prazo, ela tem um problema e quer esse problema resolvido; não vai ficar esperando a disponibilidade de um pesquisador.
De que forma o MCTI se articula para atrair esse investimento privado?
Em julho a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que cria o Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Um dos itens, diz que um pesquisador poderá dedicar oito horas por semana em um trabalho junto ao setor empresarial, isso sem perder a condição de dedicação exclusiva (regime onde as universidades públicas brasileiras pagam um extra de até 50% sobre o salário-base do docente). Essa medida provocará um grande diferencial, porque haverá uma garantia formal de que a universidade vai colaborar com o pesquisador e a empresa. Isso é um avanço. A empresa poderá utilizar os conhecimentos do cientista e a estrutura da universidade para desenvolver uma determinada pesquisa. Será um avanço na promoção da ciência no Brasil.
O governo anunciou um corte de R$ 1,8 bilhão na verba do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e outros R$ 9,4 bilhões do Ministério da Educação. Como promover ciência neste cenário?
Não é uma tarefa fácil. Mas, neste momento, há necessidade de qualificar o gasto e identificar fontes de recurso. O MCTI está negociando um empréstimo de U$ 2,5 bilhões com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O banco já concordou com o empréstimo, distribuído ao longo de seis anos, mas o acordo ainda precisa ser aprovado pelo Ministério do Planejamento e pelo Senado. Entre outras coisas, o empréstimo permitiria ressuscitar o edital dos novos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs). O momento é complicado, mas não perdemos a esperança.