Represa do Funil: bactérias, que se alimentam de esgoto, liberam toxinas que envenenam peixes – Custódio Coimbra / Agência O Globo (07/11/2014)
Ora azul, ora verde. Por vezes, marrom. Constante ali só a certeza de uma contaminação incompatível com a saúde. O Reservatório do Funil, em Resende, cujas águas integram o sistema do Paraíba do Sul e contribuem para o abastecimento do Rio, estão infestadas por cianobactérias (bactérias tóxicas). Análises da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) revelaram que o Funil apresenta um índice mínimo de contaminação pelo menos 25 vezes maior do que o máximo determinado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para água de abastecimento. As bactérias cianofíceas (nome em alusão ao tom azulado) produzem toxinas que atacam fígado, rins e pulmões. Se a seca se prolongar este ano, a situação se agravará, porque o esgoto se manterá estável, ao passo que o fluxo de água cairá.
Segundo a OMS, a contaminação não deve ultrapassar 20 mil células de cianobactérias por mililitro de água.
– No Funil, a média é de 500 mil células por mililitro. Há meses em que salta para um milhão por mililitro. Essa água pode se tornar impossível de ser tratada. É puro esgoto concentrado e contém bactérias tóxicas para homens e animais. Detesto alarmismo, mas a situação é alarmante – frisa Sandra Azevedo [membro do grupo de estudos da Academia Brasileira de Ciências sobre recursos hídricos], professora titular e diretora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da UFRJ, e uma das maiores especialistas do Brasil nesses organismos.
IMPRESTÁVEL PARA CONSUMO, PESCA E IRRIGAÇÃO
Sandra, que há 20 anos estuda a qualidade da água do reservatório, garante que ela está imprestável para consumo humano, pesca e irrigação. No máximo, serviria para a navegação e a geração de energia. As chamadas florações tóxicas existem há 20 anos, mas, quando o nível de água baixa, como agora, a concentração desses organismos aumenta significativamente.
– Coletamos todos os meses água para análise, e a situação só piora, devido ao descaso. O esgoto continua a ser lançado ao passo que a seca impede a reposição do volume dágua. Nem um milagre mudará a situação agora. Só um trabalho sério que impeça o lançamento de esgoto. Hoje, mais de 90% de toda a população de fitoplâncton (micro-organismo) do Funil é de cianobactérias tóxicas – explica a pesquisadora.
Ela e seu grupo divulgaram recentemente um estudo que traça o cenário da ameaça para a saúde que o Funil representa. Publicado na revista científica que atende pelo sugestivo nome de “Harmful algae” (“Algas perigosas”), o artigo analisa as concentrações de espécies de cianobactérias tóxicas que proliferam no Funil. A floração das bactérias confere às águas do Funil um aspecto de outro mundo, exatamente como era a Terra na época em que esses micro-organismos surgiram há bilhões de anos. Eles proliferam em ambientes ricos em nutrientes, como o fosfato e o nitrogênio, abundantes nos milhões de litros de esgoto sem tratamento lançados no Rio Paraíba do Sul dia após dia. E fazem o resto do trabalho sujo: liberam toxinas que envenenam peixes e outros animais e permanecem em alta concentração na água. O resultado é uma sopa viscosa, malcheirosa e tóxica.
Criado por Furnas em 1969 para o complexo da Usina Hidrelétrica do Funil, o reservatório se estende por 40 quilômetros quadrados. Ele recebe não apenas o esgoto das cidades e propriedades rurais vizinhas, como um enorme volume de poluentes originados em São Paulo. Uma vez que passam pela usina, as águas são despejadas no Paraíba do Sul, onde entram no sistema de abastecimento.
– O Paraíba do Sul é um rio maltratado. A seca só piorou o cenário sujo que o descaso histórico com o esgoto e a qualidade da água produziram – lamenta Sandra.
E a seca avança. Climatologistas e meteorologistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) não têm grande esperança de que a chuva esperada nesta primavera vá salvar o reservatório do volume morto. A tendência é que chova abaixo da média histórica.
– A água no Funil baixou tanto que a gente enfrenta até dificuldade para descer com o barco usado na coleta. Vemos claramente a mudança do clima na região. E, mais nítido do que ela, só o esgoto, que continua a ser lançado impunemente – conta a pesquisadora.
CEDAE NEGA QUE HAJA RISCO PARA A POPULAÇÃO
A Cedae afirmou ontem que não existe risco para a população. Segundo nota da empresa, o que “importa não é a qualidade da água encontrada no Funil, e sim a que chega à captação do Guandu”. O texto frisa que as cianobactérias se desenvolvem em ambientes sem movimento, como lagos. “No caso do Funil, esta água percorre mais de 200 quilômetros para chegar até a captação do Guandu, passando por corredeiras com fluxo intenso e continuo”. Dessa forma, destacou a empresa, a água que chega ao Guandu está “dentro dos padrões para tratamento, sem nenhum risco”. A Cedae informou ainda que faz o monitoramento frequente das cianobactérias, para impedir a contaminação do produto fornecido à população.