A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da UFRJ, é uma entre milhares de cientistas brasileiros impactados pela crise. Foto: Fabio Motta/Estadão
A crise econômica está batendo com força à porta da ciência brasileira. Não bastassem os ajustes fiscais, que reduziram o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) em 25%, e do Ministério da Educação (MEC) em 9%, o setor sofre desde 2014 com a perda de royalties do petróleo e com o saque de recursos destinados à pesquisa científica para o pagamento de bolsas do Ciência sem Fronteiras. Sem dinheiro em caixa, agências de fomento federais estão cancelando editais e atrasando o pagamento de milhares de projetos já aprovados no ano passado.
O cenário é o “pior dos últimos 20 anos”, segundo a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Helena Nader, que desde 2013 vinha alertando o governo sobre a crise eminente.
O que mudou? A principal fonte de recursos para pesquisa no País é o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), um grande portfolio de fundos setoriais, dentre os quais o do petróleo (CT-Petro) costumava ser o maior de todos. A partir de 2014, pelas novas regras de distribuição de royalties do setor, os recursos da exploração do pré-sal que antes alimentavam o FNDCT passaram a fluir para outra conta, do Fundo Social, que não é dedicado à ciência. Com isso, o valor arrecadado pelo CT-Petro despencou de R$ 1,4 bilhão em 2013 para R$ 140 milhões em 2014 – e não deve chegar a R$ 30 milhões neste ano.
O valor total arrecadado pelo FNDCT em 2014 caiu 28% em relação ao ano anterior: de R$ 4,5 bilhões para R$ 3,2 bilhões; e mais de R$ 1 bilhão desse valor foi empenhado para o programa Ciência sem Fronteiras (CsF) – que, originalmente, deveria ser financiado com dinheiro novo. Lideranças científicas chegaram a descrever a decisão como uma “canibalização” do sistema nacional de ciência e tecnologia. Este ano, a história deve se repetir, com mais R$ 1 bilhão reservado no orçamento do fundo para o programa.
Somados esses fatores, a lei de royalties e o CsF drenaram R$ 2,5 bilhões do FNDCT em 2014. Sem contar os contingenciamentos. A situação agora é agravada pela alta do dólar – que eleva tanto os custos do CsF quanto da ciência em geral, já que muitos dos insumos utilizados para pesquisa no Brasil são importados – e pela crise econômica como um todo, que reduz a arrecadação de impostos e acaba impactando o orçamento das fundações de amparo à pesquisa (FAPs) dos Estados, outra fonte importante de recursos.
“A situação é mesmo muito dura. Os editais de pesquisa têm ficado a seco”, diz o pesquisador Glaucius Oliva, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP) e ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal agência de fomento à pesquisa do governo federal.
O orçamento do CNPq para este ano prevê um repasse de R$ 1,22 bilhão do FNDCT, mas só um quarto disso (R$ 330 milhões) foi recebido até agora. O conselho está atrasando o pagamento de editais aprovados no ano passado e cancelando ou adiando a abertura de novas chamadas. Apenas 6 editais foram abertos neste ano, comparado a 51 em 2014 e 91, em 2013.
A chamada para criação dos novos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) – maior programa de pesquisa e desenvolvimento da ciência brasileira – até agora não foi concluída, apesar de o prazo para submissão de projetos ter se encerrado um ano atrás. O dinheiro para pagar o edital, de R$ 641 milhões, seria rateado entre várias agências de fomento federais e estaduais – todas elas afetadas pela crise.
A Finep, agência de fomento à tecnologia e inovação do MCTI, adiou de junho para outubro o prazo para submissão de projetos ao Proinfra, um edital de R$ 400 milhões voltado para aquisição de equipamentos de grande e médio porte. Segundo fontes ouvidas pelo Estado, é improvável que o edital seja executado neste ano, por falta de recursos. A Finep nega. “O Proinfra será executado e o resultado do edital será publicado ainda este ano”, garante a agência.
Leia entrevista com o presidente da Finep aqui: goo.gl/HYjrVb
Já a tradicional Chamada Universal do CNPq, aberta a todas as áreas de pesquisa, não deverá ser realizada este ano, visto que o conselho está tendo dificuldades para pagar a chamada do ano passado, de R$ 200 milhões (dos quais R$ 150 milhões deveriam vir do FNDCT). Segundo a agência, R$ 50 milhões já foram pagos, e um novo repasse de R$ 75 milhões foi aprovado no início deste mês. Não foi informado, porém, quando esse dinheiro será distribuído aos pesquisadores. “O repasse vem seguindo um cronograma até 2016, feito de forma gradual e proporcional a todos os 5.529 projetos de pesquisa aprovados”, informou a agência.
“A prioridade é pagar aquilo que já foi julgado, antes de lançar coisas novas, sem lastro”, diz Oliva, que deixou a presidência do CNPq em fevereiro (substituído pelo bioquímico Hernan Chaimovich). Tudo foi feito conforme o cronograma em 2014, segundo ele, mas quando chegou a hora de pagar o edital este ano, “não havia mais dinheiro”.
Fila de espera
A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é uma dos milhares de cientistas aguardando pagamento. Ela teve um projeto de R$ 50 mil aprovado no Universal de 2014, para pesquisar a estrutura celular do cérebro de mamíferos, mas só recebeu R$ 6,5 mil até agora. Outros financiamentos aprovados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), também estão saindo com atraso, segundo ela. “O jeito é tirar dinheiro do próprio bolso para manter o laboratório funcionando”, diz Suzana. “Eu já me devo uns R$ 15 mil, pelo menos.”
Elibio Rech, da Embrapa, é outro que está na fila, aguardando os R$ 120 mil que foram aprovados para o desenvolvimento de um óleo de soja mais saudável, com maior concentração de ácidos oleicos (semelhante ao óleo de oliva). Até agora, só recebeu 10%. “Já tivemos crises antes, mas nunca vimos chegar a esse ponto. O Universal nunca deixou de ser pago”, diz. “É uma sinalização muito ruim, especialmente para os cientistas mais jovens, que dependem desses pequenos grants para iniciar suas carreiras.”
Guido Lenz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), só recebeu R$ 8 mil dos R$ 63 mil que foram aprovados para um projeto de pesquisa da resistência de tumores a quimioterapia. “Se dependesse só disso, teria que fechar o laboratório”, conta. “Felizmente fui econômico e guardei dinheiro de outros projetos, que estou usando neste momento.”
Pós-graduação sem custeio
Na esfera
acadêmica, quem mais sofre são os programas de pós-graduação – que são a base da produção científica nacional. Também atingida pelos ajustes fiscais, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do MEC se comprometeu a não cortar bolsas nem o Portal de Periódicos, mas para isso foi obrigada a cortar 100% dos recursos para capital (destinados à compra de equipamentos e gastos com infraestrutura) e 75% das verbas de custeio (usadas para compra de materiais, organização de eventos e outros gastos de rotina da pós-graduação).
“Tivemos que nos ajustar à nova realidade”, disse ao Estado o diretor de Programas e Bolsas da Capes,Márcio de Castro Silva Filho, referindo-se ao corte de R$ 9 bilhões no orçamento do MEC. “Não tínhamos muitos graus de liberdade para atuar.” Só as bolsas, segundo ele, consomem 86% dos recursos da Capes. “É importante destacar que esse quadro não está fechado”, diz. “Havendo uma recomposição orçamentária, faremos imediatamente uma nova concessão de recursos.”
Flávia Gomes, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Morfológicas da UFRJ, concorda com a priorização do pagamento das bolsas: “É uma questão de sobrevivência”, diz ela. Mas alerta para os impactos de médio e longo prazo, caso as agências de fomento não tenham seus orçamentos restabelecidos. “Estamos conseguindo manter nossos bolsistas, mas se eles não tiverem recursos para fazer suas pesquisas, aonde é que isso vai nos levar?”, questiona a cientista.
O programa, com 92 alunos de mestrado e doutorado, costuma receber até R$ 500 mil por ano do Programa de Excelência Acadêmica (Proex) da Capes, para gastos de capital e custeio. Este ano, Flávia foi avisada que só deverá receber R$ 150 mil; e nenhum centavo disso chegou até agora. Alguns orientadores e chefes de laboratório, segundo ela, já estão evitando aceitar novos alunos, com medo de não ter dinheiro para bancá-los mais adiante.
O edital Pró-Equipamentos da Capes também não deverá ocorrer este ano, e pesquisadores estão sendo notificados pela agência de que os convênios assinados no edital do ano passado não poderão ser pagos.
“Entendemos a urgente necessidade de cortes de gastos na busca de equilíbrio nas contas públicas, contudo o corte de verbas destinadas à pesquisa e pós-graduação encerra o risco de desestruturação e estagnação de importantes programas de formação de pessoal qualificado e geração de conhecimento científico necessários à inovação e ao desenvolvimento econômico e social de nosso país”, diz o presidente da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq), Jerson Lima da Silva, em uma carta de protesto da entidade, enviada à presidente Dilma Rousseff na semana passada.
Cobertor curto
Helena Nader, presidente da SBPC e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que a culpa não é dos ministérios nem das agências de fomento. “Eles estão fazendo o possível, tentando resolver o problema, mas não estão conseguindo”, diz. “A demanda aumentou e os recursos diminuíram.”
Só na última década, o número de doutores formados por ano no País aumentou de aproximadamente 7,9 mil (em 2003) para 15,5 mil (em 2013), segundo números da Capes; e o número de pesquisadores ativos triplicou, de 57 mil para 180 mil, segundo números do CNPq. Os investimentos totais em ciência e tecnologia também cresceram substancialmente no país no mesmo período, de aproximadamente R$ 20 bilhões para R$ 85 bilhões (incluindo recursos públicos e privados), segundo dados do portal de Indicadores do MCTI. Ainda assim, na hora que economia esfriou, o cobertor ficou curto.
A boa notícia, segundo Oliva, é que após esse longo período de crescimento saudável, o sistema nacional de ciência e tecnologia está bem estruturado para suportar a crise. “Acho que dá para sobreviver a uns dois anos de vacas magras”, diz. Os mais prejudicados, segundo ele, deverão ser os jovens pesquisadores de novas universidade federais localizadas fora dos grandes núcleos de excelência acadêmica, onde a estrutura é mais precária e a dependência de novos editais é maior.
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