O que resta do valor do conhecimento científico após 40 anos de estudos da ciência? A pergunta conduziu a conferência do francês Michel Morange, professor na École Normale Superieure de Lyon e na Universidade Paris 6, no primeiro dia da Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências. Com formação em biologia e filosofia, Morange é especialista em história da ciência e suas transformações ao longo do século 20 até os dias de hoje.
Segundo Morange, a situação do valor científico é bem diferente da descrita há 110 anos por Henri Poincaré – matemático, físico e filósofo do século 20 cuja obra, “O Valor da Ciência”, serviu de inspiração para o tema da Reunião Magna 2015. “O lugar da ciência na sociedade era bem diferente”, contou. “Suas aplicações eram visíveis, mas ainda limitadas. O valor do conhecimento científico era aceito por unanimidade. Agora, a situação é simétrica, de certa forma. A ciência está em todo lugar à nossa volta, por meio de desenvolvimentos tecnológicos, mas há duvidas em torno do valor do conhecimento cientifico.”
Após a segunda metade do século 20, principalmente, surgiram estudos filosóficos e sociais da ciência e críticas a esse campo do conhecimento. As dúvidas sobre o valor do conhecimento científico estão relacionadas a uma longa tradição filosófica que discute seus limites, passando por Hume, Kant e Karl Popper. François Jacob, por outro lado, estudou uma forma de responder a essas críticas.
O círculo de Viena, grupo de filósofos do século 20, defendeu a ideia da construção de um conhecimento científico calcado em observações bem estabelecidas e proposições. Já Popper acreditava que o valor da ciência reside na sua capacidade de ser submetida a experimentos. Aí está a diferença do conhecimento científico para o conhecimento em geral: hipóteses científicas podem ser submetidas a essas formas de criticismo – podem ser testadas. Popper buscou introduzir o conceito de verdade no conhecimento científico.
As críticas mais importantes e devastadoras vieram das ciências sociais. “Elas partem de um excelente princípio: olhar para a construção progressiva do conhecimento científico, a importância de estratégias, o papel das controvérsias e a possibilidade de escolhas erradas, partindo do construtivismo para o relativismo, ou seja, a ideia do conhecimento científico como um valor relativo.”
De acordo com Morange, após 40 anos desses estudos, nada significante pode se extrair deles, pois a ciência ainda está em progresso. Seus impactos foram fortes, difusos e ainda presentes na sociedade. “Eles são claramente visíveis nas reformas na educação e no lugar que eles dão para a ciência: a ausência de cultura científica; a ideia de que, como as teorias e resultados científicos mudam constantemente, não é útil aprendê-los.” Nesse contexto, o que deve ser aprendido é o método pelo qual o conhecimento científico é construído: um bom princípio, mas que não substitui o conhecimento dos resultados científicos.
Enfrentar essa desvalorização da ciência não é fácil. Morange afirma que a maioria dos estudos científicos é muito superficial para ser considerada significante e “esquece a peneira drástica da experimentação”. “As duras críticas às quais um novo resultado é rapidamente submetido representam o poder de auto-regulação da construção do conhecimento científico.” Morange deu o exemplo da polêmica entre Pasteur e Pouchet sobre a teoria da geração espontânea, defendida pelo último. Pasteur, diferentemente de Pouchet, usou o método hipotético-dedutivo e teve apoio de boa parte da comunidade científica, por conta da qualidade de seus experimentos, que levaram ao progressivo abandono da teoria da geração espontânea e da adoção da teoria celular. “Desde o século 19, ninguém estava mais acreditando na geração espontânea. Em 1859 a teoria celular foi adotada, e essa controvérsia fechou o debate.”
As respostas oferecidas por François Jacob
As contribuições do biólogo francês François Jacob – responsável por estudos fundamentais para a compreensão da regulação da atividade do gene – no campo da filosofia das ciências foram imprescindíveis. Isso porque ele conseguiu conciliar os modelos de filósofos e cientistas sociais, como Michel Foucault e os epistemas e Thomas Kuhn e os paradigmas, e rejeitou uma visão idealista e irreal da construção do conhecimento científico.
François Jacob elaborou a teoria da “ciência da noite” e “ciência da manhã”. A primeira é o lugar central da imaginação, da criatividade e das transgressões. A ciência da noite é muito semelhante a outras atividades criativas humanas, como a arte e a construção dos mitos. “Criar é recombinar conceitos e modelos; é gerar novas ligações; encontrar novas maneiras de olhar para fenômenos”, explicou Morange. A ciência da noite é aquela que duvida de tudo e questiona a si própria.
Já a ciência do dia é aquela como conhecemos, a “peneira de experimentos” e o confronto com outros cientistas. “É algo único para o conhecimento científico”, afirmou Morange. François Jacob também teve um papel importante ao discorrer sobre ética na ciência. “Como cientista, ele sempre lutou por aplicações éticas do conhecimento científico, contra qualquer forma de eugenismo e uso indevido do conhecimento genético. Também ajudou cientistas perseguidos por regimes autoritários.”
Morange concluiu, ressaltando que cientistas não são diferentes de outros seres humanos e suas criações podem ser comparadas às de artistas. “Mas, devido às regras do jogo, ciência é diferente de outras atividades humanas.” Ele também comentou que a ciência passa por uma certa forma de “secularização” ou “laicização”, em que o conhecimento científico é progressivamente construído, evolui e é produto de um tempo histórico específico. Mas, ao mesmo tempo, é algo difícil de se obter, e requer uma modéstia dos pesquisadores: “Os momentos em que é possível progredir na ciência são realmente raros”, destacou o francês.