Todas as experiências em física de altas energias realizadas nas últimas décadas confirmaram o chamado “Modelo Padrão de Partículas”, uma construção teórica que descreve a estrutura e o comportamento da matéria nas escalas atômica e subatômica.
Vários cientistas que contribuíram para o desenvolvimento do modelo foram contemplados com o prêmio Nobel de Física, inclusive o britânico Peter Higgs, propositor do famoso Bóson de Higgs – premiado, com o belga François Englert, em 2013.
Tal sucesso não deixa de constituir, porém, um impasse, pois no Modelo Padrão importantes questões permanecem sem solução.
A mais importante dessas questões, tantas vezes mencionada, é a impossibilidade de unificar em um quadro único as quatro interações fundamentais da natureza (gravitacional, eletromagnética, nuclear fraca e nuclear forte), devido à incompatibilidade entre a teoria geral da relatividade (que descreve a interação gravitacional) e a teoria quântica (que descreve as outras três interações).
Por isso, físicos das novas gerações vêm buscando alternativas ao Modelo Padrão. Várias propostas já foram apresentadas, mas a que se tem mostrado mais duradoura e promissora é a teoria das supercordas, que substitui a noção de partículas pontuais do Modelo Padrão pela noção de diminutas cordas em vibração*. As diferentes vibrações ou “modos de excitação” das cordas originariam os vários tipos de partículas.
Essa teoria já passou por várias reformulações desde que foi proposta pela primeira vez, no início dos anos 1970. Um dos pesquisadores que tem contribuído ativamente para o seu desenvolvimento é o norte-americano naturalizado brasileiro Nathan Berkovits, professor titular do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp) e membro titular da ABC.
Berkovits recebeu em 2009 o prêmio anual de física da The World Academy of Sciences (TWAS) por sua pesquisa com supercordas. Desde 2011, dirige o ICTP South American Institute for Fundamental Research (ICTP-SAIFR), criado em parceria pelo Abdus Salam International Centre for Theoretical Physics (ICTP), de Trieste (Itália), a Unesp e a FAPESP.
Coordena atualmente o Projeto Temático “ICTP Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental: um centro regional para física teórica”, apoiado pela FAPESP, e concluiu, em 2014, outro Temático, intitulado “Pesquisa e ensino em teoria de cordas”.
Em entrevista à Agência FAPESP, Berkovits apresenta o estado da arte no estudo das supercordas e descreve suas principais contribuições nesse campo teórico.
Agência FAPESP – Por que é tão importante construir uma teoria capaz de superar a contradição entre a relatividade geral e a mecânica quântica?
Nathan Berkovits – Embora a relatividade geral seja utilizada na descrição do macrocosmo, em escalas interestelares e intergalácticas, e a mecânica quântica seja utilizada na descrição do microcosmo, em escalas atômicas e subatômicas, a compatibilização de ambas não é irrelevante, principalmente quando pretendemos entender o universo primordial. Segundo a teoria do Big Bang, o universo tinha tamanho subatômico nas frações de segundo que se seguiram ao instante inicial. A escala em que a mecânica quântica afeta a interação gravitacional é tão pequena que nem podemos sonhar em construir aceleradores capazes de detectá-la, mas informações poderão eventualmente ser obtidas a partir de observações cosmológicas sobre o universo jovem.
Agência FAPESP – E a teoria das supercordas seria uma alternativa promissora na superação dessa contradição?
Berkovits – Sim, porque, nela, as diferentes vibrações das cordas descrevem partículas diferentes. Isso possibilita que a teoria das supercordas não apenas unifique a interação gravitacional com as outras interações, como unifique também todas as partículas. A teoria das supercordas está bem longe de poder ser verificada experimentalmente, mas já deu origem a várias ideias que têm sido úteis em outras áreas da física e da matemática. Uma dessas ideias é o conceito de supersimetria.
Agência FAPESP – Poderia falar sobre esse conceito?
Berkovits – O conceito de supersimetria relaciona partículas fermiônicas, que constituem a matéria, com as partículas bosônicas, que transmitem as interações ou as forças entre os constituintes da matéria. Embora os férmions e os bósons sejam bem diferentes, existe a possibilidade de relacionar esses dois tipos de partículas por meio do conceito de supersimetria. Ela prevê que, para cada férmion, deva existir um bóson correspondente, isto é, uma partícula supersimétrica. E vice-versa. Esse conceito surgiu nos anos 1970, na teoria de cordas, e, por isso, elas passaram a ser chamadas de supercordas. Uma propriedade importante das teorias com supersimetria é que nelas as divergências com a mecânica quântica são atenuadas, devido à possibilidade de um cancelamento entre partículas fermiônicas e partículas bosônicas. Por isso, mesmo os físicos que não trabalham com supercordas passaram a se interessar fortemente por supersimetria. Os pesquisadores do LHC [Large Hadron Collider ou Grande Colisor de Hádrons], em Genebra, estão procurando ativamente evidências de supersimetria, que se mostrou um conceito aplicável a várias áreas da física e da matemática.
Agência FAPESP – Uma dificuldade que a teoria das supercordas apresenta é a necessidade de um espaço com muitas dimensões para descrevê-la.
Berkovits – De fato. O formalismo matemático da teoria de supercordas utiliza um espaço de dez dimensões. Surge, então, a pergunta: por que observamos apenas quatro dessas dez dimensões? Há ao menos duas respostas para isso. Uma é dizer que as outras seis dimensões são tão pequenas que não podemos detectá-las. O modelo que afirma isso é chamado de compactificação. Uma outra resposta é dizer que a matéria não pode ocupar todas as dimensões do Universo, mas apenas sua superfície. O Universo seria um objeto decadimensional com uma superfície tetradimensional, e partículas como os elétrons e os fótons estariam confinados a essa superfície. Apenas o gráviton, o transmissor da interação gravitacional, estaria livre para se deslocar pelo Universo inteiro. Tal superfície recebe o nome de brana, por analogia com a membrana, que é a superfície bidimensional de um objeto tridimensional. E há, então, toda uma teoria de branas.
Agência FAPESP – Que evoluções ocorridas na teoria de supercordas nas últimas décadas o senhor destaca?
Berkovits – Uma evolução importante foi o conceito de “dualidade”, que consiste em relacionar duas teorias bem diferentes utilizadas para descrever a mesma coisa. O exemplo mais importante de “dualidade” é a correspondência AdS-CFT, que relaciona uma teoria de gravitação quântica com uma teoria de campo. Essa correspondência foi conjecturada em 1997 pelo físico argentino Juan Maldacena (do Instituto de Estudos Avançados em Princeton, nos Estados Unidos), que, de
pois, ao mesmo tempo que outros pesquisadores, reuniu várias evidências para comprová-la. Trata-se da correspondência entre uma teoria de gravitação quântica em um espaço anti-de-Sitter (AdS) e uma teoria de campo do tipo Yang-Mills supersimétrica (que é um exemplo de conformal field theory ou CFT). A correspondência AdS-CFT é um dos assuntos mais ativos em física teórica de altas energias dos últimos 15 anos, e gerou aplicações em outras áreas, como a física de íons pesados e a física de supercondutividade.
Agência FAPESP – E houve também sua contribuição, não é mesmo?
Berkovits – Minha pesquisa já tem cerca de 25 anos. Concentrei-me no entendimento da supersimetria na teoria de supercordas e na aplicação desse entendimento no estudo da correspondência AdS-CFT. O formalismo convencional para as supercordas, o RNS (sigla formada pelas letras iniciais dos sobrenomes dos pesquisadores Pierre Ramond, Andre Neveu e John Schwarz), foi desenvolvido nos anos 1970. Mas a supersimetria estava escondida nele. Nos anos 1980, Michael Green e John Schwarz desenvolveram um formalismo alternativo, o GS (sigla formada pelas letras iniciais de seus sobrenomes), mas sua quantização era complicada. O problema ficou em aberto até o ano 2000, quando propus um novo formalismo, com supersimetria manifesta e quantização simples. Este novo aparato foi chamado de “formalismo de spinores puros”, porque envolve não apenas variáveis vetoriais que, descrevem o espaço-tempo, mas também variáveis spinoriais.
Agência FAPESP – O que é um spinor?
Berkovits – É uma ferramenta matemática, que talvez se torne mais compreensível se a compararmos com outra ferramenta matemática, o vetor. Para descrever qualquer ponto do espaço-tempo, usamos um vetor de quatro dimensões, três para o espaço (por exemplo, comprimento, largura e altura) e uma para o tempo. Podemos pensar em uma realidade com número maior de dimensões. E o vetor terá tantos componentes quanto forem as dimensões. O spinor permite descrever outras grandezas além da posição no espaço-tempo. Por exemplo, se considerarmos um elétron, não basta saber apenas em que ponto ele está no espaço-tempo, mas também em qual eixo ele está girando, isto é, qual é o seu spin. E o spinor fornece essa descrição. Ou seja, ele carrega mais informação do que o vetor.
Agência FAPESP – Qual foi a repercussão de seu novo formalismo?
Berkovits – No ano 2000, logo no início do meu primeiro Projeto Temático apoiado pela FAPESP, escrevi um artigo intitulado Super-Poincaré covariant quantization of the superstring, que foi publicado no Journal of High Energy Physics (JHEP). Esse artigo já gerou mais de 400 citações. Vários grupos de pesquisadores do mundo todo estão trabalhando agora com o formalismo dos spinores puros.
Agência FAPESP – Explique a vantagem dos spinores puros.
Berkovits – Uma maneira de estudar as supercordas é calcular amplitudes de espalhamento dos grávitons, que são as partículas que transmitem a interação gravitacional. Quando as energias dos grávitons são baixas, essas amplitudes podem ser calculadas por meio da teoria clássica da relatividade geral. Mas, quando as energias são altas, é necessário fazer correções quânticas no cálculo das amplitudes. Então, surge o problema das incompatibilidades entre a relatividade geral e a mecânica quântica, que procuramos contornar por meio da teoria das supercordas. Ocorre, porém, que, no formalismo convencional RNS, o cálculo das correções quânticas é muito difícil, pelo fato de a supersimetria estar escondida. Já no formalismo dos spinores puros, elas são muito mais fáceis de calcular. E eu mostrei, em 2004, que essas correções quânticas são finitas, como se esperava.
Agência FAPESP – Quais foram as aplicações ou desenvolvimentos posteriores de seu formalismo?
Berkovits – Em 2006, meu então aluno de doutorado Carlos Mafra e eu calculamos, pela primeira vez, as correções quânticas de segunda ordem nas amplitudes de espalhamento de bósons e férmions. Entre 2007 e 2009, Nikita Nekrasov [do Institut des Hautes Études Scientifiques, na França], Michael Green [da Cambridge University, no Reino Unido] e eu provamos vários teoremas relacionados com outras correções. Em 2013, Carlos Mafra e outro ex-aluno, Humberto Gomez, calcularam pela primeira vez correções quânticas de terceira ordem. E, no ano passado, em 2014, Edward Witten [do Instituto de Estudos Avançados em Princeton, nos Estados Unidos] e eu empregamos o formalismo para calcular os efeitos quânticos responsáveis pela quebra de supersimetria.
Agência FAPESP – Como o senhor aplicou o seu formalismo no estudo da correspondência AdS-CFT?
Berkovits – O formalismo convencional RNS é incapaz de descrever o background do espaço anti-de-Sitter (AdS) que aparece na correspondência AdS-CFT de Juan Maldacena. Por essa razão, uma aplicação importante do formalismo de spinores puros é o estudo da supercorda neste background. Em 2005, usei esse formalismo para provar a consistência quântica do background AdS. E, em 2008, Cumrun Vafa (da Harvard University, nos Estados Unidos) e eu empregamos o formalismo para descrever o background quando a curvatura do espaço anti-de-Sitter é grande. Nesse mesmo ano, trabalhei com Maldacena e, juntos, achamos uma nova simetria do background chamada “dualidade T fermiônica”, usada depois para entender a relação entre as supercordas e a teoria de Yang-Mills supersimétrica. No ano seguinte, simplifiquei o formalismo no background AdS. E, em 2013 e 2014, com a colaboração de meus alunos de doutorado Thiago Fleury e Thales Azevedo, mostramos como calcular amplitudes de espalhamento neste background.
Agência FAPESP – Há uma relação entre o formalismo dos spinores puros e outras descrições das supercordas?
Berkovits – Nos anos 1970, Roger Penrose [da Oxford University, no Reino Unido] desenvolveu uma nova descrição do espaço-tempo usando variáveis spinoriais que ele chamou twistores. A relação dos twistores com as supercordas começou a ser entendida depois que Edward Witten introduziu uma nova supercorda com variáveis twistorias em 2003. No ano seguinte, eu simplifiquei essa supercorda, e com Witten, mostramos que a supercorda twistorial simplificada e aquela que ele havia proposto antes eram equivalentes. Em 2010, achei uma relação entre os twistores e spinores puros. E, em 2012 e 2014, mostrei que o formalismo de spinores puros pode ser interpretado em termos de uma supercorda twistorial. Todos esses passos estão registrados nos artigos que publiquei ao longo destes anos de pesquisa.
Agência FAPESP – Seus trabalhos parecem evoluir no sentido de uma simplificação cada vez maior.
Berkovits – As pessoas que trabalham na área acreditam que haja algo ainda mais fundamental do que as supercordas. Isso fica claro, por exemplo, quando se fala em correspondência AdS-CFT. O que está por trás ou para além dessa dualidade? O meu trabalho busca essa descrição mais fundamental. E um dos ingredientes para isso é a supersimetria. A supersimetria rearranja o formalismo das cordas, vamos dizer assim.
*NOTAS
A ordem de grandeza das supostas cordas corresponde ao chamado “comprimento de Planck”, igual a 1,61619926 x 10-
35 metros. Para efeito de comparação, o diâmetro do próton é estimado em 0,877 x 10-15 metros. Isso significa que o diâmetro do próton seria 1020 vezes maior do que o comprimento das cordas.
As partículas fermiônicas, ou férmions, que constituem a matéria, são os elétrons, os quarks e os neutrinos. As partículas bosônicas, ou bósons, que transmitem as interações ou forças entre os constituintes da matéria, são os grávitons (responsáveis pela interação gravitacional), os fótons (responsáveis pela interação eletromagnética), os Ws e os Zs (responsáveis pela interação nuclear fraca), os glúons (responsáveis pela interação nuclear forte) e os bósons de Higgs (que confeririam massa às demais partículas).
O “espaço de De Sitter”, proposto pelo matemático, físico e astrônomo holandês Willem de Sitter (1872 -1934), é o análogo tetradimensional de uma esfera. Apresenta o máximo de simetria com curvatura constante e positiva. O espaço anti-de-Sitter apresenta curvatura constante negativa. É o análogo tetradimensional de uma superfície hiperbólica. A ideia por trás da correspondência AdS/CFT é a de que é possível descrever uma força da teoria de campos (como a força eletromagnética, a força nuclear fraca ou a força nuclear forte) em um certo número de dimensões (por exemplo, quatro) por meio de uma teoria de corda, na qual a corda exista em um espaço anti-de-Sitter com uma dimensão a mais (no caso, cinco).
Para descrever os bósons, as variáveis vetoriais são suficientes. Mas, para descrever os férmions, os spinores são necessários. Nos anos 1930, o matemático francês Élie Cartan (1869 -1951) descreveu as propriedades de um tipo especial de spinor chamado “spinor puro”. Um spinor puro é uma versão decadimensional do twistor, usado pelo matemático Roger Penrose e seus colaboradores nos anos 1970 para construir uma nova descrição do universo na qual as trajetórias dos fótons são mais fundamentais do que os pontos do espaço-tempo.