Leia abaixo a íntegra do artigo publicado em coluna do jornal O Globo de 27/11 pelo professor de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro Jorge Marcondes.
”Inovar exige crises de paradigmas vigentes. Muitas teorias científicas, com aparente sucesso em seu tempo, foram substituídas por outras através da quebra do modelo estabelecido. Mas geralmente com importante resistência da academia.
Embora pareça controverso, acadêmicos e cientistas, como a maioria dos seres humanos, acostumam-se com regras conservadoras e são avessos a mudanças abruptas. Estamos em plena crise do modelo universitário vigente no Brasil, e isso sequer está sendo claramente discutido nas universidades.
A sociedade, que sustenta as universidades públicas pagando pesados impostos, não consegue penetrar em uma discussão tão árida, mas, de forma onírica, mantém a esperança de que soluções interessantes à nação virão dessas instituições. Dificilmente assistiremos a barricadas nas ruas pela discussão do modelo universitário público no Brasil, mas permanecerão as habituais manifestações por mais verbas.
O problema tem nome: conservadorismo do sistema corporativo-sindical. Esse fenômeno leva à sugestão, progressiva e metodicamente, de que o mérito ocorre como um efeito colateral dentro do sistema de ascensão e de produção universitária.
Que tal fenômeno tenha se instalado nas instituições do Estado de onde se espera inovação e supremacia do mérito pode parecer paradoxal, mas o próprio atual reitor da USP, professor Marco Antonio Zago, por ocasião da grave crise orçamentária e de gestão que se abate sobre a instituição, declarou, em entrevista recente à revista ”Veja”, que a questão fundamental é a discussão das consequências da influência do pensamento sindical nas universidades. A publicação recente de relatório da instituição – no qual se lê que, em 2013, os servidores receberam 62% da folha salarial versus 38% gastos com professores – é uma boa pista do que acontece com a maioria dessas instituições no Brasil.
Francis Fukuyama, em seu ”Political order and political decay”, formulou uma tese interessante com uma tríade de premissas necessárias para que uma sociedade mantenha sua ordem política e exerça seu movimento rumo ao progresso: o exercício do poder, a sujeição à lei e accountability, aqui significando auditagem a ser exercida pela sociedade dos serviços a ela prestados
Transfiram-se tais premissas para a universidade pública brasileira atual, submetida ao pensamento corporativo (aqui definido como conservador) e sem mecanismos efetivos para exercer sua opção pelo mérito, e teremos o que hoje chamamos, garbosamente, de autonomia universitária, que implica em nada mais nada menos do que receber vultosos recursos e pouca auditagem digna do nome. O exercício do poder nessas instituições segue a mesma trajetória, ou seja, tornou-se efêmero e prisioneiro das mesmas forças conservadoras.
Uma forma inconteste de auditagem internacional pode facilmente verificar as consequências dessa anomalia. O ranking anual da Times Higher Education, que organiza uma escala com as melhores universidades do mundo, verifica que a primeira colocada do Brasil, na edição 214-2015, foi a USP. Está listada como entre ”201-250” (após a 200 não há mais identificação individual). Não havia nenhuma universidade federal brasileira entre as 400 melhores do mundo.
Entretanto, se o estímulo ao mérito e à inovação não tem relação com produtividade científica, a explosão produtiva de Coreia do Sul, China e Índia, nas últimas décadas, seriam então frutos de uma perversão genômica que os fez mais aptos?
Existem, obviamente, inúmeras ilhas de excelência em pesquisa nas universidades públicas brasileiras, mas o sistema é essencialmente conservador com um viés corporativo-sindical progressivamente maior. Na verdade, o pensamento corporativo é parte essencial da equação do conservadorismo institucional e da decadência do mérito na universidade pública brasileira.
E uma das vigas mestras do conservadorismo está ligada ao poder entregue à burocracia, levando ao fenômeno de uma espécie de burocratic take-over. A rigidez burocrática, conservadora, sem qualquer apego à auditagem, aliada ao desprezo ao mérito, são forças invisíveis, mas poderosas, que impedem o movimento virtuoso rumo à inovação e criatividade.
Pertenço a uma geração prisioneira da entressafra entre o pós-ditadura e a construção de uma nação moderna e produtiva, mas que não consegue ou quer desencadear um debate aberto para a modificação do paradigma atual. Os reitores da maioria das universidades públicas no Brasil são eleitos dentro desse universo de regras corporativas que não apenas consomem as finanças, mas abalam a esperança que reside no estímulo ao mérito. Teriam eles, após eleitos e com os compromissos desencadeados pelo processo eleitoral, desapego suficiente para subverterem a ordem vigente e dar o passo que os redimiria e faria diferença no futuro dos jovens alunos e pesquisadores dessas instituições? Desafiariam a estrutura conservadora burocrático-corporativa, estabelecendo metas e privilegiando o mérito para a ascensão na carreira acadêmica? Pouco provável.
Um pensamento que prime por valorizar o mérito e pela constante quebra de paradigmas, levando ao debate honesto e inequívoco do papel da instituição no futuro de nossos filhos, talvez consiga evitar o fantasma do ”controle social” das universidades públicas e as leve a frequentar posições mais dignas nos rankings internacionais. Resta saber quantos sobraram para promover o debate.”