Professora da Universidade do Estado de São Paulo (USP) e Acadêmica Dora Fix Ventura iniciou o 2º Encontro Regional dos Membros Afiliados da Academia Brasileira de Ciências – Regional São Paulo com a palestra “Impacto da exposição ao mercúrio na visão humana”. Dora Fix Ventura é professora titular aposentada do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP, mas permanece atuando como colaboradora sênior. Atualmente é vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e presidente do Latin American Research Committee (LARC) da International Brain Research Association (IBRO). É membro titular da Academy of Sciences for the Developing World (TWAS), da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp).
No evento, Dora Ventura relacionou estudos realizados em São Paulo e na Amazônia – nesse caso, com a colaboração do professor Luiz Carlos de Lima Silveira, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Nos últimos 14 anos, a equipe da USP pesquisou o efeito do mercúrio sobre funções visuais de trabalhadores na cidade de São Paulo, enquanto o grupo da UFPA estudou ribeirinhos e garimpeiros.
Em 1930, foi descoberta na Inglaterra a Síndrome de Hunter-Russel, na qual trabalhadores expostos a metilmercúrio – usado como desinfetante e conservante em fábricas de embalagem de sementes – desenvolveram doença neurológica, descrita com perda visual e ataxia cerebelar, doença que provoca perda de coordenação motora e planejamento dos movimentos.
A síndrome de Hunter-Russel também afetou a população de Minamata, no Japão, em 1950. Na ocasião, o metilmercúrio foi lançado na água da Baía de Minamata por uma indústria e contaminou os peixes. Estes foram ingeridos pela população, o que provocou a morte de 600 pessoas e a contaminação de mais três mil. Outros casos de exposição ao metilmercúrio ocorreram em Niigata, no Japão, em 1968 e no Iraque, em 1971.
No Brasil, as principais fontes de exposição ao mercúrio são tanto ambientais quanto ocupacionais. Envolvem contaminação de peixes em rios nas áreas de extração de ouro na Amazônia que, assim como algumas indústrias paulistas, geram vapor de mercúrio elementar. Além disso, há certa exposição ao mercúrio na atividade odontológica, através de material para a obturação de dentes.
Sintomas da Síndrome de Hunter-Russel
Os principais sintomas da intoxicação por mercúrio através do vapor absorvido pelos pulmões são tremores, mudança emocional, insônia, cefaleia, alterações em respostas neurais, déficits cognitivos e alterações sensoriais. Exposições mais altas podem ocasionar efeitos renais, falha respiratória e morte.
Esta síndrome é caracterizada como doença profissional pela Organização Nacional do Trabalho, o que dá direito à indenização. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, algumas ocupações estão diretamente expostas à intoxicação, como a fabricação de compostos de mercúrio, fabricação de aparelhos para medir temperatura e aparelhos de laboratório, preparação de matérias primas para chapelaria e emprego de bombas de mercúrio para a fabricação de lâmpadas fluorescentes.
O sistema visual é um dos alvos mais importantes da retenção de mercúrio e da toxicidade crônica. Mas há diferença nos efeitos da intoxicação por mercúrio metálico e por metilmercúrio no campo visual. O metilmercúrio é uma forma orgânica do elemento, que cruza a barreira hemato-encefálica facilmente, enquanto o mercúrio metálico atinge a barreira em menores quantidades, transformado em mercúrio inorgânico divalente. O mercúrio metálico causa perda de visão de cores em trabalhadores de fábricas de termômetros, perda de contraste espacial e constrição de campo visual em trabalhadores de áreas de garimpo. Já a intoxicação por metilmercúrio causa perda de visão periférica, redução de sensibilidade ao contraste, alterações em movimentos sacádicos, que são os deslocamentos que os olhos realizam a cada segundo, para a realização de uma tarefa na qual seja necessário o controle ocular fino.
Grupo de estudo e testes
Na palestra, Ventura também contou que durante as pesquisas encontrou um grupo mercurial grande: 120 pessoas aposentadas por invalidez, que trabalharam em indústrias de lâmpadas fluorescentes em São Paulo. Esse grupo estava sendo acompanhado pela médica pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), Dra. Marcilia Faria, da área de medicina do trabalho. Os integrantes haviam se aposentado por intoxicação mercurial sete anos antes do estudo e até a aposentadoria tinham nível alto de mercúrio, com 40 microgramas por grama na urina, mas não apresentavam anormalidades oftalmológicas.
Por protocolo fixado pela Associação de Eletrofisiologia da Visão, a medição do mercúrio é feita através de exame não invasivo, o eletrorretinograma de campo total (ERG). Outro teste que também pode ser realizado é o ERG multifocal, pelo qual se identifica pequenas respostas que correspondem a cada área da retina. Esse exame faz um mapa da atividade da retina, enquanto o teste PVE [Potencial Visual Evocado] registra a perda de percepção de contraste.
“Esses testes eletrofisiológicos puderam comprovar a situação de forma objetiva, pois independe do depoimento do individuo sobre o que está vendo ou não, que poderia ser falso, visando compensação financeira pela indenização. Sete anos depois da aposentadoria, as dificuldades de percepção visual permaneceram e encontramos uma situação estável, onde não há piora, mas também não há melhora”, disse a Acadêmica. Os efeitos do mercúrio sobre o grupo de trabalhadores de São Paulo são irreversíveis, no sistema visual e em funções neuropsicológicas.
Estudos semelhantes foram realizados na região amazônica e mostraram que não só a visão periférica, mas também a visão central dos trabalhadores locais foi afetada, assim como a atividade da retina. Em ambos os casos, as perdas visuais foram detectadas mesmo abaixo de níveis considerados seguros pelas normas correntes.
Apesar dos diversos testes sobre a alteração da atividade cortical, ainda existia pouca informação sobre os efeitos do mercúrio no tecido retiniano. Dessa forma, os pesquisadores desenvolveram um novo teste de retina usando modelos animais.
Ventura relatou que foi escolhido o peixe como modelo animal para teste, pois representava um bom padrão para estudar contaminação ambiental por metilmercúrio. “As pessoas muitas vezes se intoxicam porque comem peixes que estão em áreas contaminadas. Demos lambari contaminado com mercúrio para traíras e conseguimos avaliar e medir a contaminação na traíra. Descobrimos que o mercúrio atinge difusamente o tecido da retina e causa perdas celulares”, relatou a pesquisadora.
Soluções
A prevenção é a melhor maneira de evitar a intoxicação por mercúrio. Campanhas sobre hábitos alimentares de consumo de peixe para a população e de métodos de proteção para trabalhadores são úteis para informar sobre os cuidados necessários da exposição ao elemento.
Segundo a Acadêmica, uma das soluções encontradas no estudo com um grupo de trabalhadores da região de Paulínia foi o uso de capelas (foto à esquerda) e retortas de três tigelas (foto à direita), procedimentos que evitam a inalação de mercúrio. Mas a revisão das normas e condições trabalhistas é um ponto importante sinalizado pela pesquisa.
“Apesar de todos os projetos já desenvolvidos, são necessárias mais legislação e mais ciência nessa área, pois há muito que se descobrir”, declarou a Acadêmica.