“Quando cursei o mestrado em Medicina Tropical, o professor José Rodrigues Coura era vice-presidente de Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Mesmo assim, ele acompanhava os alunos em trabalhos de campo nos confins do Brasil, em áreas carentes e inóspitas, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e o Sertão do Piancó, na Paraíba”, conta o diretor do escritório da Fiocruz no Mato Grosso do Sul, Rivaldo Venâncio da Cunha. O empenho de Coura, que permanece na ativa aos 86 anos, pode ser encontrado não apenas no depoimento de Rivaldo, mas nos relatos de muitos ex-alunos que o cientista formou ao longo de mais de 50 anos de trabalho.
Duas vezes diretor do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), pesquisador emérito da Fundação e chefe do Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC, Coura recebeu, nesta segunda-feira, 07/06, o Prêmio Fundação Conrado Wessel (FCW) de Medicina. A entrega do troféu ocorreu diante de uma plateia formada por cerca de mil pessoas na Sala São Paulo, em SP. Segundo o superintendente da FCW, José Caricatti, a premiação reconhece profissionais pela excelência científica aliada à eficácia social, e Coura se destaca como um catalisador de talentos. “Ele é um dos maiores conhecedores de doença de Chagas no mundo, uma referência internacional. Mas o que distingue sua carreira é o papel de formador de equipes em todo o Brasil”, afirmou. Presente à premiação, o diretor do IOC/Fiocruz, Wilson Savino, avaliou que “a preparação de especialistas em medicina tropical é um legado de Coura para todo o Brasil”.
O próprio infectologista contabiliza em cerca de 200 os mestres e doutores formados em cursos criados por ele e considera esta a parte principal de sua contribuição para a ciência – o que inclui a publicação de mais de 250 artigos e a organização de livros como Dinâmica das Doenças Infecciosas e Parasitárias, que conquistou o segundo lugar no Prêmio Jabuti de 2006. “Os trabalhos científicos são importantes, mas a formação de pessoal é fundamental. Estes pesquisadores são multiplicadores, que, por sua vez, vão formar novos cientistas, fazendo o conhecimento avançar”, disse Coura que, entre os numerosos reconhecimentos, é membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Nacional de Medicina (ANM) e foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico, mais alta insígnia concedida pela Presidência da República.
Exigência em nome da excelência acadêmica
Considerada a primeira pós-graduação stricto sensu da área médica no Brasil, o curso em Doenças Infecto-Parasitárias da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi criado por Coura, na década de 1970. Já no IOC/Fiocruz, ele foi responsável por implantar dois dos seis programas Stricto sensu oferecidos até hoje. Os cursos de Medicina Tropical e de Biologia Parasitária foram uma prioridade de Coura ao assumir a direção do Instituto e a Vice-Presidência de Pesquisa da Fundação, em 1979. O objetivo era colocar lado a lado profissionais renomados e jovens recém-formados para repovoar o IOC após o período difícil da ditadura militar, marcado pelo episódio do massacre de Manguinhos, quando dez pesquisadores foram cassados.
Para os estudantes da primeira turma dos cursos de mestrado, a dedicação e a exigência do professor Coura foram fundamentais para a excelência acadêmica conquistada pela pós-graduação e o êxito do projeto de repovoamento do IOC. “Ele trouxe para o curso básico os melhores pesquisadores da época, como Leônidas e Maria Deane, Zilton e Sônia Andrade e Henrique e Jane Lenzi, entre outros. Era preciso estudar muito, e os alunos chegavam a ficar chateados com a cobrança. Mas tínhamos à disposição microscópios de última geração e podíamos ficar no laboratório até dez horas da noite, se quiséssemos”, recordou José Paulo Gagliardi Leite, hoje pesquisador do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC/Fiocruz.
As longas horas de estudos também marcaram Ricardo Lourenço de Oliveira, atual editor da revista científica Memórias do Instituto Oswaldo Cruz e chefe do Laboratório de Transmissores de Hematozoários do IOC/Fiocruz, que conta ainda uma curiosidade: além de ser em horário integral, das 8h às 17h, o curso não tinha feriados, e o único período sem aulas em 1980, foi quando o papa João Paulo II visitou o Rio de Janeiro. “O professor Coura tinha uma visão tão importante do ensino que, apesar de ser diretor do Instituto e vice-presidente de Pesquisa da Fundação na época, ministrava uma disciplina de um mês no mestrado e, depois disso, estava sempre presente conversando com os alunos”, ressaltou.
Valorização do mérito científico e da pesquisa de campo
Assim como a exigência acadêmica, a postura profissional de Coura é lembrada de forma unânime por seus ex-alunos. Numa época política ainda conturbada, o pesquisador ficou conhecido por priorizar o mérito científico. “Ele sabia da minha orientação política, próxima ao Partido Comunista, mas nunca me fez perguntas sobre isso. Coura me ensinou que todo o projeto de pesquisa que contribui para a sociedade deve ser apoiado, independentemente da posição pessoal de seu autor”, destacou Rivaldo Venâncio. A mesma opinião é partilhada por Ricardo Lourenço. “O professor Coura nunca deixou questões pessoais e políticas influírem na avaliação profissional. Aprendi com ele o significado da meritocracia”, afirmou.
Segundo o Acadêmico Wilson Savino, a valorização do mérito científico também influenciou a atuação do pesquisador como diretor do IOC/Fiocruz. “Na primeira gestão, de 1979 a 1985, ele foi o responsável direto pela vinda de pesquisadores muito renomados ou que se tornaram reconhecidos posteriormente. Já no segundo mandato, de 1997 a 2001, Coura introduziu o parâmetro de produtividade científica como diferencial na repartição de recursos anuais do Instituto”, avaliou.
Vencedores Prêmio FCW, os Acadêmicos e pesquisadores da Fiocruz Coura e Hildebrando
foram prestigiados pelo presidente da Fundação, Paulo Gadelha, e pelo diretor do IOC, Wilson Savino
Outro ensinamento diz respeito ao valor atribuído à pesquisa de campo e à compreensão das questões ambientais e sociais envolvidas na dinâmica de transmissão de doenças parasitárias. O pesquisador do Laboratório de Micologia do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) e coordenador do Laboratório de Referência Nacional para Micoses Sistêmicas, Bodo Wanke, foi aluno de Coura na faculdade de medicina da UFRJ, em 1967. Mais tarde, ele ingressaria na Fiocruz a convite do antigo professor. “Ele sempre afirmou que nós, médicos, vemos o paciente no hospital, mas a origem da doença se vê no campo. O paciente internado é só a parte final da infecção. Por isso o pesquisador precisar sair da enfermaria e do laboratório”, relatou. Ricardo Lourenço ressaltou a abordagem transversal das doenças. “Ele me ensinou a procurar perguntas e respostas no trabalho de campo, entre as pessoas que sofrem as mazelas das doenças infecciosas nos conf
ins do país. É preciso olhar o sistema como um todo, incluindo o homem, o parasito e o ambiente onde eles se encontram”, pontuou.
Atuação permanente no interior do país
Em parte devido a esta percepção sobre a origem das doenças, a influência de Coura nos estudos das patologias parasitárias do Brasil vai além das instituições em que ele atuou. “Ele levou projetos de pesquisa e formação de recursos humanos para estados como Paraíba, Piauí, Pará e Amazonas”, disse Rivaldo Venâncio, que contabiliza em números o impacto desta atuação no Mato Grosso do Sul. Em 1997, um programa de mestrado interinstitucional criado pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pela Fiocruz – com participação fundamental de Coura – formou 24 mestres, dos quais 18 se tornaram doutores. “Em dez anos, conseguimos formar uma massa de pesquisadores suficiente para a Capes credenciar o curso de pós-graduação stricto sensu da UFMS em Doenças Infecciosas e Parasitárias. Hoje, são 80 mestres formados e mais de 20 doutores”, contou o pesquisador. “Se todas as instituições tivessem essa generosidade, que é característica da Fiocruz, do IOC e do doutor Coura, a ciência do Brasil estaria em outro patamar”, acrescentou.
Como chefe do Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC, Coura coordena, atualmente, uma equipe de dez pesquisadores doutores e mantém o trabalho de formador de cientistas, por exemplo, com a orientação direta de dois alunos de doutorado. Entre os projetos de pesquisa dos quais é coordenador estão a avaliação do papel dos cães como reservatórios dos parasitos Trypanosoma cruzi – causadores da doença de Chagas – e Leishmania sp. – que provocam a leishmaniose – em São João do Piauí, no Semiárido Nordestino, e o estudo evolutivo da doença de Chagas em áreas do médio e alto Rio Negro, no Amazonas.
Sobre o Prêmio Fundação Conrado Wessel

Coura e Hildebrando ao lado dos demais vencedores do Prêmio FCW 2013
Concedido há doze anos nas categorias Medicina, Ciência, Cultura e Arte, o Prêmio FCW é considerado uma espécie de Nobel brasileiro. A escolha dos vencedores é feita por uma banca de doutores de mais de dez instituições, incluindo as academias de Ciências (ABC), Letras (ABL) e Medicina (ANM), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os ganhadores recebem um troféu criado pelo artista plástico Vlavianos e uma premiação em dinheiro.
Além de Coura, a Fiocruz teve outro cientista destacado no Prêmio FCW 2013: o vice-diretor Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico, Inovação e Serviço de Referência do escritório de Rondônia, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, foi vencedor da categoria Ciência (leia entrevista dele dada à Agência Fapesp). Já o prêmio de Cultura foi entregue à arqueóloga Niéde Guidon, da Fundação Museu do Homem Americano – Centro Cultural Sérgio Motta, do Piauí.
Na categoria Arte, a premiação segue um critério de seleção diferente e, em lugar de personalidades de destaque, são escolhidos os três melhores ensaios fotográficos do ano. Nesta edição, foram premiados os fotógrafos Gilvan Barreto, por O livro do sol; Lalo de Almeida, por Belo Monte, os impactos de uma megaobra; e Roberta Pereira SantAnna, por Parque aquático.