Diante da complexidade do mundo em que vivemos, procuramos entender cada parte para chegar a compreender o todo. Mas esta fragmentação, embora útil para o aprendizado escolar, dificulta a compreensão de fenômenos mais complexos.
Foram estabelecidas então formas possíveis de articulação de diversas disciplinas. A interdisciplinaridade busca a interação e comunicação entre campos do saber, mas cada qual mantendo sua perspectiva. A transdisciplinaridade vai permitir tratar uma única questão de uma maneira plural, propondo um nível de integração onde não existe fronteira entre as disciplinas, onde todos os saberes são igualmente importantes, uma “democracia cognitiva”.
E foi com essa perspectiva que a Vice-Presidência Regional MG&CO da Academia Brasileira de Ciências organizou um encontro que reuniu matemáticos, médicos, biólogos, engenheiros e físicos para tratar da riqueza que a comunicação e interação entre as diversas ciências traz em si.
Mauro Teixeira, Virginia Ciminelli, Sérgio Pena, Keti Tenenblat,
Evaldo Vilela e o presidente da ABC, Jacob Palis.
Incluindo o ser humano na equação
O Acadêmico Mauro Martins Teixeira, vice-presidente Regional da ABC para Minas Gerais e Centro-Oeste, explica que em sua área de pesquisa o trabalho é eminentemente interdisciplinar, porque atua numa área de fronteira, envolvendo biologia molecular, imunologia, parasitologia e outras disciplinas. No seu caso, a transdisciplinaridade envolve considerar a visão do físico, por exemplo, do antropólogo, do cientista da computação. “Temos feito esse tipo de interação, eu gosto da transdisciplinaridade porque entramos em contato com formas muito diferentes de se pensar um problema.”
Para quem trabalha com ciência básica, na opinião de Mauro, o elemento humano fica às vezes muito distante. “O químico, o físico, o matemático muitas vezes trabalham muito distante do ser humano. No nosso caso, que trabalhamos com doenças humanas, lidamos com um problema que é fundamentalmente transdisciplinar. Porque a doença passa pela proteína, pelo vírus, pela bactéria, pelo lugar em que a pessoa vive, pelo alimento que ela come, pela sua situação emocional. Então selecionamos um problema e procuramos considerar todos os pontos de vista possíveis relacionados com a questão.”
Matemática aplicada muito depois de criada
A Acadêmica Keti Tenenblat, matemática da Universidade de Brasília (UnB), falou sobre aspectos a interação entre geometria, equações diferenciais, ciência da computação e fenômenos físicos.
Ela apresentou equações que descrevem vários fenômenos físicos, inclusive uma que descreve a propagação de pulsos de luz ultracurtos em fibras óptica de sílica, importantes para as futuras tecnologias de transmissão óptica ultrarrápida.
“São teorias que foram desenvolvidas só pelo prazer dos geômetras e, muitos anos depois, foi descoberta uma utilidade prática e significativa para elas”, explicou a pesquisadora.
Impacto da mineração no ambiente e na saúde
Já a área ambiental se caracteriza pela interdisciplinaridade, na visão da Acadêmica Virginia Ciminelli, do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do INCT Acqua, falou da importância de uma abordagem sistêmica e multidisciplinar no estudo dos impactos ao ambiente e à saúde humana em regiões mineradoras.
“Questões ambientais são cada vez mais críticas para o futuro do setor mineral. A avaliação do impacto ambiental e à saúde humana requer uma abordagem ampla e transdisciplinar.” Virginia explica que a viabilidade e a competitividade das indústrias minerais e metalúrgicas estão cada vez mais dependentes da chamada “licença social”, que faz com que o setor seja levado a responder de forma proativa aos questionamentos da sociedade.
Esta nova postura, de acordo com a Acadêmica, requer abordagens abrangentes e conteúdo científico para lidar com as complexas e múltiplas fronteiras das atividades minerais com os recursos hídricos, as áreas urbanas, as áreas de preservação e o patrimônio cultural. Requer, ainda, o estabelecimento de condições que garantam estabilidade estrutural e química dos resíduos gerados.
O INCT Acqua, onde Virginia atua, tem dentre os seus objetivos avaliar as principais áreas de impacto das atividades de mineração, especialmente na qualidade da água, do solo, do ar e na conservação da biodiversidade, além de buscar agregar valor a produtos e processos baseados em produtos minerais. A rede de instituições tem, ainda, o compromisso de tornar os resultados para a sociedade mais visíveis.
Virginia deu alguns exemplos da atuação do INCT Acqua, entre eles o da contaminação do rio São Francisco originada na Votorantim Metais, com impactos de múltiplos tipos. O grupo analisa a água e os sedimentos, identifica as fontes dos contaminantes, o destino desses metais nos rios, faz uma avaliação da biota, ensaios de ecotoxicidade com espécies neotropicais, e estudos de biodisponibilidade e identificação de organismos e plantas que podem ser usadas para a bio e a fito remediação. “Nesse trabalho temos parcerias internacionais com a Universidade de Queensland, na Australia, Bassin Miniére na França, e outras. Atua com um cluster de empresas de mineração e de siderurgia que envolve a Vale, a Gerdau, a Aço minas, a Namisa e outras”, relata Ciminelli.
A necessidade de soluções mediadas que levem em conta as especificidades e os interesses de cada região, segundo a pesquisadora, estimula toda a cadeia local de fornecedores de conhecimento e de tecnologia, bem como a capacitação em todos os níveis. Virginia destacou que a capacitação e o compartilhamento do conhecimento assumem um papel chave para a discussão qualificada e mediação. “A empresa quer se antecipar em relação à lei, que é cada vez mais rigorosa. O Ministério Público precisa da ciência para balizar suas ações e a sociedade quer entender os riscos e as providências tomadas. A informação, portanto, deve ser disponibilizada para agências reguladoras e a sociedade. Isso traz benefícios evidentes para o desenvolvimento sustentável dos territórios mineradores.”
Agricultura, transdisciplinaridade e sociedade
O Acadêmico Evaldo Ferreira Vilela, diretor-científico da Fapemig e professor do Departamento de Entomologia da Universidade Federal de Viçosa, abordou a interdisciplinaridade nas ciências agrárias.
Contextualizando o problema, Vilela apontou que embora a produção mundial de grãos ocupe hoje 660 milhões de hectares, que produzem dois bilhões de toneladas, a agricultura do século 21 enfrenta grandes desafios. “Produzir alimentos sob a pressão das mudanças climáticas talvez seja o maior desafio da história da humanidade”, ressaltou o engenheiro agrônomo. No ano de 2050 o mundo terá 9,6 bilhões de habitantes e que será necessário o aumento de 70% na produção de alimentos. O caminho para corresponder a esse desafio, em seu ponto de vista, é o conter a destruição de habitats, control
ar a degradação e exaustão dos recursos naturais e produzir de modo mais sustentável.
Vilela destacou que a agricultura tropical vem se desenvolvendo desde 1970, fundamentada em ciência e tecnologia. Esse investimento envolve diversos aspectos, inclusive o desenvolvimento de algumas áreas da ciência como a climatologia, pedologia [estudo dos solos], zoneamento agroecológico, agroecologia e agricultura de precisão.
O cientista destacou as áreas que fazem interface com as ciências agrárias, citando as ciências ambientais e da atmosfera, as áreas de recursos hídricos e energia, a biologia celular e molecular, a genômica e a proteômica, a nanociência, a área de biossegurança e bioterrorismo, a ecologia e biodiversidade e a área de certificação e qualidade.
Vilela alerta para a questão da comunicação com a sociedade. “A ciência está muito separada da comunicação social. Essa interação tem que ser transdisciplinar, de forma que o pessoal da comunicação se envolva com a ciência e a entenda melhor, e os cientistas não fiquem tão desconfiados e interajam com mais abertura.” Ele levantou exemplos em que a sociedade não estava preparada para lidar com inovações e a primeira reação foi de rejeição, como quando do lançamento do leite pasteurizado. “Na época, diziam que esterilizava as mulheres e enfraquecia o cérebro. Isso custou para ser superado.”
Ele diz que as agências, como a Fapemig, têm um limitado planejamento estratégico de C&T setorial. Para Vilela, os desafios para a transdisciplinaridade na ciência e na tecnologia agrícolas envolvem estratégias de pesquisa e a integração de conhecimentos. “A pesquisa tem que ir além da pós-graduação, com focos estratégicos. É preciso investir em inovação induzida, estabelecer prioridades.”
Entre as dificuldades que vê para a implementação de transdisciplinaridade, Vilela destaca a competição acadêmica, que em alguns casos impede a colaboração, assim como a forma de financiamento de projetos. “Precisamos caminhar mais no sentido dos INCTs [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia], com centros colaboradores trabalhando em rede. O fato é que essa visão holística necessária à transdisciplinaridade e à inovação é muito contrária à nossa cultura e ao que a gente aprende na universidade.” Então, o jeito é reaprender.
Biologia molecular, genômica e bioinformática a serviço da saúde humana
O Acadêmico Sérgio Danilo Pena abordou a análise de exomas e genômica clinica. Ele trabalha em genética clínica e biologia molecular, tendo introduzido a genômica no Brasil no início dos anos 90. Nos últimos 18 meses, Pena diz ter realizado um sonho ao reunir todas as suas atividades num laboratório novo, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), voltado para uma área bastante nova – a genômica clinica, uma revolução na medicina e na própria genômica. “Ela só é possível pela interação entre médicos, biólogos moleculares e bioinformatas”, destacou o cientista.
Em 2000, Pena acompanhou o desenvolvimento do Projeto Genoma Humano, liderado por Craig Venter e Francis Collins. Ele relembra que o primeiro genoma humano a ser sequenciado levou 11 anos e custou três bilhões de dólares. Nesses 14 anos, porém, a capacidade de sequenciar DNA aumentou 50 a 100 mil vezes. “Hoje fazemos um genoma humano em um dia, que custa três mil dólares de material de consumo”, conta Pena.
A facilidade de se fazer um genoma possibilitou a integração da genômica com a medicina e agora será possível ter o genoma do paciente na papeleta, para analisar precisamente a saúde do indivíduo. E é nesse sentido que Pena e sua equipe buscam atuar no Laboratório de Genômica Clinica da UFMG. “A ideia é poder integrar o know how de forma que possamos atuar como um centro de nucleação genômica dentro da comunidade do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina.”
Pena explica que o laboratório não tem trabalhado tanto no sequenciamento genômico propriamente dito, mas sim no sequenciamento exômico. “O exoma é a parte do genoma que lida com genes expressos, então os defeitos que vão causar doenças estão, na maior parte, localizados no exoma. Corresponde a 3% do genoma, é o filé mignon.” O Acadêmico relata que o grupo já estudou 30 famílias a partir do exoma, cujo sequenciamento é feito de forma terceirizada num laboratório focado nisso, que fica em Toronto. “É mais simples e mais barato. Eles têm sempre as máquinas mais novas e estão sempre atualizados. Só que eles mandam o resultado desmontado, e daí a necessidade de bioinformática para montar o exoma e integrar tudo.”
Em resumo, Pena diz que o laboratório é transdisciplinar por excelência, usando conhecimento médico, hardware e software específicos e conhecimento bioinformático, integrando tudo no trabalho genômico. “A ideia agora é atender pacientes não diagnosticados do Hospital, que já fizeram a “via sacra” de correr de clinica em clinica atrás de um diagnóstico e fazermos o sequenciamento exômico, a análise bioinformática e tentar chegar a um diagnóstico molecular preciso.” Pena alerta, porém, que embora obviamente o “santo graal” nessa etapa seroa desenvolver um tratamento, isso nem sempre é possível em doenças genéticas. “Mas fazemos o aconselhamento genético e fazemos a patogênese da doença.” E assim se constrói conhecimento científico.

Física, arqueologia e pedologia
O físico e Acadêmico Ado Jório de Vasconcelos relatou sua experiência com a transdisciplinaridade, que envolve física, química, arqueologia, pedologia e outras ciências, no seu estudo sobre a terra preta de índio.
Ele explica que trabalha com nanociência, que é diferente do que era feito na física até agora. “Essa diferença reside no fato de se poder produzir, observar e manipular estruturas na escala nanométrica.” Entre outros elementos, ele estuda o carbono, que tem a capacidade de se ligar a outros elementos e criar materiais – como diamante e grafite, por exemplo. “A base de todo material muito resistente e muito leve é a fibra de carbono, como o carbon black, que está em pneus e em tudo que é preto e não é pintado. É uma das cinco estruturas mais produzidas no mundo”, informa o pesquisador. Por outro lado, a liberação de carbono na atmosfera vem se mostrando extremamente danosa para o ambiente e para o ser humano. É necessário, então, que esse carbono seja retido. “O melhor é reter no solo, trabalhar a persistência da matéria orgânica do solo.”
E reter o carbono no solo pode ser muito bom. É o que ele concluiu ao estudar a terra preta de índio, existente apenas em alguns lugares da Amazônia. Como se sabe, o solo da Amazônia é pobre. Tão pobre, que se for desmatado, vira deserto. No entanto, alguns sítios arqueológicos possuem a terra considerada a mais fértil do mundo. São locais onde as civilizações pré-colombianas que ali viveram trataram a terra com material queimado. “É o carbono. Ele mantem a terra fértil e úmida”, esclarece Vasconcelos.
Só que existe alguma coisa diferente entre o carbono milenar da terra preta de índio e o carbono normal de hoje. Usando microscopia eletrônica, se vê que o carbono antigo tem uma estrutura diferente, perfeita, que faz troca
de cátions e assim conserva o solo úmido debaixo de um sol esturricante. “O índio brasileiro construía com material que se desfaz em terra, não deixa resíduo. Ou seja, usava uma técnica de construção mais limpa do que os indígenas de Machu Picchu, que deixaram ruínas.”
A terra preta de índio é conhecida como “santo graal” da agricultura ou “eldorado” da agricultura (saiba mais em matéria do site da Embrapa). “É um estudo de caso excelente. Mas o conhecimento brasileiro é muito pequeno, a maior parte das pesquisas sobre o tema é estrangeira.” E porque não se estuda mais isso? Porque a estrutura das universidades aqui não é transdisciplinar. “Meu departamento não reconhece esse problema como física, por exemplo. Isso tem que mudar. A transdisciplinaridade é o nosso futuro. É trazer o ser humano pra dentro do problema. Temos que escolher pra que caminho.”