A ciência em um país onde não se pode errar. Parte da programação do 2º Encontro Regional de Membros Afiliados da Academia Brasileira de Ciências/Nordeste & Espírito Santo, realizado em Salvador, o título da mesa-redonda coordenada pelo neurocientista Dráulio Barros de Araújo (UFRN) e integrada por Charbel Niño El-Hani (UFBA), Manoel Barral Netto (Fiocruz-BA) e Mauricio Lima Barreto< (UFBA) já deixa claro o tom crítico do debate.
Mauricio Barreto, Dráulio Araújo, Charbel El-Hani e Manoel Barral
Dráulio Araújo – que foi eleito membro afiliado da Academia Brasileira de Ciência para o período de 2009 a 2014 – começou relatando o histórico de uma peça de skate, a Carver, que foi desenvolvida por dois surfistas norte-americanos. A ideia era criar para o skate a mesma dinâmica fluída que uma prancha de surf tem na água, mas essa meta custou a ser alcançada. Hoje ela é patenteada e gera milhões, mas foi resultado de muitos fracassos. “Só que isso aconteceu num pais onde se pode errar, porque existe a consciência de que o fracasso ensina”, observou o Acadêmico. Veja a história completa.
A visão oposta, que prepondera no Brasil, faz com que as pessoas tenham vergonha e escondam os seus erros, o que é ruim para a formação do caráter do indivíduo e péssimo para a ciência. “Como vamos construir uma ciência de qualidade com esses valores, que tem impacto direto sobre o fazer científico? O risco é inerente à boa pesquisa. Ciência não é sobre papers, é sobre curiosidade e descoberta”, disse Araújo, parafraseando Torsten Wiesel, Prêmio Nobel de Fisiologia de 1981. “Precisamos de uma almofada embaixo da corda bamba, algum amparo para que possamos ousar na caminhada. Como as agências de fomento podem se direcionar para esse caminho?”
O biólogo e estudioso de filosofia da ciência Charbel El-Hani referiu-se à entrevista da editora da Science Marcia McNutt ao Estadão em que ela diz que a ciência brasileira precisa ser mais ousada. Concordou em geral, mas observou que é muito mais fácil ser ousado quando se está no centro do que na periferia. “E como definir ousadia? Questões ousadas ou conservadoras dependem de um pano de fundo teórico, dependem do saber daquele momento sobre o tema”, disse El-Hani. E tem que ser muito bem fundamentada teoricamente. Ele referiu-se ao ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 1960, Sir Peter Medawar, que dizia que as perguntas em pesquisa têm que limitar a amplitude da resposta: “se for restrita, é medíocre; se for ampla demais, é vaga.”
El-Hani apontou alguns itens que precisam ser ajustados para mudar esse quadro. Um deles é o tempo de formação dos mestrandos e doutorandos, que hoje estão submetidos a um rigor excessivo, necessário quando foi implantado nos anos 90, mas inadequado para uma fase onde a inovação é desejável. Em seu ponto de vista, hoje seria interessante mudar o foco do tempo para o impacto do produto. “Pode levar um pouco mais de tempo e gerar um produto melhor”, defendeu.
A ousadia deve ser o foco principal dos pós-doutorandos, em sua avaliação. Para El-Hani, esta rede tem que ser ampliada e fortalecida. “Precisamos ter uma métrica decente que capture a qualidade dos artigos ou uma avaliação que considere a leitura dos melhores papers de cada pesquisador.”
O Acadêmico Manoel Barral Netto alertou para uma questão de sobrevivência. “Se a pessoa erra em determinados momentos, o erro pode ser fatal.” A seu ver, outros fatores também prejudicam a atuação nas áreas da pesquisa, como irregularidades e pulverização no financiamento, burocracia e dificuldade no uso dos recursos, deficiência de suporte institucional, ausência de mecanismos para formação de grupos multidisciplinares de pesquisa, vícios de avaliação, enfim, apontou que a situação atual é de manutenção dos status quo.
Ele se ateve a questão da avaliação, relatando que nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), nos EUA, quando o projeto de um pesquisador é recusado, ele recebe um parecer detalhado explicando o motivo da recusa, sugerindo caminhos para melhorar o trabalho e reapresentá-lo. “Aqui, não há retorno. O pesquisador fica sem saber por que o projeto foi recusado. Então não tem como aprender com o erro”, observou o Acadêmico.
Mas Barral também destacou um ponto importante: os comitês de avaliação das agências de fomento são compostos por membros da comunidade científica, como eles, ali presentes. “Temos que parar de reclamar e mudar. Temos que começar a mudança por nós, pela nossa atitude. Temos que ler três artigos do autor pra avaliá-lo e dar o parecer. Então vamos ler, vamos fazer direito. Se não, nada vai mudar.”
Mauricio Lima Barreto< começou discordando da premissa que conduzia a discussão - um país em que não se pode errar. "Nós aqui erramos demais e não somos capazes de corrigir os nossos erros." Ele justificou sua opinião, explicando que a ciência é um processo de criação que não ocorre em qualquer lugar, precisa de um ambiente propício, precisa haver um estímulo aos bons estudantes. "E esse ambiente está prejudicado. A estrutura das nossas universidades não facilita isso, não possibilita a criação desses microambientes. Infelizmente, isso não faz parte da gestão universitária".
Barreto relata que os grupos que conseguem manter um processo de criação são mal vistos, considerados rebeldes e fora dos padrões. “O conhecimento é fundamental na universidade, mas a maneira de transmiti-lo faz toda a diferença nos resultados. Surgem sementes, mas falta oxigênio.” Para Barreto, a universidade precisa proteger essas sementes, pois as transformações do ambiente são fundamentais para que sejam obtidos resultados originais, criativos, inovadores. “Precisamos nutrir a diferença.”
Ele considera que o sistema de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação (Capes/MEC) foi o alavancador de uma pós-graduação robusta como a que temos hoje, e compreende que o sistema foi criado para avaliar quant
idade de produção, porque esse era o critério importante na época. “Mas agora ele precisa ser revisto, pois está sendo contrário ao avanço científico. Agora ele tem que passar a avaliar qualidade, tem que mudar. Ou seja, há um acúmulo de erros e, enquanto não corrigirmos esses erros, não vamos ter uma ciência de ponta”, alertou Barreto.
Barreto insistiu em dizer que o foco deve ser no estímulo à criatividade. “A criação é um ato do futuro e não do passado. Não dá pra querer fiscalizar e manter o controle de todos os detalhes – isso é avesso, antagonista à criação. A ciência criativa é um ato de risco, é um processo fundamental para que a ciência brasileira possa germinar. E nisso a Mc Nutt tem razão.”
Finalizando, reforçou que a universidade precisa corresponder ao que Anísio Teixeira e outros pesquisadores de educação pregavam: um ambiente criativo fértil, onde as mentes se desenvolvam dentro de um projeto de transformação da sociedade.