Mesmo com a multiplicação de entidades, fóruns e espaços voltados à promoção da educação, ciência e cultura nas últimas décadas e a crise financeira vivida nos últimos anos, ocasionada sobretudo pela perda da contribuição norte-americana, a Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – continua tendo papel fundamental em suas áreas de atuação, garante a diretora-geral da entidade, Irina Bokova, que acaba de ser reeleita para um novo mandato à frente da organização.
Para a diplomata búlgara, primeira mulher a liderar a entidade, a Unesco conta com uma configuração única e tem reconhecida liderança nas áreas em que atua, tendo ajudado a colocar a educação na agenda política global e sendo a principal responsável por identificar tendências no setor, através de seus estudos e relatórios. Ela também destaca o poder de agregação da entidade, que reuniu este mês, em sua 37ª Conferência Geral, 140 ministros de diferentes partes do globo. “Não há outro lugar no mundo em que esses ministros se reúnam para definir metas comuns para o desenvolvimento futuro”, afirma a diretora-geral, em entrevista à Academia Brasileira de Ciências, no Rio de Janeiro, onde esteve no último final de semana para a abertura do Fórum Mundial de Ciência, que ocorre até a quarta-feira na cidade.
Bokova atribui grande importância ao Fórum, que vê como uma forma interessante de mobilizar a comunidade científica mundial. Para ela, esta edição do evento é particularmente importante, pois se aproxima o prazo final dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU – 2015 – e a entidade já começa a discutir a definição de metas futuras. A diretora-geral adianta que levará as recomendações do Fórum para um evento, em dezembro, em Nova Iorque, que a Unesco promove junto com o Conselho Internacional de Ciência (ICSU, na sigla em inglês) para discutir objetivos de desenvolvimento sustentável, justamente o tema desta edição do evento.
Na entrevista, Bokova fala sobre as conquistas e os desafios de sua gestão à frente da Unesco, destaca algumas iniciativas em andamento e reafirma a importância da entidade como espaço ímpar de reflexão sobre o futuro do planeta. Ela também reforça a relevância do Fórum Mundial de Ciência e o papel fundamental da ciência, tecnologia e inovação na solução dos problemas atuais da humanidade.
A senhora acaba de ser reeleita diretora-geral da Unesco. O que essa reeleição significa para a senhora e quais os principais desafios para os próximos quatro anos de mandato?
Claro que a reeleição significa muito para mim. Eu a vejo como uma espécie de voto de confiança pelos quatro anos que estive à frente do cargo. Tenho que dizer que temos passado por momentos difíceis, especialmente nos últimos dois anos, em função de uma significativa redução orçamentária. Perdemos a contribuição dos Estados Unidos, que correspondia a 22% do nosso orçamento regular. Foi um duro golpe para a organização. De todo modo, acho que foi um período interessante, no qual conseguimos promover diversas iniciativas, dando continuidade à liderança da Unesco em suas principais áreas de atuação e avançando nas prioridades deste mandato, que dizem respeito à educação.
Pela primeira vez a educação foi incorporada à agenda política global. Acompanhamos o secretário-geral da ONU no lançamento da Iniciativa Educação Global em Primeiro, focada em três eixos principais. O primeiro diz respeito ao acesso universal à educação, que é o segundo dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Trata-se de colocar as crianças na escola – hoje temos 57 milhões de crianças fora da escola -, enfrentar o problema do analfabetismo – são 800 milhões de pessoas analfabetas -, concentrar esforços nos mais vulneráveis, por exemplo, nas meninas e mulheres – e este tem sido uma das minhas maiores prioridades nos últimos anos.
O segundo diz respeito à qualidade da educação. Não basta dar acesso à educação, ela precisa ter qualidade. Há cerca de 250 milhões de crianças que passam pela educação primária, mas que, devido à baixa qualidade do ensino, continuam sendo analfabetas funcionais. E aqui entra o debate sobre currículos, professores, novas tecnologias, formação profissional técnica, entre outras questões. O terceiro, no qual temos colocado muita ênfase, refere-se à educação para a cidadania. Aqui, estamos preocupados com o tipo de valores que os jovens adquirem no sistema educacional. Educação não é apenas saber ler e escrever, tem a ver com valores, com direitos humanos, com dignidade, diversidade e responsabilidade. Temos liderado a discussão sobre esses temas.
E no que diz respeito à ciência e à cultura?
Na ciência, a Unesco também tem sido reconhecida como líder. Uma mostra de confiança nessa área acaba de nos ser dada pelo secretário-geral da ONU com a criação do Conselho Consultivo Científico, coordenado pela Unesco, para assessorá-lo na interface entre ciência e política e fazer com que a ciência seja de fato considerada nas decisões importantes relacionadas ao desenvolvimento sustentável.
Na área de cultura, acabamos de lançar o Relatório em Economia Criativa, que comprova o importante papel da cultura no desenvolvimento. Consideramos que a cultura tem a ver com criação de empregos, justiça social, inclusão, especialmente em sociedades multiculturais, nos centros urbanos. Acredito que todas as nossas principais áreas de atividades tenham se fortalecido nos últimos quatro anos. Considero a Unesco relevante para a agenda de hoje e espero que seja ainda mais relevante no futuro.
Com tantas entidades focadas na promoção da educação, ciência e cultura, em níveis locais, regionais e nacionais, qual seria hoje o papel da Unesco e como, a seu ver, este vem sendo desempenhado?
Há de fato diversas organizações, em nível governamental e não governamental, mas a Unesco tem um papel ímpar. Primeiro porque ela tem um enorme poder de agregação. Acabamos de encerrar a 37ª sessão da nossa Conferência Geral. Tivemos a presença de 140 ministros – da educação, ciências, cultura e também das relações exteriores -, vários chefes de Estado e primeiros-ministros. Não há outro lugar no mundo em que esses ministros se reúnam para definir metas comuns para o desenvolvimento futuro. Considero isso muito importante. Considero também nossa configuração muito única em diversas das áreas em que atuamos. Criamos o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio nº 2 – educação para todos. Temos na área de cultura seis convenções fundamentais, incluindo a de proteção do patrimônio cultural imaterial e da diversidade cultural e a coibição do tráfico ilegal de bens culturais.
Temos os relatórios globais de monitoramento em educação, que são únicos em analisar e indicar as principais tendências na área. Temos o relatório da ciência mundial. Também lideramos o trabalho, junto com outras agências, de elaboração do relatório sobre a água no mundo. Temos o relatório mundial sobre as ciências sociais. Portanto, a Unesco é uma entidade ímpar de pensamento global sobre o mundo e seu futuro.
A senhora está no Brasil para o Fórum Mundial de Ciência, que pela primeira vez acontece fora da Hungria. Qual a importância desse evento para a Unesco e o que se pode esperar dele?
Os Fóruns Mundiais de Ciência são muito importantes e se tornaram uma referência. Temos que dar todo o crédito à Hungria, que lançou a iniciativa e tem organizado o evento até aqui. Dois anos atrás o país teve a generosidade de concordar com a realização do Fórum no Brasil. Depois, ele volta para Budapeste e, depois, vai para a Jordânia. Acho que é uma forma interessante de mobilizar a comunidade científica mundial. A cada dois anos, cientistas de todo o mundo se reúnem para discutir assuntos globais. Este ano temos como tema central o desenvolvimento sustentável, muito relevante para a agenda da ONU. A declaração e as recomendações que resultam da conferência, que esperamos que sejam adotadas, marcarão o pensamento global sobre o futuro do desenvolvimento sustentável.
Esta edição do Fórum é particularmente importante porque estamos nos aproximando de 2015, o prazo final dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU e a entidade está pensando nesse momento sobre a definição das novas metas de desenvolvimento sustentável para o futuro pós-2015. O papel da ciência, tecnologia e inovação é fundamental no enfrentamento de problemas relacionados, por exemplo, com a água, energia e alimentos. Levarei as recomendações deste Fórum a um evento importante que estamos organizando em Nova Iorque com o ICSU [International Council for Science], o maior conselho internacional de ciência, para promover as mesmas ideias também entre diplomatas e tomadores de decisão.
Como a senhora mencionou, “Ciência para o Desenvolvimento Sustentável Global” é o tema central deste Fórum Mundial de Ciência. Como, a seu ver, a educação e a ciência podem contribuir para o futuro sustentável do nosso planeta?
Atualmente, não há como enfrentar nossos problemas sem ciência e inovação. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que desenvolvimento tecnológico e educação científica eram para o mundo desenvolvido apenas, que não tinham nada que ver com erradicação da pobreza e problemas de países em desenvolvimento. Nós não compartilhamos essa opinião. Acreditamos que é muito importante investir no ensino de ciência desde o início da escolarização. Mas, infelizmente, ele é precário em muitos países. Ao mesmo tempo, há uma enorme demanda, em muitas partes do mundo, por cientistas, engenheiros e profissionais especializados. Nesse sentido, a Unesco lançou, há dois anos, a Iniciativa em Engenharia, com diversos objetivos perpassando diferentes setores e agregando também as universidades, porque sabemos que alguns dos problemas urgentes que enfrentamos, como segurança alimentar e hídrica, não podem ser resolvidos sem o avanço da ciência.
Mas é importante colocar também que não se trata apenas de problemas científicos. Muitos dos problemas que temos hoje são sociais. Por isso temos que olhar para eles também do ponto de vista das ciências sociais; não podemos negligenciar o papel dessas ciências na solução dos problemas. Acreditamos que a aproximação das ciências naturais das ciências sociais poderá ajudar a resolver os problemas do desenvolvimento sustentável. Afinal, estamos falando de seres humanos, de pessoas, por isso é muito importante o olhar social.