Difícil escolher um entre tantos motivos para explicar a importância da água para a saúde humana. Apesar disso, a água potável não passa de uma miragem na vida de milhões de pessoas. A pesquisa Progress on Drinking Water and Sanitation [en], realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância em parceria com a Organização Mundial da Saúde (Unicef/OMS-2012), mostra que 780 milhões de pessoas não tem acesso à água potável no mundo, cuja população é estimada em 7 bilhões de habitantes. A situação se agrava com a transmissão de doenças através da água poluída, esta sim abundante nas grandes cidades e em regiões desfavorecidas pela geografia, meio ambiente, economia e ação humana.
A Academia Brasileira de Ciências (ABC) promoveu o simpósio “Água e Saúde Humana” em parceria com a Universidade Feevale, nos dias 9, 10 e 11 de setembro, em Novo Hamburgo (RS), para dar a contribuição da ciência no fortalecimento da gestão de águas no Brasil.
Com a coordenação do Acadêmico José Galizia Tundisi e Fernando Spilki, ambos professores da Feevale, foram temas do evento as doenças de veiculação hídrica, os contaminantes e poluentes emergentes da água, os desafios no monitoramento da qualidade microbiológica na água e a gestão de recursos hídricos. Participaram Carin Von Muhlen, Carlos Tucci e Caroline Rigotto, que lecionam na Feevale; gestores e tomadores de decisão da região sul, como Arnaldo Dutra, diretor da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan); outros professores da região, como Uwe Hortz Schoulz, que leciona na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Paulo Michel Rohoe, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); e pessoas de referência na área, como José Paulo Gagliardi Leite, pesquisador da Fiocruz, Christophe Gantzer, professor da Universidade de Nancy (França) e Américo Sampaio, engenheiro superintendente da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).
No conjunto, foi destacado que a contaminação da água e a insuficiência do saneamento básico são principais problemas da área no Brasil, que a gestão pública do setor precisa avançar e que a participação de toda a sociedade é necessária para a resolução desses problemas.
População brasileira causa e sofre as consequências da contaminação da água
Agentes orgânicos, inorgânicos, físicos ou biológicos, de origens bacteriana, viral ou orgânica podem contaminar a água. Os palestrantes ressaltaram que a população também é responsável por essa contaminação, embora seja ela própria a sofrer com cólera, disenteria, meningite, hepatite, febre tifóide e outras doenças causadas pela ingestão de água contaminada.
Parte dessa atuação humana se explica pelo processo de urbanização pouco planejado verificado na história do país, que se agravou nas últimas décadas com a alta concentração populacional nas grandes cidades, tais como Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais.
Os palestrantes afirmaram que, para reverter essa situação, ações do governo e das universidades seriam fundamentais. Porém, os bancos de dados existentes em ambos os setores sobre os riscos de contaminação envolvidos na ingestão de água – e sobre a água em geral – não são suficientes para compreender a realidade das diversas regiões do país. A razão para isso é a mesma nos dois casos: ausência de uma visão holística. No governo há uma perspectiva setorial na condução das políticas públicas para a água; nas universidades o tema é tratado de forma disciplinarizada. Na falta de uma interação entre as diferentes áreas de gestão e do conhecimento está o erro que impede o país de resolver a questão da contaminação da água e do acesso à água potável em seu território. Além disso, existem limitações técnicas e de infraestrutura, especialmente a pequena quantidade de laboratórios especializados.
No entanto, há uma parcela de culpa de todo brasileiro que, por mais que pareça contraditório, causa e sofre as consequências da contaminação da água. De acordo com os palestrantes, a elaboração de uma campanha de conscientização e prevenção voltada para a sociedade, que explique as formas de contaminação da água e o modo de preveni-las, é importantíssimo. Para eles, levar informação dessa natureza para a sociedade é gerar um programa de educação sanitária através do qual cada pessoa possa atuar na redução da contaminação da água e da ingestão de água contaminada, individualmente ou através do envolvimento comunitário.
“Na área de saneamento, o Brasil continua no século 19”
Mas não existe ação social e das universidades que solucione as questões levantadas, caso o saneamento básico continue insuficiente no país – e isto é uma responsabilidade governamental. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), órgão do Ministério das Cidades, nas 100 maiores cidades do Brasil, em municípios tratados no Ranking do Saneamento – base SNIS 2010, vivem 77 milhões de habitantes, ou seja, 40% da população brasileira. Dos 77 milhões, em 2010 pouco mais de 90% da população tinha acesso a água potável, ou seja, quase sete milhões de habitantes não tem acesso. 31 milhões não tinham acesso à coleta de esgotos em 2010. Do volume de esgoto gerado nessas 100 cidades somente 36,28% são tratados. Resumindo, são quase oito bilhões de litros de esgoto lançados todos os dias nas águas brasileiras sem nenhum tratamento.
Os palestrantes apontaram que a falta de tratamento de esgoto causa um grande impacto na saúde dos brasileiros. Também indicaram que muitas oportunidades de desenvolvimento socioeconômico do país são perdidas devido à ausência de iniciativas sólidas para a resolução do problema de saneamento básico, gerando muitas internações hospitalares, problemas de doenças recorrentes – por exemplo, gastroenterites – que têm impactos prejudiciais na qualidade de vida dos brasileiros e sobrecarregam a rede pública de saúde. Segundo o SNIS, cada R$ 1 investido em saneamento gera economia de R$ 4 na área de saúde.
Neste sentido, a necessidade de uma gestão pública mais eficiente foi reiterada durante todo o evento. Para isso, é importante encarar o país como ele realmente é: extenso e diversificado do ponto de econômico, biológico, social, antropológico e industrial. Portanto, é preciso observar as diferentes regiões do Brasil com suas características específicas e desenvolver projetos regionais que incluam essas características.
Coordenadores do evento: (esq.-dir.): Tundisi, membro da ABC, Marcos Cortesão, assessor técnico da ABC, e Spilki, professor da Feevale
Conclui-se do simpósio que, no que diz respeito à água e saúde humana, é preciso unir todos os setores sociais para a resolução dos problemas existentes. O membro da Academia Brasileira de Ciências José Galizia Tundisi fez uma síntese dos debates que ocorreram no evento. A seu ver, “todos ess
es problemas são complexos e interligados: as fontes de contaminação, os problemas técnicos, a detecção de técnicas avançadas, a relação entre as políticas públicas, o tratamento de esgoto e as doenças de veiculação hídrica, os impactos na saúde humana, os impactos econômicos locais, regionais e nacionais, a relação da prevenção dessas doenças com as políticas públicas, os cuidados com a saúde humana e as informações para a sociedade não podem ser visto isoladamente. Nós temos claras demonstrações de que o país pode ser moderno, com estádios de futebol de primeiro mundo e outras construções exuberantes, mas na área de saneamento o Brasil e em outros aspectos continua no século 19, não passou nem pelo século 20. Portanto, nós temos problemas muito sérios de desenvolvimento a enfrentar”.
Os cientistas que participaram do simpósio elaboraram um documento sobre o assunto, chamada Carta de Novo Hamburgo, onde expuseram a posição do grupo.