No Rio de Janeiro para a Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências, o francês Serge Haroche, laureado com o Nobel de Física de 2012, fala à CH On-line sobre sua pesquisa com partículas de luz, o desafio de comunicar conceitos de sua área e as colaborações com o Brasil.

Ele ajudou a inaugurar o que chama de física quântica in vivo. Antes do francês Serge Haroche, era impossível olhar para fótons diretamente. A observação das partículas de luz era feita post mortem, era preciso destruí-las para estudá-las. Usando um experimento relativamente simples, com espelhos em uma cavidade bombardeada com átomos, o físico e sua equipe conseguiram, na década de 1990, isolar e estudar fótons individualmente sem interferir em seu estado original. O feito rendeu a Haroche o Prêmio Nobel de Física de 2012, compartilhado com o americano David Wineland, que conseguiu façanha semelhante isolando átomos.

O campo de pesquisa de Haroche, a ótica quântica, chama atenção por sua diferença com o mundo macroscópico. Partículas de luz e átomos se comportam de forma bizarra e imprevisível pelas leis da física clássica. As propriedades quânticas estudadas pelo Nobel abriram caminho para pensar em novas tecnologias ainda hipotéticas, como a computação quântica, que prevê supercomputadores, e outras tecnologias já viáveis, como os relógios quânticos, milhares de vezes mais precisos que os de césio usados atualmente como padrão para medir o tempo.

Serge Haroche, que tem uma longa história de colaboração científica com o Brasil, esteve esta semana no Rio de Janeiro para dar uma palestra na Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências. Na ocasião, conversamos com ele sobre os mistérios da física quântica, o estágio atual de suas pesquisas e o desafio de falar a não especialistas sobre assuntos tão distantes do cotidiano.

CH On-line: Desde que o senhor conseguiu pela primeira vez isolar e controlar um fóton, que avanços foram feitos na sua pesquisa?

Serge Haroche: Depois que conseguimos essa interação delicada entre átomos e fótons, que nos permitiu observar o fóton vivo, passamos a poder estudar o estado dos fótons e do campo de luz. Nos últimos anos, estivemos observando e aprendendo como manipular o sistema de forma mais precisa. Ainda não sabemos as aplicações disso. Mas há pessoas como David Wineland, que ganhou o prêmio Nobel comigo, que estão observando átomos em vez de fótons e usando-os para construir relógios muito precisos.

Para o que estamos fazendo ainda não sei, talvez possamos usar esses fótons para construir memórias que armazenem informação quântica. Mas este não é o nosso principal objetivo agora. Estamos apenas começando a aprender alguns truques que podem funcionar para operações de informação quântica. Na maioria das vezes em que pesquisa básica está sendo feita, é assim. Não se sabe qual aplicação terá.

“Estamos apenas começando a aprender alguns truques que podem funcionar para operações de informação quântica”

Como é para o senhor conciliar a visão regular de mundo, explicada pela física clássica, e a perspectiva da física quântica, na qual as partículas se comportam de modo tão diferente e inesperado e causa e consequência nem sempre estão diretamente ligadas?

Há causa e consequência no mundo quântico, mas de forma menos direta. Quando você prepara um sistema quântico, você não sabe exatamente como ele vai evoluir, não sabe a probabilidade por trás do que vai ser obtido. Você só tem probabilidades, é uma realidade probabilística. Você não pode descobrir o que vai acontecer num determinado experimento, mas pode determinar qual é a probabilidade de diferentes resultados. E você pode calcular essas probabilidades de forma bem precisa. Às vezes, as probabilidades são tão grandes para um evento que você pode ter quase certeza. Por exemplo, para construir um relógio atômico, você pode usar a física quântica e obter precisão incrível para medir tempo. É muito paradoxal, é uma teoria que é probabilística, mas ao mesmo tempo permite fazer medições precisas.

E para o senhor é natural lidar com duas realidades tão distintas, do mundo macroscópico e do mundo atômico?

Não á natural porque não podemos ver partículas individuais no nosso dia a dia, elas têm comportamentos estranhos e ninguém está acostumado com isso. Mesmo como físico, é estranho para mim e por isso eu repito uma frase de Richard Feyman: “Ninguém entende física quântica”. O que ele quis dizer, é claro, não foi que ninguém entende as equações, mas que ninguém tem uma intuição sobre o que as equações significam.

Para muita gente, a física quântica é sinônimo de hermetismo e mesmo para quem trabalha na área de divulgação científica é complicado entender e transmitir alguns conceitos dessa área. O senhor também sente essa dificuldade quando fala do seu trabalho para não especialistas?

É difícil, mas percebo que a maior dificuldade é que se precisa saber um mínimo de matemática, matemática simples de vetores e números complexos. Para um matemático ou para alguém que tem esse background é muito simples, mas para um leigo que não tem esse conhecimento é muito complicado de entender a física quântica; ela soa misteriosa. Acredito que seja praticamente impossível explicar certos aspectos da física quântica usando termos do cotidiano, termos que foram cunhados para falar sobre o mundo macroscópico. Metáforas podem ser usadas, mas elas têm um limite e podem acabar por dar uma falsa impressão sobre o assunto. Em linguagem matemática, as equações de sistemas quânticos não são misteriosas e podem ser claramente compreendidas.

“Acredito que seja praticamente impossível explicar certos aspectos da física quântica usando termos do cotidiano”

A física quântica frequentemente é relacionada a temas místicos e exotéricos. Seria por causa dessa dificuldade de comunicá-la?

Penso que essa relação não tem justificativa. Há pessoas que fazem isso para vários campos e não só para física quântica. Há gente, por exemplo, que defende que campos magnéticos têm poderes místicos. Vejo com maus olhos qualquer relação entre a física quântica e o poder da mente ou a espiritualidade.

O senhor tem uma longa história de colaboração científica com o Brasil, que começou na década de 1980 com o físico Luiz Davidovich, hoje da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Essa colaboração continua? O senhor tem hoje algum vínculo com a física brasileira?

Atualmente, tenho um estudante brasileiro no meu laboratório. Desde que iniciamos uma colaboração com o Davidovich e o Nicim Zagury há 30 anos, temos recebido brasileiros com frequência.

E o senhor pretende continuar com essa colaboração?

Os estudantes são livres para ir aonde quiserem. Se mais estudantes brasileiros tentarem uma vaga para pesquisa no meu laboratório e demonstrarem que são bons estudantes, serão bem-vindos.

O senhor acredita que a pesquisa em física feita aqui no Brasil está no mesmo nível da feita na Europa e nos Estados Unidos?
Certamente há brasileiros que trabalham com temas de ponta como o próprio Luiz Davidovich, que é teórico. Vejo que a área de física experimental também está crescendo bastante. Acredito que esses pesquisadores têm um papel importante para o desenvolvimento da pesquisa na área e podem ajudar a criar um histórico que sirva de fomento para o desenvolvimento de mais pesquisas.