Promovido pelas Academias Brasileira de Ciências e Nacional de Medicina (ANM), o Simpósio de Medicina Translacional reuniu renomados pesquisadores da área biomédica em um debate sobre a transferência dos conhecimentos gerados na bancada para a prática médica de fato realizada no país. O encontro, que tinha como coordenadores os Acadêmicos Eduardo Moacyr Krieger, ex-presidente da ABC, e Marcello Barcinski, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), aconteceu no dia 29 de novembro e visou estimular o engajamento das comunidades científica e médica na questão do “bench to bed” (da bancada à clínica).
Marcos Moraes e Antônio Carlos Campos de Carvalho
A abertura do evento foi realizada pelo diretor da ABC Antonio Carlos Campos de Carvalho e pelo professor Marcos Moraes, ex-diretor do Instituto Nacional de Câncer e ex-presidente da ANM. Após ressaltar a importância de uma parceria constante entre as Academias, sendo esta a terceira atividade conjunta realizada entre elas, Moraes afirmou que o simpósio encerra o ano acadêmico de maneira “muito interessante”, dada a importância da temática abordada.
Conceituação
O primeiro palestrante foi Krieger, que atualmente é coordenador do Programa de Cardiologia Translacional do Instituto do Coração (Incor) e vice-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Idealizador do simpósio e especialista nos mecanismos de regulação da pressão arterial, ele elaborou uma rápida conceituação da medicina translacional, bem como uma contextualização histórica do pensamento lógico desde Aristóteles até os dias atuais. “Operacionalmente, a medicina translacional visa agilizar a translação do conhecimento para aplicação no homem – na investigação clínica em um primeiro momento e, em seguida, na saúde pública”, explicou o cientista.
Na sua opinião, a base do pensamento científico está nas palavras de Galileu, criador da experimentação: “Devemos medir o que é possível medir e tornar mensurável tudo quanto ainda é impossível medir”. A aplicação do conhecimento acumulado em benefício da sociedade, segundo Krieger, é o desafio enfrentado pela medicina translacional. “De maneira geral, entre a criação do conhecimento e sua aplicação existe certa defasagem, o que pode ser exemplificado com um caso brasileiro: a criação dos inibidores da enzima conversora de angiotensina, um dos medicamentos mais utilizados atualmente na cardiologia. O conhecimento fundamental dessa descoberta nasceu no Brasil, em Ribeirão Preto, mas levou cerca de dez anos para que essas pesquisas básicas de laboratório resultassem em medicamentos”. Na pesquisa em questão, idealizada pelo Acadêmico Sérgio Henrique Ferreira, o ex-presidente da ABC trabalhava no papel de fisiologista.
Segundo Krieger, a partir das décadas de 40 e 50 essa situação começou a se alterar e a defasagem foi diminuindo progressivamente. “O conhecimento se tornou matéria-prima para o desenvolvimento e, por isso, a defasagem é quase inexistente. A própria universidade leva o conhecimento para a indústria e a indústria, do mesmo modo, vem buscar o conhecimento na universidade. Isso ocorreu em todos os setores, menos na medicina”, problematizou o pesquisador.
De acordo com ele, essa translação só foi percebida como tema de grande importância em 2003, quando o então presidente do National Institutes of Health (NIH), Ellias Zerhouni, estabeleceu a regeneração da investigação clínica através da medicina translacional como meta da instituição para o ano em questão. “Em 2006, eles criaram o Clinical and Translational Science Award [CTSA], que tinha como objetivo a criação de centros de medicina translacional nas universidades”.
Por fim, Krieger deixou sugestões de ações a serem realizadas em cada setor, visando a difusão desse novo paradigma. Para ele, o setor público deve priorizar o financiamento de atividades de pesquisa com enfoque multidisciplinar, as quais façam a aplicação da lógica do “bench to bed”. Enquanto isso, as universidades devem intensificar o treinamento de equipes capazes não só de promover inovação, mas também de realizar pesquisa translacional e criar unidades de medicina translacional nos hospitais universitários. A ABC e a ANM, por sua vez, deveriam comprometer-se em “promover reuniões, simpósios e cursos com abordagem multidisciplinar, favorecendo a integração entre os pesquisadores das áreas básica e clínica e a difusão da medicina translacional, pois seu o objeto final é a melhoria da qualidade de assistência à população”, concluiu Krieger.
Farmacogenética
Em seguida, o professor titular de farmacologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador 1A do CNPq Guilherme Suarez-Kurtz falou um pouco sobre sua área de especialização, a farmacogenética, também chamada de farmacogenômica. Kurtz explicou que se trata de uma ciência relativamente recente, que debruça seus estudos sobre a variabilidade individual na resposta a medicamentos devido a fatores genéticos.
No entanto, o pesquisador ressaltou o fato de que a farmacogenética é apenas uma das multivariáveis que afeta a maneira como cada indivíduo responde a determinado medicamento. “Além disso, para medicamentos em que não há variabilidades interindividuais significativas, a farmacogenômica não terá muita importância”, acrescentou Kurtz.
Segundo o palestrante, o que a farmacogenética procura fazer é não só identificar quais fatores genéticos podem explicar essa variabilidade, mas também o quanto dela pode ser explicada por fatores genéticos. Ele defendeu que genotipar os pacientes antes da aplicação do medicamento nos casos em que fatores genéticos são relevantes é bastante benéfico, o que pode ser exemplificado pela Síndrome de Stevens Johnson. “A carbamazepina, que é o anticonvulsivante mais utilizado no mundo inteiro, desencadeia uma síndrome chamada Síndrome de Stevens Johnson, na qual a pele cai por inteiro e se trata de uma reação de hipersensibilidade das células T. A síndrome possui uma associação clara com o polimorfismo em questão. Os indivíduos carregadores desse polimorfismo têm uma razão de risco 2500 vezes maior de desenvolver a Síndrome de Stevens Johnson”.
De acordo com Kurtz, o caminho da farmacogenômica, desde a ciência até a implementação, envolve as mesmas etapas dos outros desenvolvimentos tecnológicos na área da saúde. Como medidas a serem tomadas para a melhoria dos tratamentos a partir de estudos em sua área, ele cita a escolha por medicamentos alternativos ou até mesmo a prescrição de doses alternativas do mesmo medicamento. “É uma forma de utilizar a informação farmacogenética atuando de maneira prática, uma vez que a atual preocupação dessa ciência é desenvolver mecanismos de atuação”, finalizou o membro titular da ABC.
Cardiologia
Graduado em cardiologia pela USP e pós-graduado na mesma área nos Estados Unidos, Protásio Lemos da Luz deu continuidade ao simpósio. Ele iniciou sua palestra falando sobre um estudo, realizado no ano de 1971, que, através da indução de infartos em cães, provou que o infarto, em sua primeira fase, é dinâmico.
O professor abordou ainda um estudo muito importante na área da cardiologia. Segundo ele, os resultados concluíram que todo infarto deve ser reperfundido, química ou mecanicamente, e que o intervalo de tempo entre a dor e o atendimento clínico – ou seja, a internação – deve ser de noventa minutos.
Além da utilização de outros exemplos que representaram grandes evoluções nessa área da medicina, o Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico ressaltou que a prática médica cardiológica do Brasil não é satisfatória, salvo algumas exceções bastante específicas. Em seguida, Protásio enumerou determinados desafios a serem vencidos nos âmbitos da genética – os marcadores, a epigenética, a terapia gênica e a farmacogenética – e também nas células tronco – sua eficiência clinica, linhagens e mecanismos de ação.
O pesquisador falou também sobre sua pesquisa atual, que ele denomina “Wine Trial” e define como um “ensaio clínico randomizado, fase III, que busca avaliar o efeito do consumo moderado de vinho tinto na prevenção de eventos cardiovasculares maiores em pacientes com alto risco”. Serão utilizados três mil pacientes em uma duração de quatro anos, contando com o apoio do Instituto Brasileiro de Vinho (Ibravin), do Instituto Brasileiro de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Ministério da Saúde.
Por fim, o cientista resumiu o que acredita serem as necessidades prioritárias da
medicina translacional em sua área. Entre outras medidas, ele citou o estreito convívio entre pesquisadores de área básica e pesquisadores clínicos e também a criação de instituições que permitam uma maior integração entre os serviços experimentais e clínicos – como, por exemplo, pesquisadores em dedicação adequada, tecnologias, redes de comunicação e capacidade para testes clínicos.
“Mesmo uma jornada de mil milhas começa com o primeiro passo”, finalizou o membro da ABC, que também é professor titular da USP.
Células-tronco
Após a fala de Protásio da Luz, o diretor da ABC, Antonio Carlos Campos de Carvalho, apresentou sua palestra sobre células-tronco. Coordenador de Ensino e Pesquisa do Instituto Nacional de Cardiologia (INC), Carvalho procurou tecer um panorama geral do que vem acontecendo na área, atendo-se à questão das células-tronco e sua importância na medicina contemporânea.
Inicialmente, o professor da UFRJ ressaltou como os estudos desse tema são recentes e, então, definiu as células-tronco como “aquelas com capacidade não só de auto-renovação, mas também de diferenciação em outros tipos celulares e categorias funcionais”. Antonio Carlos também as classificou, hierarquicamente, em toti, pluri e multipotentes. Exemplos de cada um desses tipos celulares são, respectivamente, o zigoto, a célula embrionária e a célula adulta. Existem também, além das já citadas, as células consideradas oligopotentes – também conhecidas como progenitoras.
Aprofundando, Carvalho explicou que a totipotência está relacionada ao fato dessas células serem capazes de gerar todas as células de um tecido adulto e também as de um tecido extra-embrionário – basicamente, a placenta. As células-tronco embrionárias, por sua vez, possuem pluripotência e são capazes de gerar todas as células que compõem um organismo adulto, sejam elas de origem endo, meso ou ectodérmica. “O seu potencial é bastante interessante, do ponto de vista da medicina regenerativa, porque elas podem gerar qualquer célula que o paciente necessite – de cardiomiócitos a neurônios”, exemplificou o médico.
“Do ponto de vista da aplicação clínica dessas células tronco para a medicina, nós temos enormes desafios a serem enfrentados. O primeiro deles diz respeito à questão da rejeição imunológica”, relatou Antônio Carlos. Ele disse que, ainda que a literatura tenha evidências de que esses tipos de célula sejam pouco imunogênicas, elas eventualmente expressarão antígenos de uma célula adulta diferenciada, os quais não serão idênticos aos do receptor.
O pesquisador também citou outras dificuldades a serem combatidas pela medicina translacional das células-tronco e finalizou sua fala dizendo que, atualmente, o Brasil já possui um financiamento de 7,5 milhões de dólares para a criação de um Instituto de Medicina Regenerativa na UFRJ.
Microcirculação
Eliete Bouskela, especialista em microcirculação, foi a quinta palestrante. Professora titular e coordenadora do Centro Multidisciplinar de Pesquisa em Obesidade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), sua fala foi sobre como é possível realizar uma detecção precoce dos riscos de doença cardiovascular, infarto e acidente vascular cerebral.
Há certo tempo, seus estudos são focados no desenvolvimento de métodos não invasivos, extremamente práticos, que possam ser aplicados na população de uma maneira geral e com uma freqüência razoável – a cada seis meses. “Nós fazemos isso trabalhando com pacientes – desde crianças a partir de quatro anos até a terceira idade – e com animais experimentais – basicamente ratos e hamsters – submetidos a dietas hipercalóricas, balanceadas ou a exercícios físicos”, explicou a pesquisadora.
Bouskela ainda apontou um fato curioso: “Os ratos e hamsters não engordam tanto quanto as pessoas quando submetidos a dietas hipercalóricas que visam induzir essas doenças, porque o centro da saciedade desses animais continua funcionando apesar do tipo de dieta. Então, quando a dieta é hipercalórica, eles comem menos e, apesar de adquirirem defeitos da mesma maneira que nós fazemos, não ficam grosseiramente obesos, a não ser que sejam geneticamente modificados”, disse a secretária geral da ANM.
Após falar um pouco sobre a aterosclerose – definida por ela como “uma doença progressiva e dinâmica oriunda da combinação entre disfunção endotelial e inflamação”, Bouskela retornou à questão da obesidade, principal temática de suas pesquisas. Ela contou que há não muito tempo atrás, a doença era tipicamente norte-americana, mas, hoje em dia, já faz parte da realidade brasileira. Para comprovar essa afirmação, mostrou um gráfico discriminando o grande aumento do câncer e das doenças cardiovasculares como causas de morte no país. Segundo Eliete, a obesidade é fator de influência nos dois casos e deve ser estudada com rigor, levando em conta, por exemplo, os efeitos benéficos do exercício físico.
Câncer
A fala de Gilberto Schwarstmann, presidente da Fundação Central Sul Americana Sul Americana para o Desenvolvimento de Drogas Anticâncer, foi a última a compor a parte da manhã do evento. O pesquisador – que é detentor de duas patentes internacionais – discutiu a medicina translacional em oncologia e tentou mostrar como essa área da ciência mudou conceitualmente.
“Há algumas décadas nós tínhamos um conhecimento sobre câncer muito limitado e achava-se que os defeitos moleculares que levavam à doença eram basicamente do controle da proliferação celular, ou seja, de como as células se duplicam. Hoje se sabe que os defeitos são em grupos de genes que envolvem também muitas outras propriedades como, por exemplo, os controles da morte celular, da maturação das células, de sua regulação metabólica e também da sua autonomia de crescimento”, explicou Schwarstmann.
Nesse contexto, ele conta que surgiram várias oportunidades de se fazer intervenções inteligentes, de base molecular, nessas diferentes características. Na sua visão, o desafio da atualidade é identificar quais as alterações moleculares são mais preponderantes em certos tipos ou subtipos de tumores e realizar intervenções especificamente dirigidas a elas. Para exemplificar, Schwarstmann citou algumas drogas já aprovadas para uso, as quais permitem que os pacientes vivam mais e melhor a partir dessas intervenções. “Ou seja, aquela ideia de que, para que o câncer seja bem tratado devem ser utilizadas drogas tóxicas, quimioterapias, não é necessariamente verdadeira em todos os casos. Quando nós conhecemos o defeito molecular que explica ao menos em parte aquele comportamento, bloqueá-lo de forma inteligente é muito mais vantajoso”.
Membro titular da ANM e diretor do Instituto do Câncer Infantil do Rio Grande do Sul, Gilberto encerrou sua fala concluindo que a interferência tardia no câncer geralmente significa que a cura não será alcançada. Em outras palavras, o pesquisador alertou para o fato de que a prevenção e detecção precoce da doença são as melhores estratégias para reduzir sua fatalidade.